A Experiência Psicodélica: estados alterados de consciência

E refletidas no cubículo calado
Pulsam, dilatam-se cadeiras que se movem
Brilham os ratos e bordados nos sapatos
Brilham insetos alimentando sapos

(A Noite Preta – Zé Ramalho / Alceu Valença / Lula Côrtes)

Não me parece fácil descrever e explicar a psicodelia em poucas palavras. Talvez me pareça mais fácil apontar algumas manifestações artísticas que dialogam e/ou buscam retratar a experiência psicodélica, como a música, o cinema, as pinturas e ilustrações e também a literatura que em prosa e em verso tenta nos contar sobre esse mundo diferente e convidativo que algumas pessoas acessam e são marcadas. Ainda assim, vou tentar passar algum histórico e compreensões, para além dos exemplos lisérgicos. Sendo assim, pingue o seu colírio alucinógeno e bora pro texto ; )

Yellow Submarine, filme de 1968.

Possibilidades Psicodélicas

Ainda que muitas pessoas associem a experiência psicodélica diretamente com o uso de substâncias psicoativas, a psicodelia consiste em uma forma particular de experienciar e de se relacionar (perceber e interagir) com o mundo que não depende apenas do uso das drogas psicodélicas. Ela envolve buscas pela expansão da consciência e costuma se relacionar diretamente com alguns estados alterados de consciência, que são obtidos por meio de meditações, da kundalini yoga e também pelo uso de substâncias psicoativas como o LSD, a maconha, o DMT, a ayahuasca e os chamados cogumelos mágicos.

A alteração da consciência relatada durante a experiência com essas substâncias é comumente relacionada à dilatação da percepção temporal, ilusões e/ou alucinações sensoriais, prazeres corporais, ampliação da consciência, elevação e/ou contato espiritual, dissolução do ego e sentimento de pertencimento. Sendo que os usuários que tiveram uma experiência psicodélica tendem a considerá-la entre as mais importantes de suas vidas, uma vez também que conseguem se lembrar do que viram, sentiram e perceberam, diferentemente do mundo alterado dos sonhos, da qual, muitas vezes, nos lembramos de apenas fragmentos.

Estados Alterados de Consciência

Para compreendermos melhor essa experiência, é importante retomar a ideia de estados alterados de consciência. A literatura vai nos dizer que existe um modo normal ou padrão da consciência humana funcionar e que essa envolve sensações e percepções autopsíquicas (percepção de mim), alopsíquicas (percepção do ambiente externo) e temporais mais ou menos conhecidas e previsíveis. Esse funcionamento ordinário está associado à vigília e à saúde mental, enquanto que as alterações são associadas ao sono e fadiga, ao sonho e seu mundo onírico, aos sintomas positivos (delírios e alucinações) como os encontrados em algumas patologias mentais, ao uso de medicação (psiquiátrica ou não), à prática de meditação, ao jejum físico e também pelo uso das sustâncias psicoativas, que podem ser agrupadas em 3 grandes categorias: estimulantes, depressoras e psicodélicas (ou alucinógenas).

“A pesquisa de mestrado de Fernanda, publicada em 2015, investigou com ressonância magnética as conexões entre áreas do cérebro de dez usuários experimentados em ayahuasca. E confirmou, no caso do chá, um efeito conhecido de outros compostos psicodélicos, como LSD, psilocibina, e também da meditação: um redução na atividade da rede de modo padrão, ou DMN (do inglês default mode network).”

(Leite, 2021, p. 22)

LSD, Experimentos e Controle da Mente

Dr. Timothy Leary sendo preso em 1970

O homem vem utilizando sustâncias psicodélicas desde quando há civilização e é possível relatar, por meio, principalmente, dos cactos e dos cogumelos, mas foi apenas em 1938, por Albert Hoffman, que foi sintetizada a dietilamida de ácido lisérgico, conhecida como LSD (descoberta em 1943) e diretamente associada ao movimento hippie e à busca pela expansão da consciência desenfreada pela contracultura estadunidense nos anos 60.

Vale dizer que, mais cedo, nos anos 50, a CIA desenvolveu um projeto denominado MK Ultra, que fez experimentos com mescalina e LSD em seres humanos, visando investigar seus efeitos e suas possibilidades enquanto metodologia para confissões e também para a manipulação das crenças pessoais. Um recorte desse projeto foi incorporado à narrativa do seriado Stranger Things (2016 – ).

Com o avanço da contracultura estadunidense, o fenômeno de massa precisou eleger um ou alguns líderes e um deles foi o doutor em psicologia por Harvard, Timothy Leary, que relatou ter aprendido mais sobre a mente humana durante as 5 ou 8 horas que esteve sob efeito de cogumelos mágicos em viagem no México, do que em toda a sua trajetória acadêmica por Harvard. Foi expulso da universidade após realizar experimentos com substâncias psicodélicas em estudantes, incentivou a utilização de LSD, defendeu a psicoterapia psicodélica e virou uma espécie de guru do movimento hippie. Um pouco mais sobre ele já foi escrito nesse blog e você pode conferir clicando aqui.

Os Hippies e o Ápice da Cultura Psicodélica

Até os Beatles foram afetados pela onda psicodélica

Os anos 60 foram o palco dos primeiros passos e do acelerar de uma marcha hippie e psicodélica, antes que ela fosse, novamente, freada ou dissipada. Em termos visuais estereotipados, no ano de 1964 o mundo ainda era preto e branco e os Beatles se apresentavam de terninho. Em 1965 começam as primeiras cores, as distorções e as novas possibilidades. É importante pensar que a grande cultura internacional psicodélica vai de aproximadamente 1965 até 1969, terminando com o grande festival de Woodstock e mostrando para o mundo que aquela proposta era possível, plausível e havia sido testada por uma multidão que se divertiu, que se amou e que também se acolheu quando aconteceram as adversidades do festival. É entre esses anos que os músicos começaram a utilizar instrumentos não convencionais e técnicas de mixagem inéditas e experimentais, em uma tentativa de externalizar uma música que retratasse aquilo que eles e aquela geração estava experimentando e descobrindo e tentando comunicar. Além das letras hora mais introspectivas, hora descrevendo sensações, visões e experiências provocadas pela viagem lisérgica.

Enquanto os jovens estadunidenses eram convocados para ser bucha de canhão no Vietnã, alguns voltavam e outros se rebelavam. Essa foi a força motriz da resistência da contracultura e resultou na proposta das flores vencendo o canhão. E enquanto a psicodelia fervia na cena de 67, no chamado Summer of Love, e com atenções voltadas para Janis Joplin, Jimi Hendrix, Country Joe & The Fish, Jefferson Airplane, The Doors, Cream, The Byrds e os próprios The Beatles, a onda psicodélica chegou ao Brasil atingindo Os Mutantes e, também se fundindo com o nosso maravilhoso tropicalismo e regionalismo, representado por artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, Alceu Valença, Zé Ramalho, Secos e Molhados, Novos Baianos, e O Terço, para citar alguns. E enquanto eles tiveram o Monterey Pop Festival, de 1967, e o Woodstock, de 1969, o Brasil teve os brilhantes festivais de Música Popular Brasileira, que chegou a juntar Gilberto Gil e Os Mutantes no palco para apresentarem a melhor canção que não venceu aquele festival “Domingo no Parque”. E, mais adiante, a hippilandia brasileira, finalmente, se juntou para assistir o 1º Festival de Águas Claras, conhecido como o nosso Woodstock, que aconteceu já no governo militar de Ernesto Geisel. Sobre esse episódio, vale recomendar o documentário “O Barato de Iacanga” (2019), disponível na Netflix.

Renascimento Psicodélico

Tá, mas e a psicologia? Ahh, agora é que a coisa fica mais interessante. Pois estamos vivendo algo que os cientistas estão chamando de renascimento psicodélico e envolve a exploração e testagem, por meio de protocolos científicos de pesquisa, da aplicação de sustâncias psicodélicas em seres humanos. Após anos de tabu e proibição de pesquisas, várias universidades do mundo estão podendo trabalhar com compostos como o LSD, a psilocibina, o DMT e ayahuasca. Resultados favoráveis e perspectivas otimistas estão sendo observadas naquilo que diz respeito à saúde mental, psicoterapia e tratamento de psicopatologias (como ansiedade, depressão, estresse pós-traumático e também adicções).

“A intensidade da depressão dos participantes no estudo da UFRN foi avaliada por meio de dois questionários e escalas padronizadas (HAM-D e MADRS) com intervalos de um, dois e sete dias depois da sessão de dosagem. Dos catorze pacientes que tomaram ayahuasca, nove apresentaram escores mais baixos de depressão já nos primeiros dias e, para surpresa dos pesquisadores, alguns chegaram a ter resultados ainda melhores sete dias depois. No grupo de controle, que ingeriu placebo, quatro manifestaram melhora.”

(Leite, 2021, p. 18).
Recomendação de livro sobre as possibilidades terapêuticas

No geral, essa utilização envolve o acompanhamento de um médico e de um psicoterapeuta, que irá realizar sessões preliminares de psicoeducação e instrução sobre a substância. Então a substância é aplicada em ambiente terapêutico seguro. E após o uso e experiência, sessões subsequentes são realizadas para descrever, contatar e relatar a experiência. Logo, não se trata de uma sessão apenas ou daquilo que as pessoas podem entender como uso recreativo (ainda que esse possa trazer ótimos insights, questões e modificação de padrões). Mas segue o protocolo de um tratamento e envolve um acompanhamento continuado. Uma bela compilação de dados internacionais e nacionais foi apresentada por Marcelo Leite no livro “Psiconautas: viagens com a ciência psicodélica brasileira”, de 2021.

Por fim, ouçam minha música psicodélica e apertem os cintos pois a viagem está só começando.

“Querido Allen,
Ontem à noite tomei o resto da mistura do yage. Eis o que aconteceu: (…) O quarto parece sacudir e vibrar. O passado desconhecido e o futuro emergente se encontram num zumbido vibrante e sem som.”

(William Burroughs)

Referências

Burroughs, W. & Ginsberg, A. (2008). Cartas do Yage. Porto Alegre: L&PM.

Filho, A. P. C.. (2019). O cenário underground da psicodelia brasileira na década de 1970: aspectos da estética e poética. (Dissertação de mestrado). Goiânia: UFG.

Leite, M. (2021). Psiconautas: viagens com a ciência psicodélica brasileira. São Paulo: Fósforo.

Por Caio Ferreira

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