A análise é de graça?

Como funciona a pagamento e porque ele é importante

O tema do pagamento na clínica é algo que é sempre discutido e parece dar medo em muita gente. Algo que não podemos nos furtar na nossa práxis é pensar qual valor damos a ela.

Os tratamentos em regime de gratuidade, ou com valores baixíssimos, praticados em universidades ou outros centros de formação colocam em xeque preceitos enunciados desde Freud.

Tentarei aqui, apresentar alguns dos principais elementos considerados na prática da psicanálise de orientação lacaniana quanto à questão de pagamento e valor das sessões. Naturalmente não trata-se de encerrar o assunto, mas meramente apontar caminhos de pesquisa.

Na Psicanálise

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(Imagem retirada da Internet)

“Nada na vida é tão caro quanto a doença – e a estupidez” (Freud, 1913/1996, p. 148).

O valor da análise é intrínseco ao próprio andamento do processo. Ele se diferencia de qualquer outro tratamento na medida em que o analista não responde à uma demanda de um comprador (e não responde mesmo).

A Psicanálise (e especial aqui no Brasil) se manteve (e ainda bem) de maneira mais artesanal, isto é, sem ser regrado por uma tabelação de preços (como o CRP propõe, e bem, para a atuação de psicólogos), e sem estar ligada à grandes corporações da área da saúde. Ela foge das chamadas “práticas de mercado” ou “tendências”.

A análise não é algo que se compra em um balcão, um serviço com orçamento, como outro qualquer.

O dinheiro é tratado por Freud como um elemento do circuito anal (para saber mais sobre as fases do desenvolvimento psicossexual clique aqui). Trata-se de dar ou não o que o outro pede, como quando uma criança pequena tem o poder de ir ou não no banheiro quando a mãe pede (dar ou não o que o outro quer).

Há também, claro, o caso do enfezado, aquele que segura tudo, nada escapa.

“De fato, em uma análise, quando o paciente aborda a questão do dinheiro, o analista não deve ouvir isso como se fosse uma relação comercial, e sim entende-la como algo a ser tratado, semelhante a uma formação do inconsciente, como ato falho, esquecimento, sonho e sintoma. A colocação do pagamento já é o inconsciente trabalhando” (Macedo, 2014, p. 91).

Lacan sempre teve uma fama de cobrar caro. Cobrava sim, mas de quem podia, e em caso, o pagamento era intrínseco ao andamento da análise. Em um conjunto de relatos fabulosos, Jean Allouch, conta passagens de intervenções de Lacan com seus pacientes, nas apresentações de doentes e nas supervisões com analistas em formação. Em muitas delas, pode-se notar o caráter fundamental atribuído ao preço das sessões:

“conflito sobre a próxima sessão

– Quando você volta?

– Segunda,… segunda-feira próxima…

– Volte então sexta-feira.

– É que estou cheio de problemas agora: não tenho mais um tostão. Estou sem trabalho. E pedi que X não me mandasse mais nada…

– Bom, volte sexta-feira e se vire para ter com que me pagar. Até a vista.

Saindo, ele se dá conta: pela primeira vez Lacan lhe disse: “até a vista”.”

(Allouch, 1999, p.38)

Essa passagem tomada de maneira isolada pode parecer para os desavisados algo de arrogante por parte de Lacan, todavia, o mestre francês sabia como ninguém implicar alguém em seu próprio processo de análise.

Trata-se exatamente disso, responsabilizar o sujeito em seu próprio processo de “torção discursiva”, como diria o último Lacan. Ou seja, fazer com que o sujeito se reposicione psiquicamente diante da vida e das situações. Uma análise é cara, mas não necessariamente em seu valor financeiro, e sim, no investimento que o sujeito coloca de si no processo.

“Na prática, o valor cobrado considera a possibilidade de cada um e a disponibilidade do analista” (Macedo, 2014, p. 86).  O quanto um sujeito banca sua própria análise é refletido em parte no valor que paga em sua sessão.

Nessa medida, não é viável uma análise “de graça”, pois, o sujeito ficaria eternamente em dívida com o Outro. “… se o analisante não pagar a análise, o analista o está deixando no registro eterno da culpa. É interessante que na língua alemã se usa a mesma palavra, Schuld, para dívida e para culpa” (Macedo, 2014, p. 92).

Em outro momento, Freud (1913/1996) diz:

“O tratamento gratuito aumenta enormemente algumas das resistências do neurótico – em moças, por exemplo, a tentação inerente à sua relação transferencial, e, em moços, sua oposição oriunda de seu complexo paterno e que apresenta um dos mais perturbadores obstáculos à aceitação de auxílio médico.” (p. 147)

Em determinados casos pode-se pensar em um pagamento mensal ou quinzenal, todavia, normalmente, segue-se um pagamento por sessão, o que auxilia a organização e estabelecimento de limite para o paciente. Em minha prática, costumo acertar o valor inicial nas primeiras sessões, deixando claro, naturalmente, que o valor poderá ser revisto com o andar das sessões.

E na análise com as crianças?

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(Imagem retirada da Internet)

Linha bem tênue, na Clínica da Infância, pensando à partir da perspectiva lacaniana, podemos apontar para um conceito criado por Françoise Dolto (1908 – 1988), chamado de “pagamento simbólico”.

Naturalmente, os honorários do analista são pagos em dinheiro pelos pais/responsáveis que trazem a criança, em valor acordado também nas primeiras sessões.

Quanto à criança, Dolto (2013) trabalha com o chamado pagamento simbólico, onde a criança é também responsabilizada por seu tratamento, onde, a mesma fica incumbida de trazer objetos, como desenhos, cartas ou outras produções que sirvam como pagamento e testamento do progresso da análise.

Alcance social

A Psicanálise é para todos? Sim, e não.

Muito se discute sobre o alcance que a Psicanálise tem na sociedade. Se ela é cara, e a percepção de que é coisa de elite. Na realidade não é. Todavia, tem que se pensar que fazer uma análise não é um empreendimento fácil.

Lacan dizia que não basta querer se conhecer, não é o suficiente. Tem que se procurar uma mudança profunda, para que se suporte o andar das sessões.

É importante que sempre se ressalte que a Psicanálise é uma clínica do singular, cada analista maneja os tratamentos de maneira única. Termino, pois, com uma passagem de Freud (1913/1996):

“Todo aquele que espera aprender o nobre jogo de xadrez nos livros, cedo descobrirá que somente as aberturas e os finais dos jogos admitem uma apresentação sistemática exaustiva e que a infinita variedade de jogadas que se desenvolvem após a abertura desafia qualquer descrição desse tipo. Esta lacuna na instrução só pode ser preenchida por um estudo diligente dos jogos travados pelos mestres. As regras estabelecidas para o exercício do tratamento psicanalítico acham-se sujeitas a limitações semelhantes” (p.139).

Até a próxima.

Por Igor Banin

 

Ps: Ficam aqui algumas recomendações de vídeo falando mais sobre esse tema:

 

 

Referências Bibliográficas

Allouch, J. (1999) – Alô, Lacan? – É claro que não. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.

Dolto, F. (2013). Seminário de Psicanálise de crianças. São Paulo: Editora WWF Martins Fontes.

Macedo, E. (2014) A sessão e seu preço: A análise lacaniana custa sempre caro?. In Psicanálise – A clínica do Real (pp. 85 – 102). Barueri: Manole.

Freud, S. (1913/1996). Sobre o início do tratamento(Novas recomendações sobre a técnica da Psicanálise I). In O caso de Scheber, artigos sobre técnica e outros trabalhos. (pp. 137-158, Obras completas de Sigmund Freud, v.12). Rio de Janeiro: Imago.

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