Antes da virada do ano para 2019, a plataforma de streaming Netflix lançou em seu catálogo um evento Black Mirror – Bandersnatch. Um episódio interativo, no qual o espectador dependendo das escolhas que fizesse ao longo da exibição, poderia de influenciar no desfecho da trama. Nos dias que seguiram ao lançamento, especialistas em Cinema tinham dificuldade de classificá-lo como filme, dado a possibilidade de múltiplos finais da história. Enquanto isto, os especialistas em Games, manifestaram que há pelo menos uma década, jogos proporcionam a possibilidade de optar por qual caminho o avatar seguiria, e com isto, consequentemente alterar o rumo da narrativa.

O plano da Netflix era testar a tecnologia interativa para o público adulto (disponível para o público infantil deste 2017), um diferencial no mercado de streaming, com o objetivo de reter/atrair novos assinantes. Ofertar tecnologia interativa num seriado que propõem reflexões sobre o impacto da tecnologia no comportamento humano era estratégica lógica.

Black Mirror faz parte do imaginário da cultura pop recente. Série britânica antológica, episódios de histórias fechadas, tem o objetivo de antever como será o nosso futuro, o impacto das novas tecnologias e o quanto nós estamos deixando que algoritmos influenciar nossas vidas. Uma espécie de ‘Além da Imaginação’ do século 21, um mix de ficção cientifica, realismo fantástico e hardware/software. O espectador ao assistir quaisquer dos dezoito episódios aleatoriamente é provocado a pensar que, o que ocorre no conteúdo consumido poderá ou poderia acontecer consigo. Quanto mais a ficção se aproxima da nossa realidade ecoa a frase: “Isto é muito Black Mirror!”.

Diferente das 4º temporadas anteriores disponíveis na Netflix, o criador/roteirista desta série Charlie Brooker foi convidado a desenvolver uma história interativa. Apesar de inicialmente recusar a proposta, foi justamente a possibilidade de criar algo inovador utilizando interatividade fez com que ele tivesse ‘a ideia’. No making-off de Bandersnatch, Brooker conta que para tornar o evento possível de ser produzido, fez um fluxograma, que se trata de um diagrama que permite desenhar possibilidades, e com isto, poder vislumbrar o que poderia acontecer com jovem Stefan, logo após a cada escolha feita pelo espectador.

Afinal de contas, o que está em jogo ao assistir Bandersnach?

Conforme requer o protocolo, ressalto que o texto a seguir contém muitos spoilers. Talvez não só deste evento, talvez de outros filmes, ou seriados e livros também.

George Orwell escritor da distopia 1984, poderia nortear está análise, dado que este é o ano que se passa a história de Bandersnatch. Livro originalmente foi escrito em 1949, Orwell narra uma história num futuro distópico em que o Grande Irmão (Big Brother) exercia vigilância governamental onipresente, vendo tudo que o cidadão fazia através daquilo que o autor chamou de ‘teletela’. Black Mirror não costuma repetir temática. No episódio da segunda temporada White Bear, referenciado neste em easter egg, é apresentado um programa de condicionamento para readequar o comportamento de um personagem que infringiu o código da Lei. Em Bandernasch, mais do que uma ‘teletela’ para simplesmente vigiar, a proposta é oferecer ao espectador a possibilidade de controlar o que vai ocorrer na história. O personagem executa o comando de acordo com o determinado pelo espectador, por mais improvável que seja. Isto posto, podemos colocar Orwell de escanteio. Caminho errado, vamos tentar de novo.

De acordo Raphael P.H. Santos, crítico de cinema que definiu Bandersnatch como filme, talvez esta seja adaptação mais aproximada das fábulas sobre a menina Alice escrita por Lewis Caroll. Em Matrix, que neste ano completa 20 anos de lançamento, o programador Neo se sente deslocado do mundo em que vive é e orientado a seguir o coelho branco. Em Westword, seriado da HBO que está em fase de produção da terceira temporada, o engenheiro/desenvolvedor Arnold Weber, tentando entender sua criação, pede a resenha de Alice no País das Maravilhas para o androide Dolores, que não por coincidência, usa um vestido azul claro. Será que temos um padrão, toda a vez um personagem de ficção cientifica é levado a questionar a natureza da sua realidade, Caroll será revisitado?

No livro Através do Espelho e o que Alice Encontrou Lá, o personagem
Bandersnatch, que dá o nome ao episódio, é citado uma única vez no poema Jaguadarte. Como está escrito de forma invertida, Alice conclui que para o poema possa ser lido: “Precisa ser colocado na frente do espelho”. Sempre que algum personagem inicia sua jornada, geralmente é o coelho branco aparece, aqui na forma do brinquedo favorito do menino Stefan.  Aparentemente, o mundo de detrás do espelho é acessado quando o espectador apertou o play.

Além da Toca do Coelho Branco

Encontramos o jovem Stefan explicando para seu pai que irá a empresa desenvolvedora de Games Turkersoft, fazer uma demonstração do protótipo de jogo interativo que ele está desenvolvendo. A concepção por trás do jogo vem do livro ‘escolha sua própria aventura’ Bandersnatch (referência dentro da referência), encontrado nos pertences da sua mãe. Neste tipo de livro, o leitor interage com a história quando é convidado optar por exemplo, entre ir para esquerda e pular para página X, ou direita página Y, e assim avançar na narrativa. Enquanto ouve Stefan, o pai pede para que ele escolha entre o cereal matinal X ou Y, aparece no rodapé da tela exatamente a mesma opção para o espectador que tem de dez segundos para usar a interatividade.

Caso o espectador não queria optar, de alguma forma a história avança e Stefan aceita a oferta para trabalhar na empresa e concluir o projeto do jogo. Neste momento, Collin, desenvolvedor de games com vários títulos lançados, bate em seu ombro e diz: “Escolha errada.” A meta autoproposta pelo jovem programador de criar um jogo inovador não alcança o resultado esperado. Após uma avaliação com a nota zero de cinco pelo crítico de jogos da TV, visualmente frustrado, Stefan diz: “Eu deveria tentar de novo”. A história reinicia em edição acelerada retorna ao ponto em que o espectador, para assistir um novo desfecho, se vê obrigado a escolher outra opção.

Recapitulando, um episódio Black Mirror sobre um jovem que está desenvolvendo um jogo interativo, baseado num livro interativo, que está sendo assistido de forma interativa numa plataforma de streaming, cuja a única possibilidade passar pela jornada é fazer escolhas. Um perfeito exercício metalinguagem num propositalmente simplificado labirinto de espelhos. Inevitavelmente, vem à mente do espectador a pergunta: qual das opções é a correta? “Eu não sei para onde ir!” – disse Alice. “Se você não sabe para onde ir, qualquer caminho serve.” disse o Gato de Cheshire.

Entrando no Laboratório Experimental

A psicologia possui diversas linhas de pensamento que possibilitam observar e analisar os fenômenos do comportamento humano. B.F. Skinner (1904/1990), psicólogo americano formado em Harvard e defensor ferrenho do Behaviorismo, teve como foco central do seu trabalho desenvolver instrumentos que possibilitam a observação do comportamento em ambiente controlado. A caixa de Skinner (imagem abaixo) consistia em colocar um roedor num ambiente fechado, no qual para se alimentar (food tray) precisava pressionar uma barra (lever). Inicialmente, esta era pressionada aleatoriamente, com o decorrer do tempo, o bater na barra é associada com a liberação da ração (food tray). Os estímulos iam sendo alternados para ampliar a coleta de dados: aumentar ou diminuir a água (water), aumentar ou diminuir a quantidade de ração (food pellet dispenser), aumentar ou diminui a incidência de luz (light). Comparando os resultados entre os roedores que recebiam a ração, os que recebiam com maior intervalo de tempo e os que não recebiam nenhuma, assim que a comida era disponibilizada, esta influenciava no futuro comportamento do roedor.

Na imagem ilustrativa da Caixa de Skinner, vemos o roedor em ambiente fechado, com iluminação (light) controlada. Para ter acesso a ração, o roedor deve pressionar a barra (lever) que é fracionada em recipiente externo (food pellet dispenser).

Comportamento operante é aquele que modifica o ambiente, estando sujeito a alterações a partir das consequências de sua atuação sobre o ambiente. Ou seja, as probabilidades futuras de um operante ocorrer novamente estão na dependência das consequências que foram geradas por ele (Skinner,1953).

Voltando a Bandersnatch, a outra opção é recusar o emprego. Stefan, claramente desconfortável com esta resposta que sai da sua boca, propõem trabalhar no jogo em casa. Collin diz que entende, que o jovem é um artesão e  para fazer “algo diferente é preciso um pouco de loucura”. Em seguida, no consultório da sua psiquiatra (somente médicos são habilitados a receitar medicamentos), ele relata não entender porque precisa vir nas consultas e que se sente controlado (em uma das possibilidades o controle é literal) pelo seu pai. O espectador não tem outra opção que não seja ouvir o passado do personagem. O jovem relata que devido ao seu pai ter escondido seu coelho branco de pelúcia, ele perdeu tempo procurando o brinquedo, e com isto, ocasionou um atraso e fez com que sua mãe morresse num acidente e trem, e completa: “Eu odeio ele”.

Além do reforço negativo do prazo para entregar o jogo, é evidente dificuldade com que o jovem tem de preencher seu fluxograma em que todos os caminhos do jogo sejam completados. O comportamento tende a ocorrer numa frequência maior quando está vinculado a um esquema de reforçamento intermitente (Skinner,1953). Alternativas na tela novamente, ou escolhe entrar num beco sem saída, ou a opção aversiva – gritar com o pai – e avançar na história.

A história se bifurca, mesmo que o espectador opte por seguir o Collin que diz: “Você está num buraco e eu vou tentar tira-lo”. De uma forma ou de outra, Stefan entra novamente no consultório de sua psiquiatra e relata que percebe que existem alguém o controlando. A solução dela é aumentar a dose dos medicamentos e pressupõem que isto esteja ocorrendo pela proximidade do aniversário da morte da mãe.

Na caixa de Skinner interativa de Black Mirror a ilusão do espectador é controlar o experimento. Tomar ou não tomar o remédio, pedir ou não pedir mais prazo, pegar o livro ou pegar a foto da família. De alguma forma Stefan tem acesso ao passado do escritor de ‘escolha sua própria aventura’ Bandersnatch, este é uma das variáveis que o espectador não tem controle. Seja numa biografia ou documentário, o autor que inspira Stefan, Jerome F. Davies enlouqueceu ao tentar preencher os múltiplos caminhos do seu livro. Neste ponto, o objetivo de Stefan ou/e do espectador é tirar a nota cinco de cinco da avaliação do jogo, nem que para isto o reforçamento intermitente faça com que tudo chegue as últimas consequências.

Mundo do Espelho em Algoritmo

Curiosamente desde dos seus primórdios, o entretenimento usa tecnologia para testar os limites dos nossos sentidos. Em 1895 os irmãos Lumière exibiram o filme ‘Chegada de um trem à estação da Ciotat’, que mostravam um trem em movimento. Como os espectadores não haviam assimilado que se tratava de uma projeção, muitos saíram da sala correndo e outros como costume em estações de trem, acenavam a chegada. No Halloween de 1938, Orson Wells empregou um tom realístico ao narrar no rádio o conto baseado no livro ‘A Guerra dos Mundos’ de H. G. Wells, que chegou a causar pânico nos ouvintes, que aparamente acreditaram que a invasão alienígena estava em curso. Não é possível afirmar se o pânico fora generalizado, dado que a transmissão deste veículo tinha alcance limitado no início do século XX.


“O comportamento é moldado por reforços positivos e negativos.” B. F. Skinner

Se compararmos a experiência proposta a nossa vida atual, existe a ilusão que as redes sociais, sites de busca, canais e App’ de comunicação em tempo real influenciem em suas escolhas na vida real. Como um espelho invertido, algoritmos são alimentados quando se inicia uma pesquisa de preferências em quaisquer destas plataformas. Somos nós que estamos condicionando a inteligência artificial a mensurar nossos anseios e necessidades, e não o contrário. Skinner afirmava que livre-arbítrio é uma ilusão e que “o comportamento é moldado por reforços positivos e negativos”.

Em suma, Bandersnatch é sobre a ilusão de controle. Em um dos finais, vemos a filha do Collin adulta desenvolvendo o episódio para Netflix que espectador está assistindo. Os créditos aparecem na tela e consigo trazem a falsa percepção que experiência está acabando, quanto aparece novamente a possibilidade de voltar a outra parte da história e fazer novas escolhas. Por mais que o espectador queira chegar a um final mais próximo das suas convicções morais e éticas, isto é, um episódio Black Mirror, todas as possibilidades de entretenimento estão devidamente editadas. Para serem assistidas, lembre-se de acordo com Collin, numa das alternativas: “A escolha é sua, inteiramente sua”. A falsa percepção é que a cada estimulo é possível modelar comportamento do personagem, entretanto, a cognição de entretenimento interativo fora inclusa no repertório do espectador enquanto o este apertava a barra, quer dizer, controle remoto, mouse ou touchpad.

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Masilvia Alves Diniz

Referências Bibliográficas

Skinner, B. F. (1974/2006). Sobre o behaviorismo. São Paulo: Cultrix

Bahls, S. Clair e Navolar, Ariana B. Borba. Terapia Cognitivo-Comportamentais: Conceitos e Pressupostos Teóricos. (2004). Curitiba. Disponível: http://files.personapsicologia.webnode.com/200000093-024d10346f/Terapias%20Cognitivo-comportamentais.pdf

Vários Colaboradores. Livro da Psicologia (2012). Tradução Hermeto Clara M. e Martins A. L. São Paulo: Globo

Black Mirror – Bandersnach. Direção: David Slade: Netflix, 2018. Streaming (90 minutos).

Santos, P. H. Raphael. Black Mirror – BLACK MIRROR: Bandersnatch – Jogo ou filme? (Netflix, 2018) | Crítica 2019 . (12m55s). Disponível: https://www.youtube.com/watch?v=wSeYPMOwW9I&t=439s Acesso: 31 dez. 2018

Santos, P. H. Raphael. Black Mirror – Bandersnach: 6 Finais Explicados! 2019 . (13m15s). Disponível: https://www.youtube.com/watch?v=2Uhk8NU6dfI. Acesso: 03 jan. 2019

Orwell, G. 1984. (1998). São Paulo: Companhia das Letras.

L. Carrol. Alice no Pais das Maravilhas (2015). Tradução Leite Sebastião Uchoa. São Paulo: Editora 34.

L. Carrol. Através do Espelho e o que Alice Encontrou Lá. (2015). Tradução Leite Sebastião Uchoa. São Paulo: Editora 34.


3 comentários

Pink e o Cérebro: O Erro Elementar | Sociedade dos Psicólogos · 19 de fevereiro de 2019 às 03:13

[…] sobre o episódio de Black Mirror falamos sobre este experimento (clique aqui e leia o texto)https://spsicologos.com/2019/01/15/black-mirror-bandersnach-caixa-de-skinner-interativa/ . Um desenho é entretenimento não uma aula de história, apesar experimento estar de forma […]

Ansiedade, Atenção Plena e Black Mirror – Smithereens | Sociedade dos Psicólogos · 18 de junho de 2019 às 14:53

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