Psicologias da Emoção: teorias e implicações

Psicologia das emoções
(O filme Divertida Mente [Inside Out], 2015, Disney-Pixar, ilustra bem várias questões relacionadas ao desenvolvimento e ao uso das emoções)
Todos os dias e em quase todos os momentos estamos em contato com as nossas emoções e a psicologia científica estuda emoções desde o seu surgimento. Embora muitas estruturas, fenômenos e leis tenham sido investigadas, ainda não há um consenso sobre o que são as emoções e como elas acontecem. Diversos modelos de experiência emocional já foram propostos ao longo da história e, no texto de hoje, vou abordar algumas das principais teorias e descobertas que tocam a vida emocional humana. Quando falamos de emoção, falamos daquilo que é pulsional e mobiliza o comportamento em virtude de uma função (social/comunicação; proteção/sobrevivência); falamos daquilo que te faz sorrir e pular de alegria, de forma involuntária, frente à uma conquista, por exemplo; e falamos daquilo que acontece com você no caso de se deparar com um leão enorme rugindo na sua frente: você paralisa por um instante, sua pálpebra superior se eleva e sua pupila dilata, você encara a fera enquanto seu cérebro cuida de desviar o sangue do seu corpo em direção às suas pernas e, antes que você pense muito, já se percebe correndo/fugindo.

Falar de emoção é também se emocionar, olhar para si, para seus sinais corporais, expressões faciais, pensamentos associados, sentimentos, alterações respondentes (cardíacas, sudorese, enrubescer…). É falar sobre as valências emocionais, isso é, suas intensidades e sensações associadas (positivas ou negativas). É viver emoções primarias (básicas/universais) e secundárias (sociais/culturais). É tentar diferencias emoções, sentimos e afetos. É apreciar a leveza e a paz que um alívio pode trazer e perceber também que o nojo te protege de ingerir algo tóxico e prejudicial. Venha pela trilha emocional e lembre-se sempre que “as emoções determinam a qualidade das nossas vidas” (P. Ekman).

Charles Darwin: o pai do comportamento emocional

O comportamento emocional é essa força viva, universal e involuntária que faz o indivíduo responder de maneira previsível quando o assunto é a experiência emocional genuína/espontânea (quando uma pessoa, de fato, sente uma emoção). O trecho abaixo apresenta alguns exemplos do comportamento emocional.

O sorriso verdadeiro durante a vivência da alegria;
O paralisar, correr ou lutar frente à situação de perigo;
A elevação do pitch vocal e “tremor na voz” durante a sensação de ansiedade;
A dilatação e a contração pupilar referente não a alteração da luminosidade do ambiente, mas à alteração emocional particular de alguém;
O aumento no uso de gestos manipuladores durante a emoção negativa;
O ruborizar durante a vergonha ou raiva, por exemplo.

(Ferreira, 2018, p. 11)

Psicologia das emoções expressão facial duchenne
(Duchenne realizou experimentos de eletroestimulação em músculos da face humana, durante uma investigação sobre a fisiologia das emoções que influenciou Darwin.)

Se hoje podemos falar de comportamento emocional universal, vale lembrar que foi em 1872 que Charles Darwin publicou “A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais”, onde propôs, de forma pioneira, que as emoções e suas expressões não seriam produto cultural ou decorrente de processos de aprendizagem, mas seriam universais e partilhadas, de maneira comum, por todos os membros de uma mesma espécie. Trocando em miúdos, segundo Darwin, todos os cachorros do mundo expressam raiva e medo da mesma forma e todos os humanos do mundo expressam alegria e tristeza da mesma forma, por exemplo, e isso acontece de forma instintiva – como resultado de uma interação dialética evolutiva entre a espécie, sua sobrevivência e seu meio. Ao longo do livro, Darwin relaciona diversos comportamentos (encolher-se, eriçar de pelos, empalidecer, elevar a pálpebra, abrir a boca, abaixar as sobrancelhas, franzir o nariz etc…) com base em suas funções práticas para lidar com uma situação

Como a surpresa é provocada por algo inesperado ou desconhecido, quando nos assustamos, naturalmente desejamos descobrir a causa tão logo quanto possível. E consequentemente, abrimos bem os olhos, de forma que o campo de visão seja ampliado, e os olhos possam mover-se facilmente em qualquer direção.

(Darwin, 1972/2009 p. 241)

Darwin chegou a essas suas conclusões por meio de suas próprias observações e arcabouços teóricos sobre a evolução e seleção natural, contou também com o aporte de relatos enviados por colegas viajantes que contavam como eram as expressões emocionais das pessoas em diferentes pontos da Terra e também se baseou nos trabalhos do Dr. Duchenne, que em 1862 publicou uma pioneira investigação fotográfica sobre a expressão facial das emoções em seres humanos.

Teoria James-Lange

Uma das primeiras teorias da emoção, dentro da chamada psicologia moderna, foi proposta por William James (1842-1910) e Carl George Lange (1834-1900), que chegaram às mesmas conclusões após trabalharem de forma independente. A premissa básica é que a sensação emocional vem depois de uma excitação fisiológica e, dessa forma, as emoções são vistas como a experiência de conjuntos de alterações corporais que acontecem após um estímulo emocional.

Para exemplificar, se pensarmos em uma situação que envolve um urso raivoso na nossa frente, a tendência é pensar que sentimos medo e então corremos/fugimos, mas a teoria James-Lange aponta uma outra ordem para os comportamentos. Ela vai nos dizer que primeiro há as alterações fisiológicas (elevação dos batimentos cardíacos, dilatação da pupila e comportamento de correr) para depois, com o conjunto disso, ser experienciada a emoção de medo. Trocando em miúdos, diz que não sentimos medo e por isso fugimos, mas fugimos e por isso, sentimos medo. Nessa visão, o princípio vale para todas as emoções e seus comportamentos associados, isso é, ficamos tristes porque choramos e não o contrário. Caso você se pergunte, por exemplo, por que se sente alegre? A teoria de James-Lange diria que, como você está respirando rápido e seu coração está mais acelerado, seu cérebro concluiu que você está alegre.

Estímulo emocional → Padrão de resposta fisiológica → Experiência afetiva

Talvez essa lhe pareça uma teoria absurda (é até considerada contra intuitiva), mas já existem estudos de informação retroativa (facial feedback hypotesys) que apresentam dados sobre como certas mímicas faciais e comportamentos acabam por disparar neurotransmissores específicos relacionados com estados emocionais (assunto esse, para outro post).

Teoria Cannon-Bard

Uma teoria posterior criticou a visão de James-Lange, ao afirmar que as mesmas manifestações fisiológicas poderiam estar presentes em emoções muito distintas, isso é, o medo é acompanhado sim por aumento da frequência cardíaca e sudorese, mas essas mesmas alterações fisiológicas acompanham outras emoções como a raiva, e até estados patológicos, como a febre. Dessa forma, Walter Cannon (1871-1945) e Philip Bard (1898-1977) propuseram que o sistema nervoso central seria o causador, tanto das manifestações fisiológicas, quanto da experiência emocional, e isso ocorreria ao mesmo tempo, como processos paralelos (e não sequenciais, em comparação com a teoria anterior). A teoria Cannon-Bard é conhecida também como uma teoria “talâmica” das emoções, em referência à estrutura cerebral “tálamo”, pois foi Bard quem descobriu que todas as informações sensoriais, motoras e fisiológicas tem que passar pelo diencéfalo (particularmente o tálamo), antes de serem submetidas a qualquer processamento adicional.

Dessa forma, frente ao mesmo urso raivoso, pela teoria Cannon-Bard, as mudanças fisiológicas (elevação dos batimentos cardíacos, dilatação da pupila e comportamento de correr) ocorrem ao mesmo tempo em que a sensação de medo enviada.

James-Lange Cannon-Bard Psicologia das emoções
(Quadro comparativo entre as teorias James-Lage e Cannon-Bard)

O circuito de Papez

sistema límbico papez psicologia emoções
(imagem ilustra os componentes originais do circuito de Papez [interligados por setas grossas], e aqueles acrescentados por outros pesquisadores [interligados por setas finas]. Lent, 2010, p. 720).
A teoria Cannon-Bard foi a primeira tentativa concreta de compreensão das bases neurais emocionais e acabou atraindo a atenção de vários neurocientistas. James Papez (1883-1958) foi um deles e foi responsável por mudar a noção de um “centro emocional cerebral” para um “sistema” ou “circuito cerebral das emoções“, isso é, revendo a literatura da época e apontando um conjunto de regiões associadas à experiência emocional.

Papez percebeu que essas regiões eram conectadas reciprocamente de modo “circular”, o que revelava uma rede neural que ficou conhecida como circuito de Papez. Mais tarde aproveitou-se um termo antigo criado pelo neurologista Paul Broca, e o circuito de Papez passou a ser conhecido como sistema límbico.

(Lent, 2010, p.720)

Paul Ekman: a teoria neuro-cultural

Uma vez que começamos com as propostas universais de Darwin, quero fechar o texto com descobertas emocionais que dialogam com as hipóteses dele. Com fins de recapitulação, Darwin disse, em 1862, que as expressões emocionais são inatas e universais. Com pesquisas transculturais realizadas, principalmente nos anos 1960 e 1970, foi possível validar a afirmação de Darwin para 6 emoções básicas com expressões faciais universais (alegria, tristeza, raiva, nojo, medo e surpresa), isso é, independente de onde nasceu e como foi criada uma pessoa, ao entrar em contato com uma dessas emoções, ela vai movimentar músculos na face que são organizados, conhecidos e previsíveis.

Um dos psicólogos responsáveis por mapear as expressões faciais universais foi Paul Ekman (1934- ) que, em um de seus estudos, comparou a expressão emocional entre japoneses e estadunidenses e percebeu que eles apresentavam as mesmas expressões faciais quando estavam sozinhos assistindo aos vídeos do estudo, mas que os japoneses, mais do que os estadunidenses, mascaravam emoções negativas (medo e nojo) com a exibição de um sorriso. Essa investigação apontou um fenômeno que hoje é conhecido como “regras de exibição” ou “costumes” (display rules) e, sobre elas, Ekman diz:

são socialmente aprendidas, muitas vezes culturalmente diferentes, a respeito do controle da expressão, de quem pode demonstrar que emoção para quem e de quando pode fazer isso. Eis por que, na maioria das competições esportivas públicas, o perdedor não demonstra a tristeza e o desapontamento que sente. As regras de exibição estão incorporadas na advertência dos pais: “pare de parecer contente”. Essas regras podem ditar a diminuição, o exagero, a dissimulação ou o fingimento da expressão do que sentimos.

(Ekman, 2003, p. 22)

Ekman neuro cultural emoções psicologia
(Paul Ekman e nativos Fore na Papua Nova-Guiné)

Em outro estudo posterior, Ekman foi para a Papua Nova-Guiné analisar a expressão emocional de uma tribo socialmente isolada – os Fore. Lá, com máquina fotográfica e fotografias de faces emocionais, ele chegou a conclusão sobre a universalidade de 6 emoções básicas inatas. Vale dizer que outros pesquisadores, como Carroll Izard, estavam, ao mesmo tempo, realizando estudos paralelos e chegaram a conclusões que também apontavam para a existência de expressões faciais universais. Ekman desenvolveu então a teoria neuro-cultural das emoções, que aponta características universais e inatas relacionadas às estruturas e ao funcionamento cerebral, mas também aponta a influência da cultura naquilo que diz respeito à permissividade ou não de uma exibição emocional. Foi só o começo…nos anos 70, uma ferramenta científica de mensuração da ação facial foi criada, o Facial Action Coding System (FACS), que permite analisar e medir qualquer expressão facial realizada por um ser humano. Nos anos 80, novas evidências foram encontradas e a emoção desprezo foi incorporada à lista das emoções básicas universais. Estudos comparativos entre atletas cegos e atletas com visão foram feitos e as expressões forma sempre as mesmas. Por meio das pesquisas de Ekman, hoje falamos também das famílias das emoções, isso é, o saber que a alegria compreende prazeres sensoriais, alívio, diversão, contemplação…. que o medo compreende ansiedade, receio, terror… que a raiva compreende aborrecimento, irritação, fúria… Por meio do legado de Paul Ekman, podemos também nos entreter assistindo o Lie to Me e nos deleitar com o, sempre emocional, Divertida Mente.

Referências

Darwin, C. (2009). A expressão das emoções no homem e nos animais. (Leon de Souza Lobo Garcia, Trad.). São Paulo: Companhia das Letras. (Obra original publicada em 1872).

Ekman, P. (2003). A linguagem das emoções: revolucionando sua comunicação e seus relacionamentos reconhecendo todas as expressões das pessoas ao redor. São Paulo: Lua de Papel.

Ferreira, C. (2018). Estudos sobre a mensuração científica da face humana: vol. 1 – o guia do emocionauta. São Paulo: CICEM Ed.

Lent, R. (2010) Cem bilhões de neurônios?: conceitos fundamentais de neurociência. São Paulo: Ed. Atheneu.

Por Caio Ferreira

Para saber mais (CURSO)

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Breve comentário sobre o texto Hello, Brasil, de Contardo Calligaris

 

Hello, Brasil hoje

Em uma semana tão aguardada pelos brasileiros, acho válido comentar sobre um texto que analisa o Brasil (ele mesmo, como se fosse um sujeito), e que, principalmente traz a visão de alguém de fora.

Me refiro à um texto de Contardo Calligaris, psicanalista, escritor e dramaturgo italiano radicado aqui no Brasil. Com origem em Milão, Calligaris se formou em Epistemologia e Letras, na Suíça. Depois, em Paris, em meio ao Doutorado em Semiologia, começa à se analisar, o que desperta seu interesse em Psicanálise.

Seu primeiro contato com o Brasil se dá no final dos anos 80, quando começar a proferir uma série de palestras e aceitar alguns pacientes. Desde os meados dos anos 2000, se estabeleceu de maneira definitiva no país.

Atualmente assina uma coluna semanal no jornal A Folha de São Paulo, além de ser roteirista da série televisiva Psi, do canal HBO.

 

Os artigos que compõe o texto foram compilados e publicados originalmente em 1991, e sofreram uma revisão, tendo sido relançado no ano passado.

Colonizador e Colono

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(Nova edição do texto Hello, Brasil)

Tentarei apontar alguns elementos do texto que acho relevante, e algumas noções que talvez nos sejam úteis ao pensar o nosso eterno “país do futuro”. O importante aqui é questionar como se formou (e se forma) o laço social no Brasil, como as relações são estruturadas. Sugiro que se remetam ao texto original para localizarem as observações completas de Contardo.

No início do texto, Calligaris aponta uma frase que lhe chamou atenção imediatamente após chegar ao país: “Esse país não presta”. Isso lhe escandalizou, de tal maneira que, na Europa não há quem fale algo semelhante.

A noção de que alguém “fala” em nós, ou seja, que ruídos do nosso passado e da história de nossos ancestrais ecoam em nós, é muito importante para balizar as relações que estabelecemos.

Duas figuras são centrais na argumentação do psicanalista, são elas o colonizador e o colono. São figuras historicamente entrelaçadas ao nosso psiquismo tupiniquim. Ou seja, em nós, em nosso discurso, o colonizador e o colono falam.

 

“O colonizador é aquele que veio impor a sua língua a uma nova terra, ou seja, ao mesmo tempo demonstrar a potência paterna (a língua do pai saberá fazer gozar um outro corpo que não o corpo materno) e exercê-la longe do pai. Pois talvez o pai interdite só o corpo da mãe pátria, e aqui, longe dele, a sua potência herdada e exportada me abra o acesso a um corpo que ele não proibiu” (Calligaris, 2017, p.38).

A questão do colonizador se dá em gozar, extrair, tudo que há na nova terra, sem limites. Haja visto que o nome do país é o de seu produto mais presente na exploração inicial, completamente esgotado. Que significante, minha gente. Todavia, esta terra não é a mesma coisa que o corpo materno. Voltaremos a esse ponto.

“O colono é quem, vindo para o Brasil, viajou para outra língua, abandonando a sua língua materna… O colono não é um colonizador atrasado que poderia esperar participar da festa do colonizador. A sua esperança é outra: se ele adere à nova língua, não é para ter acesso a um corpo materno finalmente licencioso. O que o diferencia do colonizador parece ser a procura de um nome. Ele não vem fazer gozar a América, mas, na América, fazer um nome para si. Procura aqui, em outra língua, um novo pai que saiba interditar, colocar limites, e que talvez o reconheça como filho e cidadão” (Calligaris, 2017, p.41-42)

A existência desses dois fantasmas na fundação do “ser brasileiro”,  me parece, pois, uma razão pela qual não há exatamente um sentimento de coletivo, ou coletividade entre nós. Somos nós contra eles, sempre.

As elites no Brasil estão sempre se remetendo à Europa como seu lugar de fato, “lá é que é bom, lá é que presta”. Portanto, nunca vieram verdadeiramente para cá, seu lugar ainda é a velha Europa. E isso reflete nas classes mais baixas da população. Vejam que os produtos de fora são os mais cobiçados, e fazer uma viagem para lá é o sonho de muitos, creio eu que, espelhados no desejo de um Outro (elites).

Uma frase que usa-se no cotidiano e é muito significante (literalmente) é: “Para os amigos, tudo, para os inimigos, a lei”. Dá-se mais valor às relações particulares do que as públicas. A educação que o diga.

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(Imagem retirada da Internet)

Contardo afirma que não conseguiria escrever o mesmo texto hoje em dia, pois já está tomado por demais pelo “ser brasileiro”. Inclusive comenta desse momento de liberdade entre trazer o peso do passado (da cultura passada), e ser esmagado/inserido na cultura para onde você se destina.

Talvez o que eu queira dizer nessas linhas é apenas que o passado tem seu peso, e nos dirige, nos dias de hoje.

Bom domingo à todos.

Até a próxima.

Por Igor Banin

PS:

Segue o link para a fala do psicanalista no Café Filosófico:

Referências Bibliográficas

Calligaris, C. (2017). Hello Brasil e outros ensaios. São Paulo: Três estrelas.

 

O Que São Afetos, Emoções e Sentimentos? Quais as Diferenças entre Eles?

Monalisa

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Monalisa, de Leonardo da Vinci, é um quadro que ficou famoso pela confusão causada àquele que o vê. Não se sabe ao certo se a moça sorri, se sofre, se desdenha, suspeita ou odeia. Não se sabe ao certo quais emoções estão ali representadas. Caberá sempre ao expectador da obra nomear os afetos, sentimentos e emoções. Mas a condição primordial para o sucesso do quadro é: apenas aqueles por ele enxergados. É claro que, na variedade da experiência humana, estes poderão ser variados de acordo com a experiência individual de quem vê.

Afeto, Emoção e Sentimento: Conceitos, Semelhanças e Diferenças

Segundo Karen Quigley et al (2014), não existe uma definição amplamente aceita sobre o que é a emoção. Talvez ela fosse um conjunto de pacotes coordenados de experiências de mudanças fisiológicas e de comportamento, ou um Estado Mental que as pessoas associam a algo dito no senso comum (raiva, medo, nojo, tristeza, alegria). E talvez emoções envolvam mudanças no afeto, mas mudanças no afeto nem sempre se transformam em emoções. Mas se preferirmos as definições aqui apresentadas, estaremos longe de algum tipo de consenso ou imparcialidade teórico-científica (QUINGLEY, K.S.; LINDQUIST, K.A. & BARRET, L.F., 2014).

E aqui falamos sobre a psicologia, as neurociências e a psicanálise. Estas que, às vésperas do segundo século de duração, discutem frequentemente um consenso definitivo ou próprio destas emoções, sentimentos e afetos.

A Sociedade dos Psicólogos tentará, com muita parcialidade (já que esta é bastante afetada pela psicanálise), trazer alguns destes conceitos e suas diferenças. Lembramos que isso acontecerá a partir de engendramentos oriundos de múltiplas fontes de leitura. Entretanto, há aqui um aviso: a maioria é psicanalítica. Por isso, são mais do que bem-vindos os comentários, as críticas e os complementos dos leitores deste artigo. Boa leitura.

Emoções e Sentimentos: Psicologia Experimental

Em 1879, em Leipzig, na Alemanha, surge o primeiro laboratório de Psicologia Experimental. Um de seus fundadores foi Wilhelm Wundt, o mesmo autor que, em 1873, publica o trabalho intitulado Principles of Physiological Psychology (Princípios de Psicologia Fisiológica). A intenção declarada de Wundt era, segundo ele mesmo, criar um novo campo do conhecimento: a psicologia.

Como um médico, naturalmente Wundt seria orientado pelas evidências observáveis necessárias para que um conceito seja aprovado pelo método científico. Portanto, o desejo de ser chamado de psicólogo o fez deparar-se, à época, com a dificuldade de explicar aquilo que se experiencia individualmente, aquilo que se passa dentro da cabeça, ou mente, de alguém. Aquilo que a dissecação do cérebro de um cadáver não poderia explicar por si só. Aquilo que se apresenta no relato, pois necessita dele, poderia se tornar, de fato, ciência?
Wundt diz que as sensações e os sentimentos seriam as duas formas básica de experiência humana, postulando ainda que, para que fossem observadas, seria necessária um exame do estado mental experienciado. O autoexame dos estados mentais era chamado por ele de introspecção.

A sensação seria um resultado da comunicação entre o Sistema Nervoso Central e os órgãos dos sentido [no Sistema Nervoso Periférico]. Ou seja, os impulsos resultantes da estimulação do tato, paladar, olfato, visão ou audição atingem o cérebro e aí se “sente” algo. O sentimento, para Wundt, já estaria ligado ao que se percebe na experiência imediata, ou seja, o prazer e o desprazer; a tensão e o relaxamento, e a excitação e a depressão. Para o filósofo, psicólogo e fisiologista, as emoções poderiam englobar este conjunto de percepções fisiológicas que acompanham a experiência.

Sigmund Freud (1856-1939)

Os séculos XIX e XX pareciam carregar, especialmente na França, Alemanha e Império Austro-Húngaro (futura Áustria, após o término da Primeira Guerra Mundial), um interesse especial dos médicos pela mente humana.

Após sua especialização na área de neurologia, o médico Sigmund Freud não se contenta: se encanta com os Estudos de Charcot sobre a Hipnose e o Inconsciente. Decide investigar mais detalhadamente os resultados da experiência, mas não só aquele oriundo das percepções fisiológicas, como também no comportamento contínuo e nas patologias que a medicina não conseguia explicar com sua biologia observável através do método científico.

Em obras importantes à sua teoria, como Estudos Sobre a Histeria (1893-1895), A Interpretação dos Sonhos (1899-1900), A Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901), Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905), Totem e Tabu (1913), O Eu e o Id (1923) e O Mal-Estar na Civilização/Cultura (1930) é possível observar que Freud, aos poucos, em uma crescente de seus conceitos, vai creditando à experiência da mente mais do que meros resultados fisiológicos captados pelos órgãos dos sentidos. As experiências postuladas por Wundt – de prazer e desprazer; tensão e relaxamento e excitação e depressão – eram também vistas por Freud através da relação daquele sujeito com aquilo e aqueles que o cercavam. Melhor dizendo, estas experiências seriam moldadas pelos afetos, os fluxos energéticos que acompanhavam as representações mentais criadas nas relações com os objetos externos à experiência individual. O sujeito seria afetado ao longo de suas relações interpessoais. Sua experiência individual era afetada por aqueles que lhe apresentavam e representavam o mundo (a linguagem). Portanto, a introspecção consciente não bastaria para entender as complexidades da mente – a própria consciência não o faria! Suas emoções apareciam de acordo com sua experiência afetiva histórica (talvez até pré-histórica!), ou seja, experienciaria sua raiva da maneira que aprendeu a fazê-lo a partir da relação com o Outro. E isso não seria diferente em sua alegria, medo, tristeza, nojo, vergonha ou culpa.

Contudo, na obra de Freud, o conceito de Pulsão se tornou o cerne de sua teoria. É altamente recomendado que você o conheça melhor ou o reveja no link a seguir:

O que é Pulsão? Qual é a Diferença entre Pulsão e Instinto?

Ao longo de sua obra, Freud enfatiza que estes processos acontecem em Instâncias Psíquicas diferentes que operam de forma conjunta. Seus nomes evoluem junto com seus estudos, mas, em geral, fixa-se o conceito de que: a consciência não governa os sujeitos, apenas auxilia na conciliação das exigências de seu Real Governador (o Inconsciente) e seus Simbólicos Órgãos de Fiscalização – A Leis, a Moral, as regras de convivência em Sociedade (1900). Freud ainda enfatiza que muitas experiências se perdem à consciência, e que a censura oriunda desta é uma forma de proteção ao desprazer, à tensão e à constante necessidade de excitação sensorial que as proibições sociais podem causar àquele que não consegue realizar e, portanto, satisfazer e obter descarga de excitação aos desejos oriundos do próprio Inconsciente. Tudo isso guiado por forças desconhecidas à consciência. Estas forças iriam além das instintivas, comuns aos animais. Portanto, falamos de forças que excederiam as buscas por sobrevivência e reprodução, mas que moveriam a experiência histórica dos seres humanos.

A questão é que tudo isso só aconteceria na relação do sujeito com o Outro. Na maneira em que o sujeito é afetado, após ser invadido pela linguagem, que o ligaria à sociedade, bem como às leis estruturais que a cercam. Portanto, as emoções e os sentimentos poderiam ser produtos da influência destas relações afetivas nas percepções sensoriais. De maneira mais simples: a maneira com que somos afetados subjetivamente, mentalmente, por algo ou alguém, nos permitirá experienciar no corpo o conjunto de sensações e percepções fisiológicas atreladas por associação e/ou causalidade àquilo. Isso ocorre à medida que nos relacionamos com o quê, quem, ou com representação simbólica daquilo que originalmente nos afetou. E, a partir da gravação mnêmica disso, poderíamos repetir um conjunto de afetos antigos a partir de um novo que é experienciado. Ou seja: se me entristece a morte de meu papagaio, em conjunto, a própria tristeza deste fato em si me fará entristecer mais uma vez pela morte de minha avó, algo ocorrido há dez anos.

Esboçamos um sorriso ao recebermos aquilo que fomos ensinados, através linguagem, como sendo um elogio. E o fazemos porque isso também implica que, da maneira que acreditamos ser que somos, nos tornamos objeto de desejo a alguém. Talvez o destino disso se chame alegria. Talvez alguns poetas relatem de uma maneira que se chame amor. Mas é certo que isso também poderá lembrar uma experiência antiga, como a alegria de saber-se amado pelos cuidadores que se tornaram nossas referência afetivas.

Os Outros Afetos

O psiquiatra francês Jacques Lacan (1901-1981) acata a maioria dos ensinamentos Freudianos e, de maneira que pode até lembrar uma crítica ou ruptura, os tenta complementar com o que traz do Estruturalismo de Ferdinand de Saussure, Claude Lévi-Strauss entre outros renomados autores. Mas aqui são citados os que falam mais sobre a linguagem e o estruturalismo.

Sua frase mais famosa é, sem dúvidas, aquela em que diz que O Inconsciente é Estruturado como uma Linguagem. As polêmicas interpretações possíveis são temporárias. Talvez, o mais aceito para o que se quis dizer aqui, pelo nem sempre simpático franco-psiquiatra, poderia ser que: assim como uma linguagem é estruturada, segundo Saussure (1916), a partir de um signo, significante e significado, o Inconsciente Freudiano, conforme Lacan o entenderia, também teria uma estrutura semelhante a esta em sua formação. E Lacan diria isso ao entender que os sujeitos estariam inseridos, invadidos, amarrados e barrados na sociedade através da linguagem. E as mesmas regras sobre a arbitrariedade do signo de Saussure, nas mesmas regras regentes da linguagem, Lacan viu semelhanças às regras que também poderiam reger o inconsciente de Freud. Por exemplo: os Mecanismos de Defesa de Condensação e Deslocamento, postulados por Freud como comuns aos sonhos, poderiam seguir as mesmas estruturas de figuras de linguagem como a metáfora e a metonímia, no que diria respeito à similaridade e contiguidade dos conteúdos. Sendo assim, A Interiorização das Regras dependeria da Interiorização da Linguagem. E a noção, a nomeação do próprio corpo, também. A linguagem se inscreveria nos corpos através de seus significantes, ou melhor, daqueles que vêm do Outro. Portanto, a linguagem estaria no corpo e na mente de maneira estruturada, sempre (bem ou mal) representada através de significantes ligados metafórica e metonimicamente em cadeia associativa.

A questão é que, segundo Lacan, muitos destes significantes, diferentemente do que é postulado por Saussure, poderiam carecer de significado se os observarmos apenas pela sua lógica conceitual. O significado dos signos, daquilo que está nas formas de representação, para Lacan, estaria nas relações com Outros significantes, em uma cadeia de representações inconscientes quase interminável. E de tudo isso dito, se indaga se os significantes também carregariam afeto. Em seu tom de voz, no volume de sua fala, na ordem escolhida para as palavras ou na velocidade do discurso adotado. Neste caso, os significantes também afetariam os sujeitos.

Como escutamos algo? Como somos afetados por algo? Através do que aquilo representa para nós.

E não seriam as emoções, portanto, resultados, destinos e traduções, daquilo que nosso corpo e nossa mente (ambos em função de uma cadeia de significantes) experienciam a partir dos afetos? Ou, pelo menos, como aprendemos a nomear tais coisas?

Aquela bronca que levei de meu pai quando andava de bicicleta na infância, por, segundo ele, estar indo muito rápido. Aquilo me gerou certa raiva ao momento. Sei que é raiva, uma vez que a linguagem, concedida, incidida em mim por meus semelhantes, me ensinou que este era o nome dado ao meu cerrar de punhos e lábios, do ranger de meus dentes e do calor facial (por conta do aumento do fluxo sanguíneo) que acompanham aquela vontade de praticar violência, aquela agressividade ou hostilidade. Entretanto, por ser uma criança em busca do amor de meus pais, eu que não me permitiria sentir esta vontade de aniquilação por quem tanto fazia e poderia fazer por mim. Portanto, consegui expulsá-la de minha consciência à tempo. Ufa! Mas, trinta anos depois, aconteceu um caso curioso: como que uma pessoa tão calma e serena como eu agrediria, violentamente, um guarda de trânsito num surto incontrolável de cólera? Apenas por este me dar uma multa por excesso de velocidade que pratiquei em minha motocicleta superpotente? Ou será que foi a adoção do mesmo tom de voz que, há muitos anos, fora empregado por meu pai? Será que o infeliz guarda de trânsito recebeu toda aquela raiva guardada por trinta anos, apenas por conta de seu timbre, entonação ou volume de voz? Ou foi também alguma outra relação desta cena com a aquela antiga, da bicicleta, que para a realização de um desejo infantil, se tornou uma moto muito potente? Será que foi a semelhança entre o conteúdo da multa e da bronca? Talvez tenha sido todo o conjunto de afetos associados a uma só emoção: a raiva.

Talvez no caso fictício acima tenhamos uma expressão da presença do afeto na linguagem e nas emoções. E aqui falamos de um em especial que tenha sofrido certa repressão da consciência (e é importante diferenciar esta do recalque, mas talvez em um texto à parte) e, anos mais tarde, através de significantes em cadeia de representação (bronca por andar de bicicleta muito rápido – multa por excesso de velocidade; raiva do pai – raiva da figura da Lei, o guarda; tom de voz do guarda – fonte de mobilização do afeto reprimido ao pai: a partir disso tudo, a percepção fisiológica atrelada à raiva – calor, cerrar de punhos, ranger de dentes – se liga ao ato e desejo anterior de agressividade).

Portanto, através da linguagem, os afetos se ligam às percepções sensoriais e podem provocar respostas fisiológicas aos estímulos externos, objetos externos ou significantes (podendo estes três serem um só). Seria isso então a emoção? Uma resposta fisiológica mobilizada pela apreensão de determinados afetos à certas representações de experiência subjetiva?

Os Três Afetos Sociais

A ligação dos afetos à linguagem parece ser tanta, que, para Lacan, três destes seriam exclusivamente sociais: A vergonha, o nojo e a culpa.

Tal afirmação se faria possível pois, para que estas aconteçam, seria preciso que já tenha havido a Interiorização das Regras. Ou seja, a criança ou o adulto precisam conhecer aquilo que se exige e se proíbe socialmente. É necessário já ter sido apresentado, invadido, barrado, representado e afetado pela Linguagem.

Os bebês não parecem sentir vergonha da percepção que teriam os alheios ao cheiro de suas fezes. Mas, é no mínimo curioso, que alguns adultos sofram até de sérias complicações intestinais porque a mera possibilidade de passar vergonha apenas lhes permite defecar em sua própria casa. Talvez pelo medo do julgamento alheio sobre seus próprios odores. Paralelamente, as crianças, nos primeiros anos de vida, não parecem sentir nojo das próprias fezes. Em certa idade, é até possível vê-las exibindo estas aos adultos, como uma espécie de orgulho; as deixando por aí, quase como presentes de fabricação própria: na sala, no quarto ou em algum lugar da casa de fácil visualização.

Antes da Interiorização das Regras, ou seja, da vivência da Castração, no Complexo de Édipo, na Fase Fálica (3-6 anos) da teoria do desenvolvimento psicossexual freudiano, não se tem vergonha dos próprios órgãos genitais à mostra na praia, na rua ou na reunião de família. O próprio manuseio destes, em forma de obtenção de prazer, às vezes acontece em público até que os adultos ensinem a criança que isso não é aceitável. Em contrapartida, já me foi possível conhecer o relato de mulheres que não conseguiram tirar a roupa em um quarto de motel; de homens que utilizavam objetos como desodorantes, pilhas, controle remoto, etc. para que fizesse volume em sua sunga antes de ir à praia. Suas óbvias motivações eram a vergonha do próprio corpo nu.

A culpa também parece ser ausente na criança que, se não guiada corretamente pelos cuidadores, pode até maltratar, agredir e machucar animais, insetos e até outras crianças – enquanto demonstra o deleite daquele divertimento através de seu sorriso puro e simples. Há ali uma diversão não permitida pelas regras sociais que acompanham a invasão da linguagem.

Portanto, a linguagem também afeta as emoções, principalmente aquelas homônimas a estes afetos supracitados, que são experienciadas através da relação com o Outro. Através do ser visto fazendo; do fazer sendo visto; do se ver fazendo, do ver fazendo e sobre como tudo isso lhe afeta.

O Mais ‘Puro’ dos Afetos

Para Lacan (1901-1981), a angústia seria o mais puro dos afetos. Por ser aquilo que se experiencia logo ao saber, ao estranhar, ao separar a imagem de si próprio daquela do Outro.

Os Outros afetos derivariam da angústia. Seja de deformações desta, seja de formas a fugir dela como ela mesma, como possibilidade. A vergonha poderia ser angústia de saber-se não amado e/ou tal possibilidade? O nojo poderia ser a fuga da angústia que poderia causar a memória de algo que já foi prazer em outros tempos? Ex: a criança que brincava com as próprias fezes não consegue sequer ouvir tal palavra sem sentir um grande incômodo psíquico na vida aduta.

Numa investigação mais detalhada, talvez seja possível até encontrar na essência de uma vergonha, nojo ou culpa, a presença de uma ou algumas fantasias inconscientes. Acredito ser bem possível, a não ser que se considere, na psicanálise, uma mera coincidência a ampla presença da fala “eu sou tímido” no meio artístico. Curiosamente, esta acaba sendo uma fala recorrente no meio que concerne à prática do teatro, talvez a maior exposição do próprio ser ao julgamento alheio – aquilo que os tímidos abominam à todo custo. Como ator amador, não foram raras as vezes que a ouvi de algumas pessoas que, momentos antes, observei, explicitamente, quebrarem muitas “regras sociais” ao palco. Mas aí entraríamos na discussão do que representaria a figura do personagem ao sujeito, coisa para Outro texto.

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Considerações Finais

Quando se diz que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, inclui-se a dimensão do afeto, já que a linguagem também traz afeto através de suas entonações, timbres e, principalmente, por quem (o quê) a traz.

O afeto e as emoções, talvez não pudessem ser uma descarga de excitações endógenas dos órgãos perceptivos, exclusivamente, uma vez que eles acompanham muitos significantes em suas apresentações e representações. Se a emoção é o destino do afeto, esta rota entre origem e destino só poderia ser traçada através da linguagem. Por exemplo, a angústia perante possibilidade de não ser amado pelo Outro ao falar palavrões, impede que algumas pessoas os falem ou os escutem sem enrubescer de vergonha ou que os falem de fato. Em casos extremos, a própria escuta ou possibilidade de fala de tais significantes barrados pela linguagem, poderia angariar descargas de angústia através de sintomas como ansiedade, pânico e fobias em geral.

O afeto acontece na relação do sujeito com o Outro. Acontece em como o sujeito, sem querer querendo, se afeta nesta relação. O Outro o afeta com sua linguagem e este, quando a aprende, inevitavelmente carrega as excitações por esta produzida em seu corpo e, principalmente, ao conteúdo psíquico ao qual estas ficaram ligadas (através de representações e/ou significantes). Se aprendo a linguagem com o Outro, aprendo à maneira com que esta me afeta na relação intra e intersubjetiva. Portanto, se a emoção é o destino do afeto, individualmente falando, aprendo com meus pais que sinto raiva enquanto a percebo através da linguagem apresentada por eles. Sendo afetado por eles, através das representações simbólicas associadas através da linguagem, ligo estes afetos que carrego junto à minha definição de raiva às minhas percepções de experiências sensoriais neurobiofisiológicas. Isso tudo, através de uma relação estabelecida na cadeia de significantes que também carregam afeto. É preciso dizer que este processo seria inconsciente?

Estas percepções neuro biofisiológicas me causam calor, aumento do fluxo e pressão sanguíneos, contração dos músculos da face (sobrancelhas franzidas, lábios cerrados, olhos brilhantes), das mãos e de outras áreas do corpo. Entendo que, na relação que tenho com os Outros que me afetam, que minha emoção (raiva) é o resultado da não satisfação imediata daquilo que acredito que me trará prazer; da ausência de alívio de minha tensão, e/ou da descarga de excitação sensorial (ver grifo em A Interpretação dos Sonhos, Freud, S. 1900. cap. 7) que agora só me parece possível através da agressividade. Mas é também importante saber que isso me foi trazido também através da linguagem.

Entretanto, se isso é nomeado e apresentado por aqueles que diariamente me afetaram, de alguma forma mais intensa, em algum período mais crítico de minha formação psíquica, poderá haver certa ligação entre meus atos, aquilo que entendo destes e a percepção disto em meu corpo com desejos, expectativas e valores destas pessoas – geralmente subjetivamente entendidos como próprios. Sendo dado o nome de emoção a esta resposta fisiológica àquilo que me cerca, variando sua excitação sensorial de acordo com o que meu corpo e mente seriam, histórica e pré-históricamente programados. Há uma descarga de excitação biológica, uma experiência de um conjunto de hormônios, sensações e percepções aos órgãos dos sentido e do Sistema Nervoso Central e Periférico, a partir de um conjunto de afetos que um determinado ato pode representar com um significante, objeto externo e/ou estímulo.

Se fui censurado na infância pelo meu pai, e tive que reprimir ou até recalcar a maneira com que fui afetado por isso, talvez com raiva, ódio ou desejo de aniquilação através da força impulsionada por minha agressividade (situação inaceitável à consciência, que obrigaria o sentimento de gratidão ao amor dos pais), alguém que me censurar com uma fechada no trânsito poderia, em seu azar, experimentar toda aquela descarga bio-psico-fisiológica que aquela raiva, agora representada num soco, produziu e reservou décadas atrás. Se isso for verdade, certamente seria por conta desta pessoa da fechada ser responsável, sem saber, por eliciar uma representação afetiva simbólica (significante) linguisticamente associada às respostas e movimentos de meu organismo.

A Emoção se torna condicionada às representações do afeto que a linguagem foi capaz amarrar ao corpo, mas ainda da maneira que o indivíduo a experiencia por conta própria. Mas pra quê serve, então?

É preciso dizer que nos primórdios existenciais do Homo Sapiens, as descargas fisiológicas oriundas das emoções que eram experienciadas poderiam até apresentar um papel relativo à sobrevivência e à reprodução da espécie. Como por exemplo: há uma descarga de adrenalina (frio na barriga), dilatação da pupila (visão mais precisa do mundo externo), aumento da produção de energia (oxigênio – coração disparado ao extremo) para que se corra ou se lute perante uma ameaça à vida. Mas, nos dias de hoje, esta experiência é descrita perfeitamente por aqueles encaminhados ao psicólogo ou psicanalista pelo cardiologista, que visitaram com um ataque agudo de ansiedade, geralmente confundido com um infarto agudo do miocárdio.

Curiosamente, isso acontece fora da floresta. Bem distante mesmo. Geralmente em situações que não oferecem risco algum á vida, como por exemplo: sentados no confortável sofá da própria casa.

Para Não Dizer que Não Falei dos Sentimentos

Os sentimentos, por último, poderiam ser aqueles afetos e emoções que estão unidos através do laço social. A tradução social dos afetos. Através da linguagem compartilhada. Os sentimentos poderiam ser os afetos que chegaram ao coletivo, já que a maioria é sentida de maneira tão pessoal e única que parece não haver compreensão daquilo por alguém que não seja o sujeito ele próprio.

Os escritores e poetas e músicos são aclamados porque conseguem transformar os afetos vivenciados em sentimentos, pois foram, através da linguagem, traduzidos do individual para o coletivo. Isto é, através do que eles escrevem é possível ao leitor ler e escutar os próprios afetos. Encontrar representação. Estes seriam dificilmente verbalizados durante a própria experiência, mas agora estão perfeitamente localizados, representados nos significantes escolhidos por aqueles que souberam unir sua experiência idiossincrática à coletiva. Algo possível apenas àqueles dotados de uma avançada percepção da linguagem, perante aquilo que os afeta.

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REFERÊNCIAS – *Também considerar as bibliografias citadas apresentadas ao longo do texto (Por ordem livre).

Afeto, emoção e sentimento na psicanálise | Christian Dunker | Falando nIsso 146

Paiva, Maria Lucia de Souza Campos. (2011). Recalque e repressão: uma discussão teórica ilustrada por um filme. Estudos Interdisciplinares em Psicologia, 2(2), 229-241. Recuperado em 19 de julho de 2018, de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2236-64072011000200007&lng=pt&tlng=pt.

Quingley, K. S.; Lindquist, K. A. & Barret, L. F. (2004). Inducing and Measuring Emotion and Affect. In Handbook of Research Methods in Social and Personality Psychology. Ed(s) Reis, H.T.; Judd, C.M. Cambridge University Press. p. 220-252

Pinheiro, Elaine, & Herzog, Regina. (2017). Psicanálise e neurociências: visões antagônicas ou compatíveis?. Tempo psicanalitico, 49(1), 37-61. Recuperado em 19 de julho de 2018, de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-48382017000100003&lng=pt&tlng=pt.

Ravanello, Tiago, Dunker, Christian Ingo Lenz, & Beividas, Waldir. (2018). Para uma Concepção Discursiva dos Afetos: Lacan e a Semiótica Tensiva. Psicologia: Ciência e Profissão, 38(1), 172-185. https://dx.doi.org/10.1590/1982-37030004312016

Por Caio Cesar Rodrigues de Araujo

Criminalidade, Desigualdade Social e o Mal-Estar na Civilização

É famosa a frase que diz: o crime não compensa. Mas será que a vida em Civilização o faz? Em um de seus últimos trabalhos, Freud (1856-1939) tenta, com o conhecimento que acumulou durante toda a sua vida de neurologista e psicanalista, entender como ocorreu a formação da cultura. E mais: como esta se assemelha e se difere da formação psíquica dos indivíduos que a formam. Entretanto, no atual conjunto de culturas do mundo globalizado, o Brasil é conhecido por traços que cruzam corrupção, futebol, nudez, praias e festas e, mais recentemente, pela alarmante desigualdade de renda e o alto índice de crimes contra o patrimônio. Poderíamos entender estes fenômenos como parte de uma cultura madura ou como sintomas de uma cultura? Mais ainda: quais seriam os sintomas que esta cultura causaria em nossos indivíduos? É o que o artigo a seguir tentará expor em conjunto com uma leve revisada na obra de Sigmund Freud publicada em 1930. Afinal: furtar tornou-se frutífero? No Brasil o Crime compensa o Castigo?

Um estudo conduzido em 2011 por João Paulo de Resende, mestre em economia pela UFMG e por Mônica Viegas Andrade, doutora em economia pela FGV, teve como alvo os crimes cometidos em municípios brasileiros com mais de 100 mil habitantes. Sua conclusão final, baseada exclusivamente em dados empíricos, foi que: os níveis de desigualdade de renda (poucas pessoas ricas, muitas pessoas pobres) nestes municípios estavam frequentemente relacionados aos níveis de ocorrência de crimes contra o patrimônio (furtos, roubos, latrocínios) e pouco aos crimes passionais, onde o indivíduo, quando exposto a alguma situação que o leva a intenso estresse emocional, apresenta um lapso na inibição de seus impulsos e comete um crime – geralmente contra quem o propicia tal estresse.

Esta conclusão empírica nos faz crer, a princípio, que quanto maior o patrimônio de poucos, mais indivíduos (geralmente os de pouco patrimônio), cometerão crimes que têm o patrimônio em si como alvo. Como se nesta relação empírica houvesse uma reivindicação inconsciente da maior recompensa que a civilização capitalista moderna oferece ao indivíduo: a satisfação através dos materiais de consumo. É importante, é claro, ressaltar que quando esta satisfação é buscada através do crime, ela dispensa uma das grandes engrenagens de uma sociedade: o trabalho – e, principalmente, as renúncias de prazer que este envolve. Será que quando falamos dos crimes relacionados ao patrimônio, poderíamos também dizer que, no caso do furto, também o indivíduo furta-se dos sacrifícios às satisfações? Sacrifícios estes que são tão exigidos pelo trabalho. E no roubo, também não rouba-se o prazer, a satisfação que ostenta o Outro, de maneira considerada injusta por um que não a alcança, por mais prometida que esta lhe seja, perante suas renúncias?

 

Desigualdade de Renda no Brasil

Desigualdade-de-renda-no-Brasil

Uma pesquisa recente, realizada pelo economista Thomas Piketty e um conceituadíssimo grupo de pesquisadores em seu apoio, aponta que, no Brasil, quase 30% da renda do país se encontra com apenas 1% da população. E, para complementar, 10% da população mais rica do país também carrega 55% de toda a renda local. A óbvia lógica disso tudo? Mais pessoas dividem menos dinheiro enquanto menos pessoas dividem mais dinheiro.

Isso até poderia ser menos incômodo se, proporcionalmente, todos pagassem taxas de impostos equivalentes ao que ganham. Entretanto, além da progressiva taxa dos impostos de renda, o Brasil traz uma tributação nos bens de consumo – a principal fonte de satisfação insinuada pela nossa atual sociedade – de cerca de 40% do valor. Ou seja, um produto de 100 reais, custa cerca de 40 reais em impostos. Acontece que, quando o salário mínimo do país é um pouco menos de 1000 reais, estes 40 reais se tornam um pouco mais de 4% de todos os ganhos de uma pessoa que recebe um salário mínimo, atualmente considerada como pobre (sem contar o valor que esta pessoa já paga de imposto de renda, cerca de 8%). Mas, ao mesmo tempo, se uma pessoa que recebe um salário que gira em torno de 100.000 reais compra o mesmo produto de 100 reais, se aqui não falhar a matemática de alguém das ciências humanas, esta pessoa gastará apenas 0,1% de seu salário. Ou seja, em termos de proporção do patrimônio, os mais pobres acabam cedendo mais de seu patrimônio em impostos do que os mais ricos. E isso se amplifica mais ainda se falarmos sobre Lucros e Dividendos de empresas (que em alguns casos excede a casa dos milhões), onde praticamente não há imposto cobrado.

Ou seja, mesmo que as pessoas mais pobres sacrifiquem seus impulsos pelo sono, pela farra, pelo sexo e pela agressividade pelo bem da sociedade, estas não serão tão bem recompensadas pelos sacrifícios quanto as pessoas mais ricas. É como teria dito o filósofo Zizek: “há alguém furtando o nosso gozo”. Será que, na suspeita do furto de um gozo, furta-se a metáfora para o retorno literal da palavra? Ou seja: a suspeita do furto (metafórico) do gozo ocasionaria o gozo do furto (literal)?

O Mal-Estar na Civilização

Já no ano de 1930, Sigmund Freud (1856-1939) publica uma de suas obras mais importantes, denominada “O Mal-Estar na Civilização” (“O Mal-Estar na Cultura” em algumas traduções). Arriscando o perigo de sintetizar demais, poderia-se dizer que ali Freud (2011) tentava explicar – através da relação de muitas de suas obras anteriormente produzidas, de poemas e romances de Schiller e Goethe, de apontamentos realizados por Rousseau e outros filósofos ou até criticando a tese do comunismo trazida por Karl Marx  – sua tese de que as exigências de uma cultura (ou de uma civilização), estariam – sem exceção – em desacordo com os impulsos agressivos e/ou destrutivos e sexuais dos indivíduos que a ela pertencem. E, a partir daí, os indivíduos deveriam procurar outras formas de felicidade, seja para o encontro ou prazer ou para o evitar do desprazer. Alguns se isolam, alguns usam drogas lícitas ou ilícitas, alguns amam; alguns trabalham, alguns fazem amigos, alguns adoecem e/ou ficam loucos; alguns fazem bem ao próximo, outros simplesmente infringem as regras e aceitam as punições (ou fogem delas enquanto é possível). Há ainda os que fazem isso tudo ao mesmo tempo enquanto acreditam fazer parte de uma casta, considerada por eles mesmos como boa da sociedade – aqui falamos dos cristãos, mas, sejamos justos: nem todos e nem só estes.

E Freud (2011) continua, dizendo que pode-se até encontrar relação àquilo que frequentemente está inconsciente na neurose mas explícito nos preceitos estabelecidos em uma civilização através de suas Leis e regras – a necessidade de inibição de impulsos agressivos e sexuais que, apesar de causarem satisfação imediata nos indivíduos, estão em desacordo com o considerado necessário para o bom convívio em sociedade. O resultado esperado, segundo o psicanalista (2011), era que a cultura ou civilização, juntamente com o indivíduo, deveriam criar, através da evolução de um sentimento de culpa, uma eficiente instância de censura a estes impulsos – um Supereu. Ou seja, a cultura oferece repressão, através da retirada do Direito à Liberdade (prisão), caso o indivíduo exponha seus impulsos agressivos através de um crime e transgrida as Leis, da mesma forma que a criança perderia o amor dos pais se fizesse o mesmo, ou pior, expusesse sua sexualidade e agressividade inata, fora do que é aceito aos pais daquela época, através da Castração, no Complexo de Édipo.

Mas conforme Freud (2011) explica, o papel do Supereu excederia o medo à repressão através da perda da liberdade ou do amor dos pais, o Supereu teria um papel Superior de censura. Do tipo que forçaria os indivíduos a algo além de renunciar às satisfações que mais acreditam que lhes daria prazer por medo das represálias: o próprio desejo de realizar tais satisfações já causaria culpa e às vezes até autoagressão, não sendo o ato necessário. Como se o processo fosse automático, introjetado e mantido pelos indivíduos. Entretanto, é ressaltado pelo Pai da Psicanálise (2011) que, mesmo que nem tudo seja satisfeito, para que haja algum tipo de organização psíquica no indivíduo saudável, ele precisará direcionar estes impulsos proibidos às formas de expressão aceitas pela sociedade, em sua busca pela sua satisfação. Ou seja, uma criança muito agressiva, por não poder manter este comportamento na vida adulta, em função das Leis da Sociedade, poderá se tornar um adulto lutador de artes marciais – e há de se observar que, paradoxalmente, estes indivíduos costumam ser pessoas calmas e pacíficas, uma vez que conseguem expor seus impulsos agressivos através de suas atividades. Da mesma forma, supõe-se na sociedade que aquele que abdicar do prazer imediato e se dedicar ao trabalho e não cometer crimes, poderá ter dinheiro para consumir os produtos que lhe trarão satisfação – carros, motos, celulares, aparelhos eletrônicos e roupas em geral. Mas o que acontece quando esta abdicação não é recompensada e, ainda por cima, é exibida em Outros que parecem realizá-la em menor ou nula medida?

Se arriscarmos um palpite no que foi dito por Freud (2011), poderíamos dizer que enquanto um sintoma do indivíduo por renunciar os desejos que vê causar prazer no Outro é a neurose, um sintoma da cultura que faz indivíduos renunciarem seus desejos e não lhes dá a satisfação (no caso da cultura capitalista, o consumo) é a criminalidade. E podemos ir adiante dizendo que, assim como o sintoma é a maneira negativa da realização do desejos em paralelo à sublimação como maneira positiva; a criminalidade apareceu como uma maneira negativa desta realização e, além do trabalho, que nem sempre ou quase nunca a cumpre, um novo fenômeno parece encurtar este caminho.

E a tese inicial do neurologista, aquela em que ele diz que haverá sempre uma divergência entre o exigido pela cultura e o que é desejado pelo indivíduo (2011), parece fazer muito mais sentido quando falamos sobre o sentimento de injustiça, sentido através da desigualdade de renda, e o que os Estudos Econômicos de Resende e Andrade (2011) publicaram sobre a relação desta desigualdade com o aumento dos crimes contra o patrimônio. Como se a desigualdade de renda corroborasse uma prévia recusa, através da criminalidade, à renúncia dos indivíduos aos impulsos, mas não ao gozo que é atribuído ao suposto prêmio por tal renúncia.

Conclusão

Poderíamos então dizer que a formação de uma civilização terá como base um mecanismo semelhante à formação psíquica de um indivíduo: para que tudo dê certo, renúncias serão necessárias. Mas supõe-se, erroneamente, que todos os indivíduos partem de uma mesma constituição psíquica na hora de criar-se uma Constituição Federal. Ou seja, esqueceram que haverá um conjunto de indivíduos que não estão dispostos a abrir mão de suas satisfações pelo bem-estar de sua cultura – a partir daí, viu-se necessário a criação de um sistema prisional. Mas, entrelinhas, parece haver a insinuação, por parte da sociedade, que está garantido a quem cumprir com suas renúncias e horas de trabalho, o gozo através do consumo. Contudo, a desigualdade de renda de um país parece acabar desmentindo esta suposição.

Quando o Brasil é tomado como exemplo, vê-se que uma pequena parte da população detém uma enorme parte das riquezas, ou seja, do gozo através do consumo. Em outras palavras, pesquisas recentes sobre a desigualdade de renda apontam, de cara, que alguém irá obter mais satisfação; poucos gozarão mais do que muitos. Isso quer dizer que já está pressuposto a muitos que optarem pelo sacrifício de seus prazeres imediatos a ausência daquela prometida satisfação. Eis a dúvida de quem é pobre por aqui: “a renúncia de minha satisfação, sob o único risco de sofrer a privação da liberdade por algum tempo, vale mais a pena? Por quanto tempo conseguirei assistir ao gozo do Outro com menos sacrifícios do que eu?”.

A pesquisa evidenciada no começo do artigo parece, de alguma forma, apontar que há na Sociedade Brasileira, ao menos nas cidades com mais de 100 mil habitantes, uma constante reivindicação pelo gozo através do patrimônio. Através de uma vasta pequisa de dados empíricos, viu-se que quanto mais patrimônio é reservado à pequenas parcelas da população, mais crimes contra o patrimônio são registrados em uma sociedade. É como se as Massas informassem, de forma violenta e irracional, que recusam o sacrifício desproporcional ao gozo do Outro. Como se a criminalidade fosse o ato de ignorar a placa que diz “não pise na grama”, enquanto o gozo através do patrimônio fosse o ato de chegar ao lado oposto; mas parece que lá já se encontra alguém, separado pela mesma grama, que não precisou dar a cansativa volta que indica aquele caminho preestabelecido. Portanto, parece que, quando se deparam com este outro alguém em pleno gozo com menor sacrifício, mais pessoas optam por pisar na grama e, não obstante, tentam expulsar o Outro do lugar que agora acreditam terem chegado.

Se há mais dinheiro para se dividir com menos gente e, consequentemente, menos sacrifícios para esta pequena parcela, a outra parcela, aquela que dividirá menos dinheiro com mais pessoas, terá mais sacrifícios a fazer. Mas a pesquisa de Resende e Andrade (2011) indica que, nestas situações, parece haver uma recusa às Leis na mesma medida. Uma recusa aos sacrifícios e uma tomada violenta e simbólica do prazer que enxergou o Outro satisfazendo: nega-se o esforço do trabalho exaustivo por pouco dinheiro e acata-se a tomada do patrimônio através do crime. Apesar desta ser uma informação de teor óbvio, é importante ressaltar que este artigo não está legitimando crime algum, muito pelo contrário, as relações entre os meios empregados pelos neuróticos para fugir das restrições da cultura (álcool, amor, isolamento, construções, consumo e trabalho), podem encontrar também, para uma parcela da população, refúgio no crime, quando ele passa a acontecer em proporções tão frequentes que chega a compensar.

O sujeito tem sua constituição psíquica formada da mesma forma que a cultura tem sua Constituição Federal. E assim como o neurótico, que quando finalmente aceita a abdicação da satisfação de seus impulsos agressivos e/ou sexuais em nome das exigências da cultura, sofre com o sintoma da neurose como forma de punição e realização à renúncia destes desejos inconscientes que não foram compensados através da sublimação; a Cultura também poderá sofrer a punição da elevação da criminalidade, crescente à medida em que as pequenas gratificações (o consumo, o gozo de bens materiais) não vêm de encontro, de maneira igualitária, aos sacrifício dos neuróticos que nela vivem mas continuam sendo seu objeto de desejo pregado como ideal dela mesma.

Isso não quer dizer que a ideia comunista seja a solução. O próprio Freud, neste mesmo texto (2011), já refuta esta ideia, dizendo que há no ser humano o impulso à agressividade para com o Outro que excederá sua realização apenas através da propriedade privada; portanto, não será o fim desta o sinônimo do fim da violência. Também sabemos que anos mais tarde, através dos resultados da implantação do sistema econômico transicional do socialismo em vários países do mundo, com o comunismo como finitude, pudemos observar que a suposição de que todos os indivíduos poderiam partilhar de uma renda comum, de um estilo de vida igualitário, acabaria no campo utópico. Confirmando as previsões de Freud, o socialismo acabou mais sendo utilizado como transição a algum Outro tipo de ditadura do que ao comunismo em si.

Mas, para finalizar, algo há de ser dito: seja no capitalismo, socialismo ou comunismo, o ser humano parece não ficar livre de seus impulsos mais primitivos de agressividade e sexualidade, principalmente quando estes se mostram de maneira incessante, como é o caso das Pulsões. E por mais que a cultura exista exclusivamente para conter estes impulsos e permitir uma vida pacífica entre os indivíduos inibidos entre si, ela precisará, de alguma forma, compensar a renúncia de todos estes de maneira satisfatória através de suas possibilidades de sublimação oferecidas. De outro modo, haverá aquilo que a história e agora as estatísticas nos apontam: violência. Roubo (como é o caso explicitado aqui no artigo), homicídio ou suicídio; tomada do Poder, aniquilação do Outro ou aniquilação de si. Para a cultura não importa, o que prejudica um ou outro indivíduo, a prejudica, de um modo ou de Outro, como um todo. Porque se a neurose é um sintoma do indivíduo, a criminalidade é um sintoma da cultura.

Referências

Crime social, castigo social: desigualdade de renda e taxas de criminalidade nos grandes municípios brasileiros – João Paulo de Resende; Mônica Viegas Andrade. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-41612011000100007

Brazil – WID – World Inequality Database (Top 1% fiscal income share, Brazil, 2001-2015 and Top 10% fiscal income share, Brazil, 2001-2015) – Thomas Piketty and group. http://wid.world/country/brazil/

Freud, Sigmund, 1856-1939. O mal-estar na civilização/ Sigmund Freud ; tradução Paulo César de Souza. – 1ª ed. – Sâo Paulo : Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.

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