“Numa sociedade racista não basta não ser racista. É necessário ser antirracista

ANGELA DAVIS

O Racismo Estrutural na Fundação e na História do Brasil

Você sabia que o introdutor da disciplina psiquiátrica no Brasil era negro?

Quantos psicólogos (as) pretos (as) você conhece? Hoje eu poderia dizer que conheço uma quantidade considerável. Mas a maioria imensa dos que eu conheço é composta por pessoas de pele branca. E sabemos que não é uma coincidência, dado que nunca foi o plano de desenvolvimento do Brasil possuir uma população preta em posições de destaque – visto que a ideia anterior à Lei Áurea era a do corpo preto se tornar um maquinário enquanto o corpo branco um maquinista.

Porém a Lei Áurea em si, apesar de ter desprecificado o corpo preto, não o retirou do status de coisa – coisa suja, mecânica, feia, desalmada, hipersexualizada e desumanizada – que o sistema escravocrata se aproveitava para encontrar justificativas para a sucessão de torturas, jornadas de trabalho exaustivas e não remuneradas e até assassinatos durante mais de 300 anos de vigência de escravidão no Brasil. Porém a ideia posterior à Lei Áurea não foi a de uma democracia racial, sendo esta democracia por si algo que não faz função alguma com a realidade senão a de de um mito – como um discurso estruturante da condição dos sujeitos de cor preta, mas que nada a estes sujeitos o discurso em si tem de propriedade.

O Mito da Democracia Racial

O Mito da Democracia Racial se tornou uma forma de relacionar a abolição da escravatura ao fim da imposição de uma inferioridade social, cultural, religiosa, intelectual e estética baseadas em falácias sustentadas inclusive pelo racismo científico – tentativa desesperada de legitimar uma inferioridade preta perante uma superioridade branca através de uma suposta justificativa científica que, em realidade, era e é inexistente. Um exemplo disso foi desmentido pelo Dr. Juliano Moreira – o médico negro que introduziu a disciplina psiquiátrica no Brasil, precedendo grandes nomes como o Dr. Franco da Rocha, Durval Marcondes, que também revolucionou a ciência psiquiátrica e médica no país – a respeito da tese de Raymundo Nina Rodrigues, seu então professor, que defendia que a mestiçagem de raças geraria pessoas mentalmente desiquilibradas e degeneradas em função da inferioridade racial perante os brancos.

Assim como todo mito, o Mito da Democracia racial tem função de manter o negro brasileiro domesticado, reacionário e inofensivo para reaver de seus direitos que lhe garantiriam maior participação na sociedade, seja através de sua formação universitária, sua condição econômica e posição social de destaque e/ou importância – nosso ponto de partida, no caso a psicologia como ciência e profissão.

Em suma, se o racismo que constituiu e instituiu o período escravocrata no Brasil fundou a cultura brasileira, alimentando o discurso de inferioridade racial do negro, o mito da democracia racial, ou seja, a negação da existência de algum desfavorecimento racial após a abolição da escravatura, é uma forma de manter essa mesma inferioridade racial de maneira velada: agora impregnada na cultura, na economia e na política.

Para resumir mais: se admitíssemos que haveria e há o racismo no Brasil desde sua estrutura, ou o racismo estrutural, teríamos que admitir que todas as grandes potências econômicas, políticas, territoriais e discursivas de nosso país tem sangue preto escravizado como fundamento de sua edificação.

O Racismo na Psicologia e na Psiquiatria

O livro “Tornar-se Negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro ema ascenção social”, dissertação de mestrado da psiquiatra Neusa Santos Souza, tem em um de seus pilares o entendimento de que até diagnósticos psiquiátricos se tornaram uma forma de legitimar o sofrimento gerado pelo racismo. Neusa além de produzir uma obra fundamental à psicologia antirracista brasileira, articulando Franz Fanon junto a estudos históricos e sociológicos do racismo no Brasil à Freud e Lacan, foi responsável por um excepcional trabalho com pacientes psicóticos nos hospitais que atuou. Neusa foi uma vítima do suicídio. Aos 60 anos, em 2008, se despede e se desculpa em uma carta, o único sinal dado sobre sua decisão até então. Não era casada e não teve filhos.

AVISO IMPORTANTE: é esperado de quem lê este artigo o prévio entendimento sobre os critérios diagnósticos e o mínimo do entendimento nosológico dos quadros que serão citados, como por exemplo Depressão, Ansiedade, Fobia Social. Se você ainda não entende as características destes que são considerados transtornos, recomendo uma leitura rápida nos textos a seguir:

Um Sintoma no/do Sujeito ou um Sintoma na/da Cultura?

Já entendemos que o racismo estrutural gerou um prejuízo de ordem econômica, social e cultural estendido por sucessivas gerações, privando a população preta das mínimas condições de moradia, emprego, renda, estudo e dignidade cultural e religiosa, para que o Brasil fosse povoado com povos exteriores de cor branca e amarela – todos estes “cotistas” de terras, posses, moradia, empregos, escolas em sau respectiva língua materna, comércios e/ou isenção tributária – para que o Brasil fosse cada vez mais italiano, português, alemão, holandês, japonês e francês do que cabo-verdiano, bissauense, agolano ou moçambicano.

Sim, não houve um engano no que foi dito acima: população estrangeiras que povoaram o Brasil receberam muito mais do que vagas em universidades: houve uma delegação de terras, estudos, inserção cultural e social e possibilidade de ascensão instituídas em planos de governo, também com o foco do plano de branqueamento da população brasileira. Aumento mais ainda o estigma à população negra e fortalecendo o conceito de branquitude, que explicaremos mais adiante.

Uma Estruturação Psicossocioeconômico-cultural Racista

Navio negreiro (1830), de Johann Moritz Rugendas

Já sabemos também que a população preta que veio escravizada e sob condições subumanas nos porões dos navios intercontinentais da época, perdeu coisas muito importantes tanto naquele momento imediato, como no atravessamento da negritude para as próximas gerações. Porém é raro que alguém se atenha a alguns elementos além do eixo econômico que também foram perdidos nesta violenta expatriação. Apagou-se, além da liberdade e dos direitos de quem chegava no Brasil como negro:

  1. o nome próprio;
  2. a cultura familiar, histórica e local;
  3. a religião;
  4. a língua.

Não somos ignorantes a ponto de desconsiderarmos o potencial de organização comunitária e subjetiva que tem um nome próprio, uma narrativa da origem de um sobrenome, da história de uma família, das personalidades que nela viveram; da sensação de proteção e pertencimento que o discurso religioso e/ou mitológico tem a um grupo em específico; muito menos ousaremos desconsiderar que a psiquê, a identidade, a forma de concepção que alguém faz de si mesmo é também influência de uma habilidade exclusivamente hunana de ser falante; mas é também um reflexo de sua língua, que é sua forma primeira de inserção numa cultura com suas regras, valores, afetos e sintomas. Porém a escravidão criou àquelas pessoas o pertencimento subjetivo a uma forma de cultura paralela.

Uma vez que sabemos destes preceitos, somos cognitivamente hábeis de entender que aconteceu na nossa sociedade:

  • a perda destes lugares de organização a uma população preta, enquanto havia a preservação disso nas outras culturas;
  • uma constante exibição midiático-discursiva de um padrão de beleza, de riqueza e de intelectualidade e relevância social que SEMPRE seria branco, levando o que fosse preto ao entendimento opostos (e a isso chamamos de branquitude/brancura, ok?);
  • uma marginalização econômica, em função do abandono à população alforriada e suas gerações seguintes, condenadas ao subemprego, à subeducação e à subserviência, podendo vir mais vezes ao crime pela maior frequência de exposição à miséria e aos forçados testes de sua honestidade;
  • um estigma social e cultural à cor da pele preta que atravessava os afetos, a linguagem e a sensação de pertencimento, o direito de ir e vir (inclusive após a abolição).

Cultura, Imagem e Psiquê

Será que poderíamos começar a imaginar que, mesmo que livre, uma criança que nasce preta, nasceria assujeitada a receber o banho cultural que todo ser falante recebe ao ser recepcionado como membro de um grupo social? Obviamente sim, porém temos a seguinte dúvida: e se este primeiro banho ocorre no seio familiar, que lhe dá amor, carinho, limites e atenção, sua segunda etapa se dá por todos os outros dispositivos de representação da cultura que a cercam, começando pela escola.

Supondo que no seio familiar a imagem de seus traços negroides (nariz, lábios, cabelo crespo e pele escura) ainda não fosse estigmatizada, por conta de seus cuidadores não terem acolhido o racismo à mesa, ainda assim estaríamos falando de uma criança que ao seu primeiro contato com o olhar da cultura (conforme explicamos acima) sobre seu corpo, haveria de reconhecer-se junto ao estigma que cultura pintou em sua origem.

Acredito que quem leu até aqui já deveria ter alguma familiaridade com o conceito do Estadio do Espelho de Jacques Lacan, justamente para que possamos aqui imaginar alguma pequena articulação do impacto do racismo numa constituição subjetiva da própria imagem. Você poderá conhecer mais sobre este conceito nos itens a seguir:

Texto do Blog explicando o conceito do Estádio do Espelho
A Psicanalista Maria Homem comenta brevemente o conceito de Jacques Lacan na atualidade, nos afetos e na cultura.
Uma aula do Psicanalista Christian Dunker sobre o conceito de Jacques Lacan dentro do Instituto de Psicologia da USP
O Conceito de Jacques Lacan explicado no Canal do Youtube do Profº Dr. Christian Dunker

Uma Imagem Espelhada no Racismo – Um Olhar Psicanalítico

Teríamos aqui a possibilidade de expor esta criança a algum contexto parecido com aquele que houvesse: exclusão social pelos colegas de turma; bullying com motivações racistas levando a uma concepção de ódio e contradição em relação à própria imagem; menor expectativa e, consequentemente, atenção ao aprendizado por parte de professores que já enxergam o aluno negro como uma falha escolar; eleição da criança preta à condição de mais feia da sala; constante rejeição afetiva na adolescência, propondo dificuldades de relacionamentos entre muitos outros fatos que sim, são reais e não foram inventados para este artigo.

Estaríamos também falando aqui, conforme já descrito por Franz Fanon na década de 50 (onde sua tese para formar-se psiquiatra à época, fora inclusive rejeitada por tratar deste assunto, que mais tarde se tornaria o livro “Pele Negra Máscaras Brancas”) e também revisitado e atualizado por Neusa Santos Souza em sua dissertação de mestrado em 1983 (Tornar-se Negro: as vicissitudes do negro brasileiro em ascensão social) de um choque: um choque entre a concepção também do Eu Ideal com o Ideal do Eu (clique aqui caso ainda não tenha se familiarizado com este conceito).

É preciso que quem leia este artigo entenda o seguinte: uma cultura racista rasga a imagem que concebe um sujeito. Falamos de uma concepção de si que é diariamente agredida por uma cultura que cerca um corpo que fora e continua sendo rejeitado e açoitado por ela. Uma criança que cresce em um meio social que a acusa constantemente de não possuir um corpo individual e sim um corpo já carregado de significantes estigmatizados, rejeitados e excludentes a quaisquer sonhos, meios e aspirações que ela queira.

O negro se dá conta da irrealidade de muitas das proposições que havia assumido como suas, por referência à atitude subjetiva do branco.

[…] para o negro existe um mito a confrontar. Um mito firmemente ancorado. O negro não tem consciência disso enquanto sua existência decorrer em meio aos seus; mas, ao primeiro olhar branco, ele sente o peso de sua melanina.

FANON, Franz. Pele Negra, máscaras brancas. Tradução de Sebastião Nascimento e colaboração de Raquel Camargo; Prefácio de Grada Kilomba; Posfácio de Deivison Faustino; Textos Complementares de Francis Jeanson e Paul Gilroy. São Paulo: Ubu Editora, 2020. P. 165.

O negro, conforme nos diz Fanon, responde a um Outro branco, serve, como nos enfatiza Neusa, a um Ideal do Eu, a uma forma de ser-no-mundo, a aspirações profissionais, estéticas, de comportamento e de fala que são sempre Brancos. Pois aqueles associados ao negro lhe são aterrorizantes. Impôs-se aqui a quem nasce sob a negritude: assujeitar-se à estereotipação dela ou negá-la a todo custo. Neusa nos mostra que não há dinheiro ou posição social que permita um escape. A cultura impõe a brancura e estigmatiza a negritude que existe na imagem de si, conhecida no espelho familiar. Aqui não falamos de quem diz-se negro, mas de quem é, literalmente, [mal]dito dentro desta concepção – a partir de seu corpo, que carrega a história de um país racista:

[…]”o negro é diferente”. Diferente, inferior e subalterno ao branco. Porque aqui a diferença em relação a um outro, o branco, proprietário exclusivo do lugar de referência, a partir do qual o negro será definido e se autodefinirá.

[…] para se afirmar ou para se negar, o negra toma o branco como marco referencial. A espontaneidade lhe é direito negado.

SOUZA, Neusa Santos. 2021. Tornar-se negro ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar. p.56

É por isso que, parafraseando a psiquiatra: ser negro é tornar-se negro. Mas a partir do próprio discurso, da militância e da travessia simbólica a esta imagem congelada no estigma racista. Travessia diferente da branca, que se preocupa “apenas” com a neurose histérica, obsessiva, à psicose ou à perversão, pois como disse Fanon:

“Como o drama racial tem lugar a céu aberto, o negro não tem tempo de o “inconscientizar””.

FANON, Franz. Pele Negra, máscaras brancasTradução de Sebastião Nascimento e colaboração de Raquel Camargo; Prefácio de Grada Kilomba; Posfácio de Deivison Faustino; Textos Complementares de Francis Jeanson e Paul Gilroy. São Paulo: Ubu Editora, 2020. p. 165

Este próprio discurso em que torna-se negro, infelizmente, existe a partir do discurso racista impregnado, encardido na cultura, e só poderá ser enunciado se deste Outro discurso racista for, ao mínimo possível desvencilhado por um processo de travessia subjetiva que encontra entraves a cada esquina de um país racista. Se conhecemos bem os mecanismos de defesa, o racismo é uma violência diária, produtora de traumas diversos aos quais também reagimos com negação, projeção, introjeção, intelectualizacão, racionalização, somatização, dissociação e até humor. Porém ele não é um objeto produtor de traumas que conseguimos retirar da cultura com facilidade.

Franz Fanon foi um psiquiatria nascido na colônia então francesa da Martinica, em 1925. Sua vida curta, encerrada em 1961, produziu obras importantíssimas a respeito do antirracismo e do decolonialismo, evidenciando não só o olhar psicológico, psiquiátrico e psicanalítico, mas também o olhar sócio-histórico para a população colonizada e, principalmente, negra.

Em verdade: em 134 anos de abolição da escravatura ainda encontramos o racismo do outro lado da rua. É um cenário de guerra. Uma guerra invisível e silenciada pelo Mito da Democracia Racial. Uma guerra real, que não é visível ou dizível por quem a conduz, que não gera corredores humanitários aos seus civis, pois são estes mesmos os respectivos alvos inimizados histórica e culturalmente. E como sabemos: uma guerra produz prejuízos econômicos, sociais, psicológicos e, dizendo o óbvio que precisa ser dito: ceifa vidas. E esta é apenas uma das faces do racismo. Vamos analisar adiante analisar algumas estatísticas produzidas durante esta guerra.

Aspirações e Referências

Mas teríamos também o adulto exposto à constantes situações constrangedoras como: ser seguido pelos profissionais de segurança em comércios; ser considerado incapaz de comprar algo mais caro em determinada loja e, portanto, não ser atendido ou ser atendido com descaso por vendedores; ser abordado com mais frequência e com menos educação por parte dos policiais; ser 83% da população que foi presa injustamente com base em reconhecimento fotográfico; ter três vezes mais chance de ser morto em operações policiais; perceber surpresa ou descrença, com certa frequência ao revelar a profissão que possui (sendo ela de ordem maior intelectual, técnica ou prestígio), uma mesmo a população preta compondo 54% da população brasileira, ela está em apenas 6% dos cargos de liderança, em 43% dos que cursam ensino superior (em 2000 eram apenas 21%, sendo que entre os que tinham 18-24 anos, 5,5%) e também é possível ver mulheres negras recebendo 70% a menos que mulheres brancas.

Gostaria também de trazer mais alguns dados:

De que maneira estes dados chegam ao consultório?

Gostaria de pensar junto com quem lê este artigo e tem algum conhecimento sobre saúde mental, quase como se compuséssemos um caso clínico com os elementos que elencamos até agora (vide dados históricos, socioeconômicos e psicossociais listados). Numa análise simples, geral e desconsiderando idiossincrasias naturais a todo caso clínico, poderíamos ter os seguintes fenômenos pré-dispostos à parte considerável da população negra brasileira:

  • Perda de repertório, referências, histórico-familiares e socioculturais;
  • Baixa autoestima;
  • Baixo nível de reconhecimento das próprias capacidades;
  • Preocupações constantes e eventualmente desproporcionais à realidade em relação à autoimagem;
  • Dificuldade de encontrar prazer nos diferentes eixos de sua vida;
  • Restrição e/ou negação de acesso a modelos de aspiração social, emocional e profissional (como são retratadas as pessoas negras na televisão e nas grandes mídias?);
  • Diminuição do estímulo necessário ao desenvolvimento pleno das capacidades cognitivas (menor acesso à educação, maior propensão ao bullying e à invisibilidade perante os docentes);
  • Maior tempo em estado de alerta, percepção elevada de risco à própria vida;
  • Elevado histórico de eventos onde houve exposição a diferentes níveis de rejeição afetiva, sexual, profissional, cultural e social;
  • Maior dificuldade de acesso a itens básicos à sobrevivência e ao bem-estar biopsicossocial;
  • Sentimentos de desconfiança, insegurança física, social, econômica e emocional;
  • Ansiedades persecutórias em relação à própria conduta social, constantemente percebida sob suspeita;
  • Comportamento evasivo em relação projeções afetivas e profissionais de médio e longo prazo;
  • Pensamento acelerado, constantemente relacionado à iminência de um acontecimento ruim em um futuro próximo;
  • Medo, recusa ou resistência a sair de casa para seus afazeres cotidianos;
  • Euforia desproporcional perante realizações simples;
  • Idealização de um futuro desconectado com sua realidade imediata;
  • Impulsividade;
  • Baixa tolerância à frustração.

É com toda certeza que o autor deste artigo não está “patologizando” e muito menos supondo sinais e sintomas a uma pessoa apenas pela cor da pele dela. Muito pelo contrário: estou dizendo que o contexto sociocultural que o racismo estrutural impôs a quem pertence à raça negra e possui a cor preta ou parda insere, forçosamente, e com mais frequência, estas pessoas à situações análogas às que produzem o que fora descrito acima. E mais ainda: se quem leu estes elementos for um profissional ou estudante da psiquiatra ou da psicologia, é suposto a este profissional – caso este ainda seja ignorante sobre autores e autoras de uma psicologia antirracista e, pior ainda, do contexto imposto pelo racismo estrutural à pessoa negra que chega a seu consultório – o exercício de localizar estes sinais e sintomas nos critérios diagnósticos descritos no DSM-V e no CID11, e talvez até enquadrar esta pessoa dentro dos seguintes transtornos mentais:

A pergunta que fazemos com este artigo é: estamos falando de um diagnóstico do sujeito ou de um diagnóstico da cultura? Estes sinais e sintomas que descrevemos acima, são produzidos por alguma dificuldade neurofisiológica, endócrina ou comportamental deste sujeito? O questionamento aqui é: qual é o diagnóstico apropriado para que orientemos em nossa prática o tratamento apropriado para que este sujeito, então, consiga se adaptar e aprenda a aceitar e que controle suas respostas físicas, psíquicas e emocionais a estas violências as quais ele vem sendo e provavelmente será submetido a qualquer momento?

Para ilustrar melhor, além do que foi listado acima, podemos pensar em algumas notícias, recentes à publicação deste artigo, para tentarmos entender melhor a quais violências falamos e à quais estados psíquicos estas podem produzir às pessoas próximas e às pessoas que podem ser as próximas:

https://mundonegro.inf.br/homem-negro-com-esquizofrenia-morre-sufocado-com-gas-em-abordagem-da-policia-rodoviaria-federal/

Que acontece exatamente dois após o Caso George Floyd

Este caso, em que um assassinato a um homem negro, em um contexto claramente racista aconteceu no Dia da Consciência Negra

Racismo estrutural dá as caras no É de Casa

Médico ameaça e é racista com namorada da ex: “Ela é macaca!”

‘Racismo não tem perdão’, diz jovem negro acusado de furtar guarda-chuva na Zona Sul

E até este dado: A cada 23 minutos morre um jovem negro no Brasil.

O Sofrimento Psíquico Gerado pelo Racismo – Os Pseudodiagnósticos como forma de Apagamento

Se o racismo que funda a nossa cultura, ou seja: a cultura brasileira nunca existiu sem o racismo, já foi desconsiderado tantas vezes em diversos âmbitos, por que ele não poderia ter sido em diagnósticos? E se foi, como estes diagnósticos poderiam ganhar nossa ampla confiabilidade? Se um psicólogo/psiquiatra não observa o racismo e a violência produzida por ele como produtores de sinais sintomas na vida daquele paciente, seu diagnóstico terá grandes chances de errado/incompleto.

Como assim? Simples: não estamos falando necessariamente de sintomas, estamos falando de uma resposta a uma violência. Para ilustrar: não falamos de ansiedade, falamos de medo. Não falamos de depressão, falamos de tristeza, trauma e autopreservação a agressões diárias; não falamos de fobia social, falamos prevenção à vida; não se trata de transtorno do pânico, se trata da percepção de um perigo real. Não é um transtorno do estresse pós-traumático: é um estresse traumático.

Se o próprio Dr. Juliano Moreira precisou de muito trabalho para acabar o racismo científico da época, que dizia que doenças mentais estariam relacionadas à raça, se os manicômios que tínhamos antes da Reforma Psiquiátrica em função da Luta Antimanicomial, eram lotados de pessoas pretas, será que consegui abandonar de vez a influência do racismo no sofrimento, no tratamento e no diagnóstico no que tange à saúde mental da população negra?

Frequentemente recebo em minha clínica pessoas negrasque já tiveram, dentro de um consultório de psicologia, seu sofrimento psíquico em função do racismo deslegitimado através de um diagnóstico precipitado ou até de uma acusação de “vitimismo”, “recusa em responsabilizar-se por sua condição”, “falta de aderência ao tratamento” e o famoso “ah, mas isso não foi racismo”, enquanto estas pessoas relatavam situações em que a violência racista as surpreendeu.

Se na formação universitária os autores aqui citados sequer fizeram parte das disciplinas que cursei, como quem não teve contato com uma psicologia antirracista estaria apto a diagnosticar e/ou tratar uma pessoa negra? E não apenas estes mas muitos outros de abordagens diferentes, já trabalhados inclusive em outros países como Wade Nobles, Na’im Akbar, Virgínia Bicudo, Isildinha Nogueira, Lelia Gonzalez, entre outros sequer passam pela graduação. Mas é um conhecimento necessário, visto que uma psicologia antirracista e decolonial não é uma opção no Brasil, é uma obrigação. Quando enxergamos um transtorno mental ao invés de uma resposta ao sofrimento, estamos silenciando mais uma vez uma fala. A solução passa sim, pelo tratamento psicológico e eventualmente farmacológico, mas ela jamais poderá acontecer se o plano de tratamento não considerar desde sua gênese o impacto da violência racista antes, durante e depois do diagnóstico e tratamento.

Se uma pessoa não vê mais prazer no trabalho, não tem vontade de ter relações de amizade e tem medo de sair de casa há duas ou mais semanas, conforme descrito no DSM-V para o diagnóstico de um episódio depressivo, eu preciso, antes de um diagnóstico, entender se esta pessoa não está sendo vítima e uma violência racista e se meu plano de tratamento inclui a possibilidade de ela continuar sendo, uma vez que este é uma condição da própria existência da nossa cultura.

Se o diagnóstico psiquiátrico e psicológico não constata o sofrimento gerado pelo racismo, ele não pode ser diagnóstico, ele é um mito. Um mito mesmo, em sua concepção própria de narrativa que se faz necessária para “ser produto econômico-político-ideológico, um conjunto de representações que expressa e oculta uma ordem de produção de bens de dominação e doutrinação”, como diria a própria Neusa.

Até porque, nos dias de hoje e acredito que na psiquiatria e psicologia em si não estudar sobre racismo e não considerá-lo como um componente crucial à saúde mental é ser conivente com a estruturação politico-ideológica que contribui com o genocídio da população negra. Justamente por ser uma negação, na acepção de “descartar um dado da realidade ou parte deste”. E sabemos que a negação contribui para a manutenção do sintoma violento que possuímos na cultura, mais ainda se atribuirmos ao sujeito um sintoma que é da cultura e que nela está. E não, não está sendo dito que uma pessoa negra não poderia ter tais diagnósticos, e sim estamos nos perguntando: até onde falamos de um organismo que sofre de um transtorno mental ao invés de uma vítima de violência diária? Pois bons profissionais entenderão que em cada um dos casos o manejo clínico deverá ser diferente.

Segundo fonte do próprio documento do Ministério da Saúde, em um estudo realizado com a Universidade de Brasília:

Queixas raciais podem ser subestimadas ou individualizadas, tratadas como
algo pontual, de pouca importância e ainda culpabilizando aquele que sofre o preconceito.
O estigma em torno do suicídio, aliados a elementos estruturantes como o racismo estão
relacionados e contribuem para o silenciamento em torno da questão, além das dificuldades
de se falar abertamente sobre o assunto.

MS. Portaria nº 992/2009 – Institui a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. 2. Análise do Departamento de Apoio à Gestão Participativa e ao
Controle Social (DAGEP/ Ministério da Saúde) utilizando dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM/DATASUS/MS)

As clínicas psicológica, psiquiátrica e psicanalítica que desconsideram o racismo como tanto parte de uma estruturação psíquica, como forma de manutenção de sinais e sintomas de um quadro de sofrimento psíquico, estão, indiretamente, reproduzindo-o dentro de seu consultório.

O Suicídio da População Negra

E por último: se quem lê este artigo sentir que meu relato carece de dados, fatos para sua correlação e indícios para pensarmos no quadro de genocídio da população preta que, caso psicólogos e psiquiatras não atualizem suas leituras e práticas, poderão contribuir utilizando apenas a própria ignorância no manejo clínico com pessoas negras em seu consultórios, aqui temos alguns em um estudo realizado pelo Ministério da Saúde sobre o suicídio:

  • o percentual de suicídio entre jovens e adolescentes negros aumentou 12%;
  • são estatísticamente mais vulneráveis à morte por suicídio: homens, pessoas com pouca escolaridade, idosos, adultos, população indígenas e adolescentes e jovens negros;
  • entre os itens mais frequentemente determinantes para o suicídio, encontram-se: desemprego, migração, isolamento social, rejeição, discriminação, perdas recentes de parentes, amigos; mudanças políticas e financeiras e transtornos mentais;
  • a cada dez jovens que se suicidaram no Brasil em 2016, seis eram negros;
  • “rejeição”, “sentimento de inferioridade” e de não pertencimento, exclusão e não aceitação de si mesmo por parte do próprio adolescente/jovem, sua família e/ou amigos estão entre as razões mais apontadas para condução do suicídio de jovens negros no país;
  • De 2012 a 2016, a proporção de suicídios entre negros aumentou em comparação às demais raças/cores, subindo de 53,3% em 2012 para 55,4% em 2016;
  • O percentual de suicídios aumentou entre os pardos (2012: 46,2% e 2016: 49,3%);

No mesmo documento é apontado que as principais causas associadas ao suicídio em negros são:

a) o não lugar,
b) ausência de sentimento de pertença,
c) sentimento de inferioridade,
d) rejeição,
e) negligência,
f) maus tratos,
g) abuso,
h) violência,
i) inadequação,
j) inadaptação,
k) sentimento de incapacidade,
l) solidão,
m) isolamento social.

Fontes [conforme consultadas pelo MS e UnB]: Miller, et al, 2015 – Role of social support in adolescent suicidal ideation and suicide attempts. 2. Baskin, et al, 2010 – Belongingness as a protective factor against
loneliness and potential depression in a multicultural middle school. 3. Tomek, et al, 2018 – Suicidality in Black American youth living in impoverished neighborhoods: is
school connectedness a protective factor?. 4. Stewart, 1989 – Young, black, and male in America: An endangered species. 5. Hollingsworth, et al, 2017 – Experiencing racial
microaggressionsinfluencessuicide ideation through perceived burdensomenessin African Americans

Quando pensamos em um histórico de acordo com o que é imposto à vivência da população negra, podemos visualizar sobretudo como sua exposição a estes fatores de risco está mais elevada em função do próprio racismo estrutural – não só econômica e institucionalmente na sociedade brasileira, mas também culturalmente, esteticamente; podendo ter influência na própria concepção psicológica que a população afetada por ele tem de si. Conforme dito no estudo:

Os impactos do racismo geram efeitos que incidem diretamente no comportamento das
pessoas negras que normalmente estão associados à humilhação racial e à negação de si,
que podem levar a diversas consequências inclusive às práticas de suicídio.


Os determinantes sociais e principalmente aqueles relacionados ao acesso e permanência na
educação influenciam adolescentes e jovens negros sobre suas perspectivas em relação à
vida.


Destacam-se as ações abaixo como fatores de proteção contra o óbito por suicídio:
• Acompanhamento da frequência escolar;
• Condições para permanência na escola/universidade;
• Cotas raciais nas universidades.

Fonte [conforme verificado por MS e UnB]: 1. MS. Portaria nº 992/2009 – Institui a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. 2. Hollingsworth, et al, 2017 – Experiencing racial microaggressions influences
suicide ideation through perceived burdensomeness in African Americans. 3. Tomek, et al, 2018 – Suicidality in Black American youth living in impoverished neighborhoods: is school
connectedness a protective factor?. 4. Van Ryzin, et al, 2009 – Autonomy,belongingness, and engagement in school as contributorsto adolescent psychologicalwell-being.

Considerações Finais

E para finalmente concluir: podemos pensar que a ideia de uma psicologia antirracista na sociedade brasileira se faz como uma forma de salvar vidas. Um profissional da psicologia despreparado para lidar com questões raciais (e lê-se como despreparado aquele que ainda não acessou concepções específicas sobre este assunto dentro da psicologia) poderá tanto reproduzir o racismo estrutural em sua prática clínica, como não alcançá-lo na dimensão necessária com o limitado repertório teórico-técnico que formação em psicologia tem sobre este assunto.

Corre-se então o risco de gerar diagnósticos incompletos e conduzir tratamentos errôneos que desconsideram o impacto do racismo na formação da identidade, da personalidade, da autoestima e da autoimagem da pessoa negra, bem como sua perpetuação pelas esferas políticas, institucionais, midiáticas e socioeconômicas, que pode e deve gerar impacto no diagnóstico e tratamento. Profissionais da psicologia que não ampliaram seu olhar antirracista correm o severo risco de conduzirem no consultório o mesmo sofrimento que conduziu o paciente até lá. Pelo próprio componente racista que mora na arrogância e na vaidade de acreditar que não há em si falta de conhecimento sobre uma população preta, bem como do Mito da Democracia racial, que sugere a ausência de quaisquer diferenças que a questão racial poderia ter gerado.

Pois neste assunto o binarismo é implícito: é preciso ser antirracista pra deixar de ser racista. Mas a condição para tal postura envolve reconhecer-se como sujeito dentro de um discurso racista. É um pouco mais de preto no branco como paradoxal solução desta dicotomia: ou você é e procura ser cada vez mais antirracista, ou você pode ser racista – adaptação do famoso comentário de Eldrige Cleaver: “se você não é parte da solução, você é parte do problema.”– o que te gera mais desconforto?

Por Caio Cesar Rodrigues de Araujo Santos

Recomendação de leitura (além das referências):

Cartilha do Conselho Federal de Psicologia com Referências Técnicas para atuação de Psicólogas (os) em Relações Raciais

REFERÊNCIAS:

ALTMAN, Neil. (2020). White Privilege: Psychoanalytic Perspectives. New York: Routledge Focus.

BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Nova composição da Câmara ainda tem descompasso em relação ao perfil da população brasileira. Fonte: Agência Câmara de Notícias. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/550900-nova-composicao-da-camara-ainda-tem-descompasso-em-relacao-ao-perfil-da-populacao-brasileira/#comentario. Acesso em: 15 jun. 2022

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa e ao Controle Social. Óbitos por suicídio entre adolescentes e jovens negros 2012 a 2016 / Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Departamento de Apoio à Gestão Participativa e ao Controle Social. Universidade de Brasília, Observatório de Saúde de Populações em Vulnerabilidade – Brasília : Ministério da Saúde, 2018. ISBN 978-85-2672-6

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Relações Raciais: Referências Técnicas para atuação de psicólogas/os. Brasília: CFP, 2017.

FERNANDES, Florestan. 1965. A integração do negro na sociedade de classes: no limiar de uma nova
era. v.II. São Paulo: Dominus Editora,

FANON, Frantz. 2005. Os condenados da terra; tradução Enilce Albergaria Rocha, Lucy Magalhães.
Juiz de Fora: Ed. UFJF.

FANON, Franz. Pele Negra, máscaras brancas. Tradução de Sebastião Nascimento e colaboração de Raquel Camargo; Prefácio de Grada Kilomba; Posfácio de Deivison Faustino; Textos Complementares de Francis Jeanson e Paul Gilroy. São Paulo: Ubu Editora, 2020.

FREUD, Sigmund. (1930) Mal-estar na Civilização. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974. v. XXII.

GONZALEZ, Lélia. 2020. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Organização: Flavia Rios, Marcia Lima. 1ª ed. Rio de Janeiro. Zahar.

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estudos e Análises- Informação Demográfica e Socioeconômica- Número 2. Características Étnico-raciais da População- Classificações e Identidades. Rio de janeiro; 2013. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv63405.pd

Lacan, J., Escritos (1966). RJ: Jorge Zahar Editor, 1998, p 96-103.Trad. de Vera Ribeiro.

LACAN, Jacques. Seminário 17 – o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

REIS FILHO, José Tiago dos. 2005. Negritude e sofrimento psíquico. 142 f. Tese (Doutorado em Psicologia) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2005.

ROSA, M. D. ; BINKOWSKI, GABRIEL INTICHER ; Souza, Priscilla Santos de . Tornar-se mulher negra: uma face pública e coletiva do luto. CLÍNICA & CULTURA , v. 8, p. 86-100, 2021.

SOUZA, Neusa Santos. 2021. Tornar-se negro ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar.


0 comentário

Deixe um comentário

Avatar placeholder

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *