Em uma semana tão aguardada pelos brasileiros, acho válido comentar sobre um texto que analisa o Brasil (ele mesmo, como se fosse um sujeito), e que, principalmente traz a visão de alguém de fora.
Me refiro à um texto de Contardo Calligaris, psicanalista, escritor e dramaturgo italiano radicado aqui no Brasil. Com origem em Milão, Calligaris se formou em Epistemologia e Letras, na Suíça. Depois, em Paris, em meio ao Doutorado em Semiologia, começa à se analisar, o que desperta seu interesse em Psicanálise.
Seu primeiro contato com o Brasil se dá no final dos anos 80, quando começar a proferir uma série de palestras e aceitar alguns pacientes. Desde os meados dos anos 2000, se estabeleceu de maneira definitiva no país.
Atualmente assina uma coluna semanal no jornal A Folha de São Paulo, além de ser roteirista da série televisiva Psi, do canal HBO.
Os artigos que compõe o texto foram compilados e publicados originalmente em 1991, e sofreram uma revisão, tendo sido relançado no ano passado.
Colonizador e Colono
(Nova edição do texto Hello, Brasil)
Tentarei apontar alguns elementos do texto que acho relevante, e algumas noções que talvez nos sejam úteis ao pensar o nosso eterno “país do futuro”. O importante aqui é questionar como se formou (e se forma) o laço social no Brasil, como as relações são estruturadas. Sugiro que se remetam ao texto original para localizarem as observações completas de Contardo.
No início do texto, Calligaris aponta uma frase que lhe chamou atenção imediatamente após chegar ao país: “Esse país não presta”. Isso lhe escandalizou, de tal maneira que, na Europa não há quem fale algo semelhante.
A noção de que alguém “fala” em nós, ou seja, que ruídos do nosso passado e da história de nossos ancestrais ecoam em nós, é muito importante para balizar as relações que estabelecemos.
Duas figuras são centrais na argumentação do psicanalista, são elas o colonizador e o colono. São figuras historicamente entrelaçadas ao nosso psiquismo tupiniquim. Ou seja, em nós, em nosso discurso, o colonizador e o colono falam.
“O colonizador é aquele que veio impor a sua língua a uma nova terra, ou seja, ao mesmo tempo demonstrar a potência paterna (a língua do pai saberá fazer gozar um outro corpo que não o corpo materno) e exercê-la longe do pai. Pois talvez o pai interdite só o corpo da mãe pátria, e aqui, longe dele, a sua potência herdada e exportada me abra o acesso a um corpo que ele não proibiu” (Calligaris, 2017, p.38).
A questão do colonizador se dá em gozar, extrair, tudo que há na nova terra, sem limites. Haja visto que o nome do país é o de seu produto mais presente na exploração inicial, completamente esgotado. Que significante, minha gente. Todavia, esta terra não é a mesma coisa que o corpo materno. Voltaremos a esse ponto.
“O colono é quem, vindo para o Brasil, viajou para outra língua, abandonando a sua língua materna… O colono não é um colonizador atrasado que poderia esperar participar da festa do colonizador. A sua esperança é outra: se ele adere à nova língua, não é para ter acesso a um corpo materno finalmente licencioso. O que o diferencia do colonizador parece ser a procura de um nome. Ele não vem fazer gozar a América, mas, na América, fazer um nome para si. Procura aqui, em outra língua, um novo pai que saiba interditar, colocar limites, e que talvez o reconheça como filho e cidadão” (Calligaris, 2017, p.41-42)
A existência desses dois fantasmas na fundação do “ser brasileiro”, me parece, pois, uma razão pela qual não há exatamente um sentimento de coletivo, ou coletividade entre nós. Somos nós contra eles, sempre.
As elites no Brasil estão sempre se remetendo à Europa como seu lugar de fato, “lá é que é bom, lá é que presta”. Portanto, nunca vieram verdadeiramente para cá, seu lugar ainda é a velha Europa. E isso reflete nas classes mais baixas da população. Vejam que os produtos de fora são os mais cobiçados, e fazer uma viagem para lá é o sonho de muitos, creio eu que, espelhados no desejo de um Outro (elites).
Uma frase que usa-se no cotidiano e é muito significante (literalmente) é: “Para os amigos, tudo, para os inimigos, a lei”. Dá-se mais valor às relações particulares do que as públicas. A educação que o diga.
(Imagem retirada da Internet)
Contardo afirma que não conseguiria escrever o mesmo texto hoje em dia, pois já está tomado por demais pelo “ser brasileiro”. Inclusive comenta desse momento de liberdade entre trazer o peso do passado (da cultura passada), e ser esmagado/inserido na cultura para onde você se destina.
Talvez o que eu queira dizer nessas linhas é apenas que o passado tem seu peso, e nos dirige, nos dias de hoje.
Monalisa, de Leonardo da Vinci, é um quadro que ficou famoso pela confusão causada àquele que o vê. Não se sabe ao certo se a moça sorri, se sofre, se desdenha, suspeita ou odeia. Não se sabe ao certo quais emoções estão ali representadas. Caberá sempre ao expectador da obra nomear os afetos, sentimentos e emoções. Mas a condição primordial para o sucesso do quadro é: apenas aqueles por ele enxergados. É claro que, na variedade da experiência humana, estes poderão ser variados de acordo com a experiência individual de quem vê.
Afeto, Emoção e Sentimento: Conceitos, Semelhanças e Diferenças
Segundo Karen Quigley et al (2014), não existe uma definição amplamente aceita sobre o que é a emoção. Talvez ela fosse um conjunto de pacotes coordenados de experiências de mudanças fisiológicas e de comportamento, ou um Estado Mental que as pessoas associam a algo dito no senso comum (raiva, medo, nojo, tristeza, alegria). E talvez emoções envolvam mudanças no afeto, mas mudanças no afeto nem sempre se transformam em emoções. Mas se preferirmos as definições aqui apresentadas, estaremos longe de algum tipo de consenso ou imparcialidade teórico-científica (QUINGLEY, K.S.; LINDQUIST, K.A. & BARRET, L.F., 2014).
E aqui falamos sobre a psicologia, as neurociências e a psicanálise. Estas que, às vésperas do segundo século de duração, discutem frequentemente um consenso definitivo ou próprio destas emoções, sentimentos e afetos.
A Sociedade dos Psicólogos tentará, com muita parcialidade (já que esta é bastante afetada pela psicanálise), trazer alguns destes conceitos e suas diferenças. Lembramos que isso acontecerá a partir de engendramentos oriundos de múltiplas fontes de leitura. Entretanto, há aqui um aviso: a maioria é psicanalítica. Por isso, são mais do que bem-vindos os comentários, as críticas e os complementos dos leitores deste artigo. Boa leitura.
Emoções e Sentimentos: Psicologia Experimental
Em 1879, em Leipzig, na Alemanha, surge o primeiro laboratório de Psicologia Experimental. Um de seus fundadores foi Wilhelm Wundt, o mesmo autor que, em 1873, publica o trabalho intitulado Principles of Physiological Psychology (Princípios de Psicologia Fisiológica). A intenção declarada de Wundt era, segundo ele mesmo, criar um novo campo do conhecimento: a psicologia.
Como um médico, naturalmente Wundt seria orientado pelas evidências observáveis necessárias para que um conceito seja aprovado pelo método científico. Portanto, o desejo de ser chamado de psicólogo o fez deparar-se, à época, com a dificuldade de explicar aquilo que se experiencia individualmente, aquilo que se passa dentro da cabeça, ou mente, de alguém. Aquilo que a dissecação do cérebro de um cadáver não poderia explicar por si só. Aquilo que se apresenta no relato, pois necessita dele, poderia se tornar, de fato, ciência?
Wundt diz que as sensações e os sentimentos seriam as duas formas básica de experiência humana, postulando ainda que, para que fossem observadas, seria necessária um exame do estado mental experienciado. O autoexame dos estados mentais era chamado por ele de introspecção.
A sensação seria um resultado da comunicação entre o Sistema Nervoso Central e os órgãos dos sentido [no Sistema Nervoso Periférico]. Ou seja, os impulsos resultantes da estimulação do tato, paladar, olfato, visão ou audição atingem o cérebro e aí se “sente” algo. O sentimento, para Wundt, já estaria ligado ao que se percebe na experiência imediata, ou seja, o prazer e o desprazer; a tensão e o relaxamento, e a excitação e a depressão. Para o filósofo, psicólogo e fisiologista, as emoções poderiam englobar este conjunto de percepções fisiológicas que acompanham a experiência.
Sigmund Freud (1856-1939)
Os séculos XIX e XX pareciam carregar, especialmente na França, Alemanha e Império Austro-Húngaro (futura Áustria, após o término da Primeira Guerra Mundial), um interesse especial dos médicos pela mente humana.
Após sua especialização na área de neurologia, o médico Sigmund Freud não se contenta: se encanta com os Estudos de Charcot sobre a Hipnose e o Inconsciente. Decide investigar mais detalhadamente os resultados da experiência, mas não só aquele oriundo das percepções fisiológicas, como também no comportamento contínuo e nas patologias que a medicina não conseguia explicar com sua biologia observável através do método científico.
Em obras importantes à sua teoria, como Estudos Sobre a Histeria (1893-1895), A Interpretação dos Sonhos (1899-1900), A Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901), Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905), Totem e Tabu (1913),O Eu e o Id (1923) e O Mal-Estar na Civilização/Cultura (1930) é possível observar que Freud, aos poucos, em uma crescente de seus conceitos, vai creditando à experiência da mente mais do que meros resultados fisiológicos captados pelos órgãos dos sentidos. As experiências postuladas por Wundt – de prazer e desprazer; tensão e relaxamento e excitação e depressão – eram também vistas por Freud através da relação daquele sujeito com aquilo e aqueles que o cercavam. Melhor dizendo, estas experiências seriam moldadas pelos afetos, os fluxos energéticos que acompanhavam as representações mentais criadas nas relações com os objetos externos à experiência individual. O sujeito seria afetado ao longo de suas relações interpessoais. Sua experiência individual era afetada por aqueles que lhe apresentavam e representavam o mundo (a linguagem). Portanto, a introspecção consciente não bastaria para entender as complexidades da mente – a própria consciência não o faria! Suas emoções apareciam de acordo com sua experiência afetiva histórica (talvez até pré-histórica!), ou seja, experienciaria sua raiva da maneira que aprendeu a fazê-lo a partir da relação com o Outro. E isso não seria diferente em sua alegria, medo, tristeza, nojo, vergonha ou culpa.
Contudo, na obra de Freud, o conceito de Pulsão se tornou o cerne de sua teoria. É altamente recomendado que você o conheça melhor ou o reveja no link a seguir:
Ao longo de sua obra, Freud enfatiza que estes processos acontecem em Instâncias Psíquicas diferentes que operam de forma conjunta. Seus nomes evoluem junto com seus estudos, mas, em geral, fixa-se o conceito de que: a consciência não governa os sujeitos, apenas auxilia na conciliação das exigências de seu Real Governador (o Inconsciente) e seus Simbólicos Órgãos de Fiscalização – A Leis, a Moral, as regras de convivência em Sociedade (1900). Freud ainda enfatiza que muitas experiências se perdem à consciência, e que a censura oriunda desta é uma forma de proteção ao desprazer, à tensão e à constante necessidade de excitação sensorial que as proibições sociais podem causar àquele que não consegue realizar e, portanto, satisfazer e obter descarga de excitação aos desejos oriundos do próprio Inconsciente. Tudo isso guiado por forças desconhecidas à consciência. Estas forças iriam além das instintivas, comuns aos animais. Portanto, falamos de forças que excederiam as buscas por sobrevivência e reprodução, mas que moveriam a experiência histórica dos seres humanos.
A questão é que tudo isso só aconteceria na relação do sujeito com o Outro. Na maneira em que o sujeito é afetado, após ser invadido pela linguagem, que o ligaria à sociedade, bem como às leis estruturais que a cercam. Portanto, as emoções e os sentimentos poderiam ser produtos da influência destas relações afetivas nas percepções sensoriais. De maneira mais simples: a maneira com que somos afetados subjetivamente, mentalmente, por algo ou alguém, nos permitirá experienciar no corpo o conjunto de sensações e percepções fisiológicas atreladas por associação e/ou causalidade àquilo. Isso ocorre à medida que nos relacionamos com o quê, quem, ou com representação simbólica daquilo que originalmente nos afetou. E, a partir da gravação mnêmica disso, poderíamos repetir um conjunto de afetos antigos a partir de um novo que é experienciado. Ou seja: se me entristece a morte de meu papagaio, em conjunto, a própria tristeza deste fato em si me fará entristecer mais uma vez pela morte de minha avó, algo ocorrido há dez anos.
Esboçamos um sorriso ao recebermos aquilo que fomos ensinados, através linguagem, como sendo um elogio. E o fazemos porque isso também implica que, da maneira que acreditamos ser que somos, nos tornamos objeto de desejo a alguém. Talvez o destino disso se chame alegria. Talvez alguns poetas relatem de uma maneira que se chame amor. Mas é certo que isso também poderá lembrar uma experiência antiga, como a alegria de saber-se amado pelos cuidadores que se tornaram nossas referência afetivas.
Os Outros Afetos
O psiquiatra francês Jacques Lacan (1901-1981) acata a maioria dos ensinamentos Freudianos e, de maneira que pode até lembrar uma crítica ou ruptura, os tenta complementar com o que traz do Estruturalismo de Ferdinand de Saussure, Claude Lévi-Strauss entre outros renomados autores. Mas aqui são citados os que falam mais sobre a linguagem e o estruturalismo.
Sua frase mais famosa é, sem dúvidas, aquela em que diz que O Inconsciente é Estruturado como uma Linguagem. As polêmicas interpretações possíveis são temporárias. Talvez, o mais aceito para o que se quis dizer aqui, pelo nem sempre simpático franco-psiquiatra, poderia ser que: assim como uma linguagem é estruturada, segundo Saussure (1916), a partir de um signo, significante e significado, o Inconsciente Freudiano, conforme Lacan o entenderia, também teria uma estrutura semelhante a esta em sua formação. E Lacan diria isso ao entender que os sujeitos estariam inseridos, invadidos, amarrados e barrados na sociedade através da linguagem. E as mesmas regras sobre a arbitrariedade do signo de Saussure, nas mesmas regras regentes da linguagem, Lacan viu semelhanças às regras que também poderiam reger o inconsciente de Freud. Por exemplo: os Mecanismos de Defesa de Condensação e Deslocamento, postulados por Freud como comuns aos sonhos, poderiam seguir as mesmas estruturas de figuras de linguagem como a metáfora e a metonímia, no que diria respeito à similaridade e contiguidade dos conteúdos. Sendo assim, A Interiorização das Regras dependeria da Interiorização da Linguagem. E a noção, a nomeação do próprio corpo, também. A linguagem se inscreveria nos corpos através de seus significantes, ou melhor, daqueles que vêm do Outro. Portanto, a linguagem estaria no corpo e na mente de maneira estruturada, sempre (bem ou mal) representada através de significantes ligados metafórica e metonimicamente em cadeia associativa.
A questão é que, segundo Lacan, muitos destes significantes, diferentemente do que é postulado por Saussure, poderiam carecer de significado se os observarmos apenas pela sua lógica conceitual. O significado dos signos, daquilo que está nas formas de representação, para Lacan, estaria nas relações com Outros significantes, em uma cadeia de representações inconscientes quase interminável. E de tudo isso dito, se indaga se os significantes também carregariam afeto. Em seu tom de voz, no volume de sua fala, na ordem escolhida para as palavras ou na velocidade do discurso adotado. Neste caso, os significantes também afetariam os sujeitos.
Como escutamos algo? Como somos afetados por algo? Através do que aquilo representa para nós.
E não seriam as emoções, portanto, resultados, destinos e traduções, daquilo que nosso corpo e nossa mente (ambos em função de uma cadeia de significantes) experienciam a partir dos afetos? Ou, pelo menos, como aprendemos a nomear tais coisas?
Aquela bronca que levei de meu pai quando andava de bicicleta na infância, por, segundo ele, estar indo muito rápido. Aquilo me gerou certa raiva ao momento. Sei que é raiva, uma vez que a linguagem, concedida, incidida em mim por meus semelhantes, me ensinou que este era o nome dado ao meu cerrar de punhos e lábios, do ranger de meus dentes e do calor facial (por conta do aumento do fluxo sanguíneo) que acompanham aquela vontade de praticar violência, aquela agressividade ou hostilidade. Entretanto, por ser uma criança em busca do amor de meus pais, eu que não me permitiria sentir esta vontade de aniquilação por quem tanto fazia e poderia fazer por mim. Portanto, consegui expulsá-la de minha consciência à tempo. Ufa! Mas, trinta anos depois, aconteceu um caso curioso: como que uma pessoa tão calma e serena como eu agrediria, violentamente, um guarda de trânsito num surto incontrolável de cólera? Apenas por este me dar uma multa por excesso de velocidade que pratiquei em minha motocicleta superpotente? Ou será que foi a adoção do mesmo tom de voz que, há muitos anos, fora empregado por meu pai? Será que o infeliz guarda de trânsito recebeu toda aquela raiva guardada por trinta anos, apenas por conta de seu timbre, entonação ou volume de voz? Ou foi também alguma outra relação desta cena com a aquela antiga, da bicicleta, que para a realização de um desejo infantil, se tornou uma moto muito potente? Será que foi a semelhança entre o conteúdo da multa e da bronca? Talvez tenha sido todo o conjunto de afetos associados a uma só emoção: a raiva.
Talvez no caso fictício acima tenhamos uma expressão da presença do afeto na linguagem e nas emoções. E aqui falamos de um em especial que tenha sofrido certa repressão da consciência (e é importante diferenciar esta do recalque, mas talvez em um texto à parte) e, anos mais tarde, através de significantes em cadeia de representação (bronca por andar de bicicleta muito rápido – multa por excesso de velocidade; raiva do pai – raiva da figura da Lei, o guarda; tom de voz do guarda – fonte de mobilização do afeto reprimido ao pai: a partir disso tudo, a percepção fisiológica atrelada à raiva – calor, cerrar de punhos, ranger de dentes – se liga ao ato e desejo anterior de agressividade).
Portanto, através da linguagem, os afetos se ligam às percepções sensoriais e podem provocar respostas fisiológicas aos estímulos externos, objetos externos ou significantes (podendo estes três serem um só). Seria isso então a emoção? Uma resposta fisiológica mobilizada pela apreensão de determinados afetos à certas representações de experiência subjetiva?
Os Três Afetos Sociais
A ligação dos afetos à linguagem parece ser tanta, que, para Lacan, três destes seriam exclusivamente sociais: A vergonha, o nojo e a culpa.
Tal afirmação se faria possível pois, para que estas aconteçam, seria preciso que já tenha havido a Interiorização das Regras. Ou seja, a criança ou o adulto precisam conhecer aquilo que se exige e se proíbe socialmente. É necessário já ter sido apresentado, invadido, barrado, representado e afetado pela Linguagem.
Os bebês não parecem sentir vergonha da percepção que teriam os alheios ao cheiro de suas fezes. Mas, é no mínimo curioso, que alguns adultos sofram até de sérias complicações intestinais porque a mera possibilidade de passar vergonha apenas lhes permite defecar em sua própria casa. Talvez pelo medo do julgamento alheio sobre seus próprios odores. Paralelamente, as crianças, nos primeiros anos de vida, não parecem sentir nojo das próprias fezes. Em certa idade, é até possível vê-las exibindo estas aos adultos, como uma espécie de orgulho; as deixando por aí, quase como presentes de fabricação própria: na sala, no quarto ou em algum lugar da casa de fácil visualização.
Antes da Interiorização das Regras, ou seja, da vivência da Castração, no Complexo de Édipo, na Fase Fálica (3-6 anos) da teoria do desenvolvimento psicossexual freudiano, não se tem vergonha dos próprios órgãos genitais à mostra na praia, na rua ou na reunião de família. O próprio manuseio destes, em forma de obtenção de prazer, às vezes acontece em público até que os adultos ensinem a criança que isso não é aceitável. Em contrapartida, já me foi possível conhecer o relato de mulheres que não conseguiram tirar a roupa em um quarto de motel; de homens que utilizavam objetos como desodorantes, pilhas, controle remoto, etc. para que fizesse volume em sua sunga antes de ir à praia. Suas óbvias motivações eram a vergonha do próprio corpo nu.
A culpa também parece ser ausente na criança que, se não guiada corretamente pelos cuidadores, pode até maltratar, agredir e machucar animais, insetos e até outras crianças – enquanto demonstra o deleite daquele divertimento através de seu sorriso puro e simples. Há ali uma diversão não permitida pelas regras sociais que acompanham a invasão da linguagem.
Portanto, a linguagem também afeta as emoções, principalmente aquelas homônimas a estes afetos supracitados, que são experienciadas através da relação com o Outro. Através do ser visto fazendo; do fazer sendo visto; do se ver fazendo, do ver fazendo e sobre como tudo isso lhe afeta.
O Mais ‘Puro’ dos Afetos
Para Lacan (1901-1981), a angústia seria o mais puro dos afetos. Por ser aquilo que se experiencia logo ao saber, ao estranhar, ao separar a imagem de si próprio daquela do Outro.
Os Outros afetos derivariam da angústia. Seja de deformações desta, seja de formas a fugir dela como ela mesma, como possibilidade. A vergonha poderia ser angústia de saber-se não amado e/ou tal possibilidade? O nojo poderia ser a fuga da angústia que poderia causar a memória de algo que já foi prazer em outros tempos? Ex: a criança que brincava com as próprias fezes não consegue sequer ouvir tal palavra sem sentir um grande incômodo psíquico na vida aduta.
Numa investigação mais detalhada, talvez seja possível até encontrar na essência de uma vergonha, nojo ou culpa, a presença de uma ou algumas fantasias inconscientes. Acredito ser bem possível, a não ser que se considere, na psicanálise, uma mera coincidência a ampla presença da fala “eu sou tímido” no meio artístico. Curiosamente, esta acaba sendo uma fala recorrente no meio que concerne à prática do teatro, talvez a maior exposição do próprio ser ao julgamento alheio – aquilo que os tímidos abominam à todo custo. Como ator amador, não foram raras as vezes que a ouvi de algumas pessoas que, momentos antes, observei, explicitamente, quebrarem muitas “regras sociais” ao palco. Mas aí entraríamos na discussão do que representaria a figura do personagem ao sujeito, coisa para Outro texto.
Quando se diz que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, inclui-se a dimensão do afeto, já que a linguagem também traz afeto através de suas entonações, timbres e, principalmente, por quem (o quê) a traz.
O afeto e as emoções, talvez não pudessem ser uma descarga de excitações endógenas dos órgãos perceptivos, exclusivamente, uma vez que eles acompanham muitos significantes em suas apresentações e representações. Se a emoção é o destino do afeto, esta rota entre origem e destino só poderia ser traçada através da linguagem. Por exemplo, a angústia perante possibilidade de não ser amado pelo Outro ao falar palavrões, impede que algumas pessoas os falem ou os escutem sem enrubescer de vergonha ou que os falem de fato. Em casos extremos, a própria escuta ou possibilidade de fala de tais significantes barrados pela linguagem, poderia angariar descargas de angústia através de sintomas como ansiedade, pânico e fobias em geral.
O afeto acontece na relação do sujeito com o Outro. Acontece em como o sujeito, sem querer querendo, se afeta nesta relação. O Outro o afeta com sua linguagem e este, quando a aprende, inevitavelmente carrega as excitações por esta produzida em seu corpo e, principalmente, ao conteúdo psíquico ao qual estas ficaram ligadas (através de representações e/ou significantes). Se aprendo a linguagem com o Outro, aprendo à maneira com que esta me afeta na relação intra e intersubjetiva. Portanto, se a emoção é o destino do afeto, individualmente falando, aprendo com meus pais que sinto raiva enquanto a percebo através da linguagem apresentada por eles. Sendo afetado por eles, através das representações simbólicas associadas através da linguagem, ligo estes afetos que carrego junto à minha definição de raiva às minhas percepções de experiências sensoriais neurobiofisiológicas. Isso tudo, através de uma relação estabelecida na cadeia de significantes que também carregam afeto. É preciso dizer que este processo seria inconsciente?
Estas percepções neuro biofisiológicas me causam calor, aumento do fluxo e pressão sanguíneos, contração dos músculos da face (sobrancelhas franzidas, lábios cerrados, olhos brilhantes), das mãos e de outras áreas do corpo. Entendo que, na relação que tenho com os Outros que me afetam, que minha emoção (raiva) é o resultado da não satisfação imediata daquilo que acredito que me trará prazer; da ausência de alívio de minha tensão, e/ou da descarga de excitação sensorial (ver grifo em A Interpretação dos Sonhos, Freud, S. 1900. cap. 7) que agora só me parece possível através da agressividade. Mas é também importante saber que isso me foi trazido também através da linguagem.
Entretanto, se isso é nomeado e apresentado por aqueles que diariamente me afetaram, de alguma forma mais intensa, em algum período mais crítico de minha formação psíquica, poderá haver certa ligação entre meus atos, aquilo que entendo destes e a percepção disto em meu corpo com desejos, expectativas e valores destas pessoas – geralmente subjetivamente entendidos como próprios. Sendo dado o nome de emoção a esta resposta fisiológica àquilo que me cerca, variando sua excitação sensorial de acordo com o que meu corpo e mente seriam, histórica e pré-históricamente programados. Há uma descarga de excitação biológica, uma experiência de um conjunto de hormônios, sensações e percepções aos órgãos dos sentido e do Sistema Nervoso Central e Periférico, a partir de um conjunto de afetos que um determinado ato pode representar com um significante, objeto externo e/ou estímulo.
Se fui censurado na infância pelo meu pai, e tive que reprimir ou até recalcar a maneira com que fui afetado por isso, talvez com raiva, ódio ou desejo de aniquilação através da força impulsionada por minha agressividade (situação inaceitável à consciência, que obrigaria o sentimento de gratidão ao amor dos pais), alguém que me censurar com uma fechada no trânsito poderia, em seu azar, experimentar toda aquela descarga bio-psico-fisiológica que aquela raiva, agora representada num soco, produziu e reservou décadas atrás. Se isso for verdade, certamente seria por conta desta pessoa da fechada ser responsável, sem saber, por eliciar uma representação afetiva simbólica (significante) linguisticamente associada às respostas e movimentos de meu organismo.
A Emoção se torna condicionada às representações do afeto que a linguagem foi capaz amarrar ao corpo, mas ainda da maneira que o indivíduo a experiencia por conta própria. Mas pra quê serve, então?
É preciso dizer que nos primórdios existenciais do Homo Sapiens, as descargas fisiológicas oriundas das emoções que eram experienciadas poderiam até apresentar um papel relativo à sobrevivência e à reprodução da espécie. Como por exemplo: há uma descarga de adrenalina (frio na barriga), dilatação da pupila (visão mais precisa do mundo externo), aumento da produção de energia (oxigênio – coração disparado ao extremo) para que se corra ou se lute perante uma ameaça à vida. Mas, nos dias de hoje, esta experiência é descrita perfeitamente por aqueles encaminhados ao psicólogo ou psicanalista pelo cardiologista, que visitaram com um ataque agudo de ansiedade, geralmente confundido com um infarto agudo do miocárdio.
Curiosamente, isso acontece fora da floresta. Bem distante mesmo. Geralmente em situações que não oferecem risco algum á vida, como por exemplo: sentados no confortável sofá da própria casa.
Os sentimentos, por último, poderiam ser aqueles afetos e emoções que estão unidos através do laço social. A tradução social dos afetos. Através da linguagem compartilhada. Os sentimentos poderiam ser os afetos que chegaram ao coletivo, já que a maioria é sentida de maneira tão pessoal e única que parece não haver compreensão daquilo por alguém que não seja o sujeito ele próprio.
Os escritores e poetas e músicos são aclamados porque conseguem transformar os afetos vivenciados em sentimentos, pois foram, através da linguagem, traduzidos do individual para o coletivo. Isto é, através do que eles escrevem é possível ao leitor ler e escutar os próprios afetos. Encontrar representação. Estes seriam dificilmente verbalizados durante a própria experiência, mas agora estão perfeitamente localizados, representados nos significantes escolhidos por aqueles que souberam unir sua experiência idiossincrática à coletiva. Algo possível apenas àqueles dotados de uma avançada percepção da linguagem, perante aquilo que os afeta.
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REFERÊNCIAS – *Também considerar as bibliografias citadas apresentadas ao longo do texto (Por ordem livre).
Afeto, emoção e sentimento na psicanálise | Christian Dunker | Falando nIsso 146
Quingley, K. S.; Lindquist, K. A. & Barret, L. F. (2004). Inducing and Measuring Emotion and Affect. In Handbook of Research Methods in Social and Personality Psychology. Ed(s) Reis, H.T.; Judd, C.M. Cambridge University Press. p. 220-252
Ravanello, Tiago, Dunker, Christian Ingo Lenz, & Beividas, Waldir. (2018). Para uma Concepção Discursiva dos Afetos: Lacan e a Semiótica Tensiva. Psicologia: Ciência e Profissão, 38(1), 172-185. https://dx.doi.org/10.1590/1982-37030004312016
É famosa a frase que diz: o crime não compensa. Mas será que a vida em Civilização o faz? Em um de seus últimos trabalhos, Freud (1856-1939) tenta, com o conhecimento que acumulou durante toda a sua vida de neurologista e psicanalista, entender como ocorreu a formação da cultura. E mais: como esta se assemelha e se difere da formação psíquica dos indivíduos que a formam. Entretanto, no atual conjunto de culturas do mundo globalizado, o Brasil é conhecido por traços que cruzam corrupção, futebol, nudez, praias e festas e, mais recentemente, pela alarmante desigualdade de renda e o alto índice de crimes contra o patrimônio. Poderíamos entender estes fenômenos como parte de uma cultura madura ou como sintomas de uma cultura? Mais ainda: quais seriam os sintomas que esta cultura causaria em nossos indivíduos? É o que o artigo a seguir tentará expor em conjunto com uma leve revisada na obra de Sigmund Freud publicada em 1930. Afinal: furtar tornou-se frutífero? No Brasil o Crime compensa o Castigo?
Um estudo conduzido em 2011 por João Paulo de Resende, mestre em economia pela UFMG e por Mônica Viegas Andrade, doutora em economia pela FGV, teve como alvo os crimes cometidos em municípios brasileiros com mais de 100 mil habitantes. Sua conclusão final, baseada exclusivamente em dados empíricos, foi que: os níveis de desigualdade de renda (poucas pessoas ricas, muitas pessoas pobres) nestes municípios estavam frequentemente relacionados aos níveis de ocorrência de crimes contra o patrimônio (furtos, roubos, latrocínios) e pouco aos crimes passionais, onde o indivíduo, quando exposto a alguma situação que o leva a intenso estresse emocional, apresenta um lapso na inibição de seus impulsos e comete um crime – geralmente contra quem o propicia tal estresse.
Esta conclusão empírica nos faz crer, a princípio, que quanto maior o patrimônio de poucos, mais indivíduos (geralmente os de pouco patrimônio), cometerão crimes que têm o patrimônio em si como alvo. Como se nesta relação empírica houvesse uma reivindicação inconsciente da maior recompensa que a civilização capitalista moderna oferece ao indivíduo: a satisfação através dos materiais de consumo. É importante, é claro, ressaltar que quando esta satisfação é buscada através do crime, ela dispensa uma das grandes engrenagens de uma sociedade: o trabalho – e, principalmente, as renúncias de prazer que este envolve. Será que quando falamos dos crimes relacionados ao patrimônio, poderíamos também dizer que, no caso do furto, também o indivíduo furta-se dos sacrifícios às satisfações? Sacrifícios estes que são tão exigidos pelo trabalho. E no roubo, também não rouba-se o prazer, a satisfação que ostenta o Outro, de maneira considerada injusta por um que não a alcança, por mais prometida que esta lhe seja, perante suas renúncias?
Desigualdade de Renda no Brasil
Uma pesquisa recente, realizada pelo economista Thomas Piketty e um conceituadíssimo grupo de pesquisadores em seu apoio, aponta que, no Brasil, quase 30% da renda do país se encontra com apenas 1% da população. E, para complementar, 10% da população mais rica do país também carrega 55% de toda a renda local. A óbvia lógica disso tudo? Mais pessoas dividem menos dinheiro enquanto menos pessoas dividem mais dinheiro.
Isso até poderia ser menos incômodo se, proporcionalmente, todos pagassem taxas de impostos equivalentes ao que ganham. Entretanto, além da progressiva taxa dos impostos de renda, o Brasil traz uma tributação nos bens de consumo – a principal fonte de satisfação insinuada pela nossa atual sociedade – de cerca de 40% do valor. Ou seja, um produto de 100 reais, custa cerca de 40 reais em impostos. Acontece que, quando o salário mínimo do país é um pouco menos de 1000 reais, estes 40 reais se tornam um pouco mais de 4% de todos os ganhos de uma pessoa que recebe um salário mínimo, atualmente considerada como pobre (sem contar o valor que esta pessoa já paga de imposto de renda, cerca de 8%). Mas, ao mesmo tempo, se uma pessoa que recebe um salário que gira em torno de 100.000 reais compra o mesmo produto de 100 reais, se aqui não falhar a matemática de alguém das ciências humanas, esta pessoa gastará apenas 0,1% de seu salário. Ou seja, em termos de proporção do patrimônio, os mais pobres acabam cedendo mais de seu patrimônio em impostos do que os mais ricos. E isso se amplifica mais ainda se falarmos sobre Lucros e Dividendos de empresas (que em alguns casos excede a casa dos milhões), onde praticamente não há imposto cobrado.
Ou seja, mesmo que as pessoas mais pobres sacrifiquem seus impulsos pelo sono, pela farra, pelo sexo e pela agressividade pelo bem da sociedade, estas não serão tão bem recompensadas pelos sacrifícios quanto as pessoas mais ricas. É como teria dito o filósofo Zizek: “há alguém furtando o nosso gozo”. Será que, na suspeita do furto de um gozo, furta-se a metáfora para o retorno literal da palavra? Ou seja: a suspeita do furto (metafórico) do gozo ocasionaria o gozo do furto (literal)?
O Mal-Estar na Civilização
Já no ano de 1930, Sigmund Freud (1856-1939) publica uma de suas obras mais importantes, denominada “O Mal-Estar na Civilização” (“O Mal-Estar na Cultura” em algumas traduções). Arriscando o perigo de sintetizar demais, poderia-se dizer que ali Freud (2011) tentava explicar – através da relação de muitas de suas obras anteriormente produzidas, de poemas e romances de Schiller e Goethe, de apontamentos realizados por Rousseau e outros filósofos ou até criticando a tese do comunismo trazida por Karl Marx – sua tese de que as exigências de uma cultura (ou de uma civilização), estariam – sem exceção – em desacordo com os impulsos agressivos e/ou destrutivos e sexuais dos indivíduos que a ela pertencem. E, a partir daí, os indivíduos deveriam procurar outras formas de felicidade, seja para o encontro ou prazer ou para o evitar do desprazer. Alguns se isolam, alguns usam drogas lícitas ou ilícitas, alguns amam; alguns trabalham, alguns fazem amigos, alguns adoecem e/ou ficam loucos; alguns fazem bem ao próximo, outros simplesmente infringem as regras e aceitam as punições (ou fogem delas enquanto é possível). Há ainda os que fazem isso tudo ao mesmo tempo enquanto acreditam fazer parte de uma casta, considerada por eles mesmos como boa da sociedade – aqui falamos dos cristãos, mas, sejamos justos: nem todos e nem só estes.
E Freud (2011) continua, dizendo que pode-se até encontrar relação àquilo que frequentemente está inconsciente na neurose mas explícito nos preceitos estabelecidos em uma civilização através de suas Leis e regras – a necessidade de inibição de impulsos agressivos e sexuais que, apesar de causarem satisfação imediata nos indivíduos, estão em desacordo com o considerado necessário para o bom convívio em sociedade. O resultado esperado, segundo o psicanalista (2011), era que a cultura ou civilização, juntamente com o indivíduo, deveriam criar, através da evolução de um sentimento de culpa, uma eficiente instância de censura a estes impulsos – um Supereu. Ou seja, a cultura oferece repressão, através da retirada do Direito à Liberdade (prisão), caso o indivíduo exponha seus impulsos agressivos através de um crime e transgrida as Leis, da mesma forma que a criança perderia o amor dos pais se fizesse o mesmo, ou pior, expusesse sua sexualidade e agressividade inata, fora do que é aceito aos pais daquela época, através da Castração, no Complexo de Édipo.
Mas conforme Freud (2011) explica, o papel do Supereu excederia o medo à repressão através da perda da liberdade ou do amor dos pais, o Supereu teria um papel Superior de censura. Do tipo que forçaria os indivíduos a algo além de renunciar às satisfações que mais acreditam que lhes daria prazer por medo das represálias: o próprio desejo de realizar tais satisfações já causaria culpa e às vezes até autoagressão, não sendo o ato necessário. Como se o processo fosse automático, introjetado e mantido pelos indivíduos. Entretanto, é ressaltado pelo Pai da Psicanálise (2011) que, mesmo que nem tudo seja satisfeito, para que haja algum tipo de organização psíquica no indivíduo saudável, ele precisará direcionar estes impulsos proibidos às formas de expressão aceitas pela sociedade, em sua busca pela sua satisfação. Ou seja, uma criança muito agressiva, por não poder manter este comportamento na vida adulta, em função das Leis da Sociedade, poderá se tornar um adulto lutador de artes marciais – e há de se observar que, paradoxalmente, estes indivíduos costumam ser pessoas calmas e pacíficas, uma vez que conseguem expor seus impulsos agressivos através de suas atividades. Da mesma forma, supõe-se na sociedade que aquele que abdicar do prazer imediato e se dedicar ao trabalho e não cometer crimes, poderá ter dinheiro para consumir os produtos que lhe trarão satisfação – carros, motos, celulares, aparelhos eletrônicos e roupas em geral. Mas o que acontece quando esta abdicação não é recompensada e, ainda por cima, é exibida em Outros que parecem realizá-la em menor ou nula medida?
Se arriscarmos um palpite no que foi dito por Freud (2011), poderíamos dizer que enquanto um sintoma do indivíduo por renunciar os desejos que vê causar prazer no Outro é a neurose, um sintoma da cultura que faz indivíduos renunciarem seus desejos e não lhes dá a satisfação (no caso da cultura capitalista, o consumo) é a criminalidade. E podemos ir adiante dizendo que, assim como o sintoma é a maneira negativa da realização do desejos em paralelo à sublimação como maneira positiva; a criminalidade apareceu como uma maneira negativa desta realização e, além do trabalho, que nem sempre ou quase nunca a cumpre, um novo fenômeno parece encurtar este caminho.
E a tese inicial do neurologista, aquela em que ele diz que haverá sempre uma divergência entre o exigido pela cultura e o que é desejado pelo indivíduo (2011), parece fazer muito mais sentido quando falamos sobre o sentimento de injustiça, sentido através da desigualdade de renda, e o que os Estudos Econômicos de Resende e Andrade (2011) publicaram sobre a relação desta desigualdade com o aumento dos crimes contra o patrimônio. Como se a desigualdade de renda corroborasse uma prévia recusa, através da criminalidade, à renúncia dos indivíduos aos impulsos, mas não ao gozo que é atribuído ao suposto prêmio por tal renúncia.
Conclusão
Poderíamos então dizer que a formação de uma civilização terá como base um mecanismo semelhante à formação psíquica de um indivíduo: para que tudo dê certo, renúncias serão necessárias. Mas supõe-se, erroneamente, que todos os indivíduos partem de uma mesma constituição psíquica na hora de criar-se uma Constituição Federal. Ou seja, esqueceram que haverá um conjunto de indivíduos que não estão dispostos a abrir mão de suas satisfações pelo bem-estar de sua cultura – a partir daí, viu-se necessário a criação de um sistema prisional. Mas, entrelinhas, parece haver a insinuação, por parte da sociedade, que está garantido a quem cumprir com suas renúncias e horas de trabalho, o gozo através do consumo. Contudo, a desigualdade de renda de um país parece acabar desmentindo esta suposição.
Quando o Brasil é tomado como exemplo, vê-se que uma pequena parte da população detém uma enorme parte das riquezas, ou seja, do gozo através do consumo. Em outras palavras, pesquisas recentes sobre a desigualdade de renda apontam, de cara, que alguém irá obter mais satisfação; poucos gozarão mais do que muitos. Isso quer dizer que já está pressuposto a muitos que optarem pelo sacrifício de seus prazeres imediatos a ausência daquela prometida satisfação. Eis a dúvida de quem é pobre por aqui: “a renúncia de minha satisfação, sob o único risco de sofrer a privação da liberdade por algum tempo, vale mais a pena? Por quanto tempo conseguirei assistir ao gozo do Outro com menos sacrifícios do que eu?”.
A pesquisa evidenciada no começo do artigo parece, de alguma forma, apontar que há na Sociedade Brasileira, ao menos nas cidades com mais de 100 mil habitantes, uma constante reivindicação pelo gozo através do patrimônio. Através de uma vasta pequisa de dados empíricos, viu-se que quanto mais patrimônio é reservado à pequenas parcelas da população, mais crimes contra o patrimônio são registrados em uma sociedade. É como se as Massas informassem, de forma violenta e irracional, que recusam o sacrifício desproporcional ao gozo do Outro. Como se a criminalidade fosse o ato de ignorar a placa que diz “não pise na grama”, enquanto o gozo através do patrimônio fosse o ato de chegar ao lado oposto; mas parece que lá já se encontra alguém, separado pela mesma grama, que não precisou dar a cansativa volta que indica aquele caminho preestabelecido. Portanto, parece que, quando se deparam com este outro alguém em pleno gozo com menor sacrifício, mais pessoas optam por pisar na grama e, não obstante, tentam expulsar o Outro do lugar que agora acreditam terem chegado.
Se há mais dinheiro para se dividir com menos gente e, consequentemente, menos sacrifícios para esta pequena parcela, a outra parcela, aquela que dividirá menos dinheiro com mais pessoas, terá mais sacrifícios a fazer. Mas a pesquisa de Resende e Andrade (2011) indica que, nestas situações, parece haver uma recusa às Leis na mesma medida. Uma recusa aos sacrifícios e uma tomada violenta e simbólica do prazer que enxergou o Outro satisfazendo: nega-se o esforço do trabalho exaustivo por pouco dinheiro e acata-se a tomada do patrimônio através do crime. Apesar desta ser uma informação de teor óbvio, é importante ressaltar que este artigo não está legitimando crime algum, muito pelo contrário, as relações entre os meios empregados pelos neuróticos para fugir das restrições da cultura (álcool, amor, isolamento, construções, consumo e trabalho), podem encontrar também, para uma parcela da população, refúgio no crime, quando ele passa a acontecer em proporções tão frequentes que chega a compensar.
O sujeito tem sua constituição psíquica formada da mesma forma que a cultura tem sua Constituição Federal. E assim como o neurótico, que quando finalmente aceita a abdicação da satisfação de seus impulsos agressivos e/ou sexuais em nome das exigências da cultura, sofre com o sintoma da neurose como forma de punição e realização à renúncia destes desejos inconscientes que não foram compensados através da sublimação; a Cultura também poderá sofrer a punição da elevação da criminalidade, crescente à medida em que as pequenas gratificações (o consumo, o gozo de bens materiais) não vêm de encontro, de maneira igualitária, aos sacrifício dos neuróticos que nela vivem mas continuam sendo seu objeto de desejo pregado como ideal dela mesma.
Isso não quer dizer que a ideia comunista seja a solução. O próprio Freud, neste mesmo texto (2011), já refuta esta ideia, dizendo que há no ser humano o impulso à agressividade para com o Outro que excederá sua realização apenas através da propriedade privada; portanto, não será o fim desta o sinônimo do fim da violência. Também sabemos que anos mais tarde, através dos resultados da implantação do sistema econômico transicional do socialismo em vários países do mundo, com o comunismo como finitude, pudemos observar que a suposição de que todos os indivíduos poderiam partilhar de uma renda comum, de um estilo de vida igualitário, acabaria no campo utópico. Confirmando as previsões de Freud, o socialismo acabou mais sendo utilizado como transição a algum Outro tipo de ditadura do que ao comunismo em si.
Mas, para finalizar, algo há de ser dito: seja no capitalismo, socialismo ou comunismo, o ser humano parece não ficar livre de seus impulsos mais primitivos de agressividade e sexualidade, principalmente quando estes se mostram de maneira incessante, como é o caso das Pulsões. E por mais que a cultura exista exclusivamente para conter estes impulsos e permitir uma vida pacífica entre os indivíduos inibidos entre si, ela precisará, de alguma forma, compensar a renúncia de todos estes de maneira satisfatória através de suas possibilidades de sublimação oferecidas. De outro modo, haverá aquilo que a história e agora as estatísticas nos apontam: violência. Roubo (como é o caso explicitado aqui no artigo), homicídio ou suicídio; tomada do Poder, aniquilação do Outro ou aniquilação de si. Para a cultura não importa, o que prejudica um ou outro indivíduo, a prejudica, de um modo ou de Outro, como um todo. Porque se a neurose é um sintoma do indivíduo, a criminalidade é um sintoma da cultura.
Brazil – WID – World Inequality Database (Top 1% fiscal income share, Brazil, 2001-2015 and Top 10% fiscal income share, Brazil, 2001-2015) – Thomas Piketty and group. http://wid.world/country/brazil/
Freud, Sigmund, 1856-1939. O mal-estar na civilização/ Sigmund Freud ; tradução Paulo César de Souza. – 1ª ed. – Sâo Paulo : Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.
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Afina, o que é dependência química? É caso de polícia ou de Saúde Pública? O que fazer?
Ainda se alguém não conheceu um dependente químico, com certeza já ouviu falar sobre o assunto nos noticiários. Seja sobre a famosa "cracolândia", seja sobre as ações politico-policiais que a envolvem. Mas o que caracteriza a dependência química? Qual a diferença entre um usuário eventual e um dependente? A melhor solução seria cadeia, internação ou nenhum dos dois?
A Sociedade dos Psicólogos preparou um texto exclusivo sobre o assunto.
O que é Dependência? Quem pode ser considerado um dependente químico?
Como podemos diferenciar um usuário de um dependente? É muito comum observarmos na grande mídia a utilização de termos como “usuários” e “dependentes”. Mas o que significa cada um destes termos?
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS) a dependência química é uma doença crônica, progressiva (piora com o passar do tempo) e primária — pois outras doenças aparecem em sua decorrência. A dependência química é um transtorno mental caracterizado por um grupo de sinais e sintomas decorrentes do uso de drogas.
De acordo com um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) divulgado em junho de 2017, 5% da população mundial consumiu algum tipo de droga em 2015 (aproximadamente 250 milhões de pessoas) e pelo menos 190 mil morreram neste mesmo ano por causas diretas relacionadas com entorpecentes.
O Relatório Mundial sobre Drogas da ONU, mostra especial preocupação pois há cerca de 29,5 milhões de pessoas que sofrem com transtornos graves pelo consumo de drogas.
Uso, Uso nocivo e Dependência:
Pode-se entender que o Uso é caracterizado como a administração de qualquer quantidade de substância psicoativa no organismo.
Na definição dada pela OMS, através da Classificação Internacional de Doenças (CID-10), o chamado "abuso", é chamado de Uso Nocivo, caracterizado por:
• Evidência de correlação entre o uso da substância e danos físicos, psicológicos e/ou comprometimento das capacidades de julgamento ou disfunções comportamentais;
• Dano claramente identificável à vida do usuário;
• Uso contínuo durante um mês ou repetido ao longo de 12 meses;
• Com exceção da intoxicação aguda, não há critérios que identifiquem outro transtorno relacionado à substância em questão.
Ainda seguindo os padrões do CID-10, a Dependência é caracterizada por:
• Forte desejo ou compulsão pelo uso da droga;
• Incapacidade de controlar os níveis de consumo;
• Presença da Síndrome de Abstinência (conjunto de Sinais e Sintomas físicos e/ou psicológicos após interrupção do uso de substâncias);
• Tolerância à substância;
• Abandono de atividades prazerosas ou de grande interesse para o consumo de drogas;
• Uso contínuo apesar das consequências.
O Uso de Drogas no Brasil
Uma vez que conseguimos entender melhor as definições tão utilizadas na grande mídia, será possível que possamos nos aprofundar mais no assunto. Entretanto, é necessário algum embasamento: como é o uso de drogas no Brasil?
Apesar de poucas pesquisas realizadas, existem dados que mostram um pouco sobre como o brasileiro se relaciona com as drogas.
A Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD) realizou duas pesquisas para entender como se dava a relação da população brasileira com as drogas lícitas e ilícitas.
Tais pesquisas foram realizadas em domicílios e em universidades.
Uso de Drogas — Um Levantamento Domiciliar
Em 2005, 7.939 pessoas passaram por entrevistas feitas diretamente em domicílios de todo o país. Foram feitas perguntas específicas e garantia de sigilo. Assim, foi realizado o II Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil: Estudo Envolvendo as 108 Maiores Cidades do País. Realizado pelo SENAD.
Através dele, foi possível identificar que, entre os brasileiros:
• 74,3% já fizeram uso de Álcool na vida, enquanto 38,3% no último mês;
• 44,0% já fizeram uso de Tabaco na vida, enquanto 18,4% no último mês;
• 8,8% já fizeram uso de Maconha na vida, enquanto 1,9% no último mês;
• 2,9% já fizeram uso de Cocaína na vida, enquanto 0,4% no último mês;
• 0,7% já fizeram uso de Crack na vida, enquanto 0,1% no último mês.
Confira a pesquisa completa.
Uso de Drogas entre Universitários:
Já em um outro estudo, alguns resultados são um pouco mais elevados. No estudo realizado com 12.711 universitários em Instituições de Ensino Superior (públicas e privadas) em todas as regiões do país em 2010, a Secretaria Nacional de Politicas sobre Drogas, ao realizar o I Levantamento Nacional sobre o uso de álcool,tabaco e outras drogas entre universitários das 27 capitais brasileiras, constatou:
• 86,7% já havia feito uso de Álcool alguma vez na vida, enquanto 60,5% fizeram uso nos últimos 30 dias;
• 26,1% já havia feito uso de Maconha ou variações dela alguma vez na vida, enquanto 9,1% fizeram uso nos últimos 30 dias;
• 7,7% já havia feito uso de Cocaína alguma vez na vida, enquanto 1,8% fizeram uso nos últimos 30 dias;
• 1,2% já havia feito uso de Crack alguma vez na vida, enquanto 0,2% fizeram uso nos últimos 30 dias.
Confira a pesquisa completa.
Há uma Epidemia de Dependência Química no Brasil?
A impressão que temos ao observar os noticiários ou ações policiais é de que o Brasil apresenta índices altíssimos de dependência de drogas. Entretanto, as pesquisas acima parecem não justificar todo este alarde.
Mas o que poderia, então, ser motivo de tanta preocupação e veiculação do assunto à nossa mídia?
Por que há a preocupação de alguns políticos em mobilizar forças policiais, autorizações de internação compulsória e uma clara política de combate às drogas no país?
As crackolândias são problemas reais, mas o uso de drogas não parece ser tão alarmante assim. Então o que poderia ocasionar este fenômeno nas grandes cidades?
Ainda é difícil dar uma resposta definitiva a esta pergunta. Entretanto, algo é fato: existe um perfil específico de usuário que frequenta as crackolândias — e é possível que aqui more algum tipo de explicação.
O Perfil do Usuário — Quem usa Crack no Brasil?
Em 2013, juntamente com a Fundação Oswaldo Cruz e o Ministério da Saúde, a Secretaria Nacional de Política Sobre Drogas (Ministério da Justiça) realizou outra pesquisa, desta vez diretamente sobre o uso de Crack e outras drogas, tentando identificar o perfil dos usuários.
Os pesquisadores entrevistaram cerca de 7 (sete) mil usuários de crack/similares em todos os estados do Brasil e no Distrito Federal.
Era necessário ter mais de 18 (dezoito) anos e ter usado Crack, Pasta Base, Merla ou Oxi em pelos 25 dias nos últimos 6 (seis) meses.
A partir desta pesquisa, pode-se finalmente traçar um perfil dos usuários de Crack no Brasil com uma amostra significativa. Algo inédito até então.
Segundo a pesquisa, temos:
A "cara" do Dependente Químico:
• Mais de 50% dos usuários de Crack têm entre 18 e 29 anos;
• Cerca de 80% são do sexo masculino;
• 80% são de etnia considerada "não-branca" (pardos ou negros).
Nível de Escolaridade:
• 5% não terminou nenhuma série sequer;
• 55% tem escolaridade localizada no período da 4ª à 8ª série do Ensino Fundamental;
• Cerca de 20% possuí Ensino Médio completo ou Incompleto
• 5% possui Ensino Superior.
Onde mora o Dependente Químico?
• 40% dos usuários declaram morar em casa ou apartamento próprio ou da família;
• 35% relataram estar em situação de rua.
Drogas Utilizadas em Conjunto com o Crack e Similares:
• 92,1% admite ter feito uso de Tabaco;
• 83,8% admite ter feito uso de Álcool;
• 76,1% admite ter feito uso Maconha;
• 52,2% admite ter feito uso Cocaína.
Fatores que Motivaram o Uso de Crack/Similares:
• 58% dos usuários dizem que o uso se deu por ter conseguido a droga ou ter sentido vontade/curiosidade de conhecer seus efeitos;
• 29,2% relacionam o uso às perdas afetivas (lutos, términos de relacionamento, etc), problemas familiares e/ou abuso sexual;
• 26,7% alegam que foi a pressão dos amigos;
• 8,8% à falta de perspectiva ou uma vida ruim;
• 1,6% à perda do emprego ou fonte de renda.
Outro dado alarmante é que 78,9% dos usuários de crack e/ou similares disseram vontade de realizar tratamento.
A pesquisa conclui, portanto, que o usuário de Crack no Brasil costuma ser um homem jovem, negro ou pardo, que foi pouco escolarizado; que mora na rua, usa mais de uma droga, tem pouco contato com a família e/ou amigos ou histórico de violência física e/ou sexual; além de querer realizar tratamento contra a dependência.Clique aqui para visualizar a pesquisa na íntegra.
Um Relato em Primeira Pessoa
Será que é possível estabelecer uma relação entre o relato do usuário acima e os dados da pesquisa?
• O homem aparenta ter entre 30 e 40 anos, é negro e está desempregado;
• Sua residência é uma moradia improvisada — uma casa de madeira;
• Relata que o uso da droga o afugenta de seus problemas pessoas (20-25 pedras por dia) e também faz uso de outras drogas;
• Possui uma relação distante de sua família;
• Quer realizar tratamento (já realizou 12 vezes);
• Sente-se sem forças, sem perspectiva de vida e socialmente estigmatizado;
• Tem um histórico de perdas
Observando o perfil dos usuários e a desestabilização que a dependência em crack causa, podemos até, por alguns momentos, a entendermos também como um problema social.
Contudo, este viés dificilmente é abordado nas soluções oferecidas aos usuários — frequentemente vistos como criminosos reais ou potenciais.
Mas quais são as soluções atualmente oferecidas?
Seriam elas as mais efetivas?
A Solução
Em função do aumento exponencial da concentração de usuários de crack nas grandes cidades, podemos observar maiores índices de roubos, furtos e tráfico de drogas nas redondezas de onde se instalam as crackolândias. Em uma relação lógica, o aumento da criminalidade fará necessária a mobilização de um maior emprego da força policial. Entretanto, há quase um consenso entre os especialistas: este é um problema de saúde pública.
Após anos e mais anos da adoção de medidas como: o aumento do policiamento, das investigações criminais e de ações violentas de dispersão de usuários, as políticas de combate à crackolância pareceram finalmente visualizá-la como um problema de Saúde Pública. Entretanto, na Cidade de São Paulo, por exemplo, um dos pontos mais polêmicos desta nova visão foi a solicitação de prévia autorização judicial para a internação compulsória.
Afinal, seria esta a solução mais adequada para o tratamento da drogadição?
Internação Compulsória é Efetiva?
Em fevereiro de 2016, um grupo de pesquisadores publicou no The International Journal of Drug Policyo artigo: The effectiveness of compulsory drug treatment: A systematic review.
O artigo tinha exatamente o objetivo de analisar se há indícios científicos de eficiência nas políticas de tratamentos compulsórios que eram impostas a alguns usuários — no que diz respeito às reduções de reincidências no uso de drogas e crimes praticados por seus usuários.
Foram selecionados 430 estudos em potencial (em língua inglesa, espanhola e portuguesa) para que a partir daí fosse feita uma triagem dos que serviriam ao critério. Entretanto, a deficiência no número de pesquisas sobre o assunto foi alarmante: apenas 9 (nove) estudos puderam ser utilizados.
Os estudos incluíam vários tipos de tratamento compulsório — inclusive aqueles que aconteciam após prisões por uso de drogas (como acontece em alguns estados dos EUA — um país que apresentou dados compatíveis aos que o estudo necessitava).
Dentro destes casos, avaliou-se como os tratamentos impostos (entre eles a internação compulsória) seriam eficientes para cessar o uso de substâncias, bem como a reduzir as taxas de reincidência nos crimes praticados por usuários após a realização do tratamento compulsório.
Dentre os nove estudos que puderam ser utilizados, concluiu-se que:
• Em três destes estudos (33%), não foram encontrados impactos significativos nos tratamentos compulsórios quando estes são comparados com políticas de prevenção do uso de drogas;
• Em dois estudos (22%), os resultados foram considerados equivocados, mas não foram comparados com as políticas de prevenção;
• Em dois estudos (22%), os resultados observados foram considerados negativos no que diz respeito aos impactos dos tratamentos compulsórios na reincidência de crimes;
• Em dois estudos, os resultados observados foram considerados positivos, no que diz respeito aos impactos do tratamento compulsório na reincidência de crimes.
Em uma conclusão final o artigo concluiu que, de fato, a literatura científica ainda está limitada, no que diz respeito à avaliação da eficiência dos tratamentos compulsórios perante o uso de drogas.
Entretanto, também diz que os poucos estudos disponíveis não sugerem melhores resultados nas abordagens de tratamento compulsórias.
Os autores ainda enfatizaram que alguns estudos sugeriam potenciais danos em tais abordagens.
A mensagem final deixada pelos cientistas foi que: considerando o potencial que o tratamento compulsório tem para o abuso dos direitos humanos, deve-se priorizar as modalidades de tratamento não-compulsórias buscando reduzir os danos relacionados.
Apesar de o estudo não ser focado exclusivamente na Internação Compulsória, ele no mínimo aponta que não há evidências diretas na eficácia de tratamentos realizados contra a vontade do usuário.
Confira o artigo (em inglês) na íntegra.
Qual é a melhor solução?
Com a precariedade de estudos científicos sobre o tema, ainda é muito difícil definir a melhor abordagem sobre o assunto. No vídeo a seguir, temos o relato de alguns ex-usuários falando sobre como foram seus tratamentos, suas novas perspectiva de vida e as dicas que dão aos que buscam ajuda.
Há também no vídeo, o posicionamento do Doutor Arthur Guerra, que já foi Presidente do International Council on Alcohol and Addictions -ICAA e hoje é Professor Titular de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Medicina do ABC e Professor Associado do Departamento de Psiquiatria da FMUSP.
Complementando o posicionamento do ex-usuários e do especialista, a Sociedade do Psicólogos também acredita que pode-se combater a dependência química com mais veemência a partir:
• Da Realização de Programas de Prevenção ao Uso de Drogas nas escolas e comunidades:
Se os leitores bem se lembram, existe um perfil dos usuários de drogas. Dentro deste perfil, podemos observar que o nível de escolaridademais comum entre os usuários de crack no Brasil é definido nas séries do Ensino Fundamental. A partir desta informação, é possível que haja uma abordagem de prevenção focada principalmente nos estudantes deste curso. Recomenda-se que esta abordagem seja realizada por profissionais do ramo — psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais e agentes de saúde;• Do Aumento Significativo no Investimento e Incentivo de Pesquisas Científicas:
Não só no Brasil, mas no mundo inteiro ainda existe um número precário de pesquisas a respeito da eficácia das diferentes modalidades de abordagem nos tratamentos de drogadição. O investimento em pesquisas científicas sobre o assunto é algo considerado crucial para que surjam novas modalidades de tratamento ou melhoria nas que estão atualmente disponíveis;
• Do Aumento da Inclusão de Políticas Sociais — Moradia, Reinserção no Mercado de Trabalho, Reinserção no Ambiente Escolar, etc:
Levando em consideração que os usuários mais comuns pertencem a um grupo em situação de vulnerabilidade social, é possível identificar (ou ao menos supor) que muitas vezes o uso de drogas está relacionado à ausência de condições básicas que garantem a dignidade humana (uma vez que uma parcela significativa dos usuários está em situação de rua, tem baixa escolaridade e pouco ou nenhum contato afetivo). Uma hipótese neste caso ,seria se a recuperação do que foi perdido (ou nunca conquistado) poderia impactar nos níveis do uso de substâncias.
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