Game of Thrones or Game of Words

Game of Thrones chegou ao fim.

Durantes anos, uma legião de espectadores assistiram na HBO e compartilharam suas opiniões através de inúmeras teorias, memes e spoilers dos episódios tentando prever quem ascenderia ao Trono de Ferro.

Há uma década antes de ser o seriado mais assistido/pirateado da história recente, inúmeros e ávidos leitores clamavam por uma adaptação das Crônicas de Gelo e Fogo, publicação de uma série dos atuais cinco e pretensos sete livros escritos por George R. R. Martin, jornalista de formação, escritor desde da década de 70 de ficção cientifica, terror e fantasia e roteirista de series de TV entre os anos 80/90.

O autor estava cansado de ver seus enredos anteriores mutilados para servir ao propósito comercial dos produtores de TV. O objetivo inicial de Martin com suas Crônicas era contar uma história que não pudesse limitar-se por questões geográficas, introdução de personagens e principalmente por prazo de entrega. O último livro da saga foi lançado em 2011. Nos anos que se seguiram, o autor produziu contos, novelas e livros dentro do mesmo universo, seguindo o seu projeto original enquanto a série estava indo por outros caminhos.

Algo em particular despertou o fascínio do público tanto nos livros quanto na série. Quando se pergunta ao seduzido espectador o porquê gosta do Universo de Game of Thrones, a resposta comumente é a mesma: não há a dicotomia, que é tão habitualmente é utilizada nas histórias de gênero, ou seja, nenhum personagem essencialmente do Bem ou do Mal. Dentro deste contexto qualquer personagem pode fazer uma coisa abominável com o objetivo de fazer ‘o melhor para o bem de todos’.

As Crônicas de Gelo e Fogo são um tratado sobre o discurso, a habilidade de colocar em palavras as estratégias sem dizer qual é o próximo passo aos seus oponentes. O Jogo dos Tronos é muito mais do que uma disputa para ver quem governará os Sete Reinos, é um jogo das palavras.

Alerta de Spoilers

Este texto foi construído com o objetivo de introduzir dos conceitos do um outro livro, Comportamento Verbal de B. F. Skinner, por isto, utilizei alguns diálogos dos livros/série sem revelar nenhum detalhe da trama. Devido a crescente decepção no final com a série, neste texto exponho argumentos sobre que lições podemos aprender sobre expectativa versus realidade.

Sala das Faces, na Casa do Preto e do Branco. É sim, está na foto sou eu.

Você não sabe nada, Jon Snow.

Ygritte, 2º Ep. 7º Temp.

Quando bem escritas, obras de ficção nos apresentam personagens com coerência narrativa, cujas ações/emoções sempre estão no volume máximo ou mínimo e categoricamente com efeito distorcido. Um bom exemplo de personagem coerente passível de análise psicológica é Hamlet, tragédia escrita por Willian Shakespeare, que posteriormente foi analisada pelo psicanalista Ernest Jones no livro ‘Hamlet e o Édipo’ (Ed. Zahar 1970).

As Crônicas de Gelo e Fogo é uma obra ficcional, que é contada pelo ponto de vista do personagem que está narrando o capítulo. Os entendedores sabem que para ter uma visão panorâmica da história é necessário montar um quebra cabeça intricado. Nos livros como a narrativa esta em primeira pessoa, em alguns capítulos temos um vislumbre do que se passa dentro da mente de um personagem quando este está pensando. No capítulo seguinte, outro personagem assume a narrativa, novas informações são inclusas na história, e isto fornece mais dúvidas do que certezas sobre, digamos assim, o caráter dos personagens. Especificamente na Dança dos Dragões, quando os acontecimentos são interrompidos apresentam nuanças jamais vistas dos personagens, vide exemplo Lord Varys.

No caso da série de TV, a complexidade ainda é maior, pois os espectadores tem uma visão ampla, com pontos de vistas diferentes da mesma cena sendo contada ao mesmo tempo. Como parte do entretenimento é tornar a história imprevisível e não há tantos diálogos expositivos, o espectador é capturado para dentro do episódio através da visão de um dos personagens. Quanto mais coesa e coerente a narrativa é, mais seus espectadores conseguem manter a suspensão de descrença, a capacidade de assimilar os acontecimentos da historia sem perceber, como dizem, ‘que algo de errado não esta certo’.

“O homem que dita a sentença deve brandir a espada.”

Ned Stark, 1º Ep. 1º Temp.

Na Psicologia Comportamental, B. F. Skinner em estudos no seu laboratório, percebeu que o quê falamos também expressa comportamento. Isto pode parecer se tratar da língua materna e da aprendizagem por fonemas (sons), mas é um pouco mais complexo do que isto, há uma correlação entre o conteúdo e a forma.

Segundo Skinner, o comportamento verbal é comportamento operante, agindo sobre o ambiente e sofrendo as consequências da alteração que provoca nele. Estas consequências – como o reforço e a punição – determinarão a probabilidade de emissão futura da classe de respostas que integram o operante (Passos, 2003). Porém isto é compartilhado com uma comunidade social constrói esta mediação moldando as ações de seus membros para poderem ensinar outros membros como verbalizarem efetivamente através de formas apropriadas de ação (Vargas, 2007).

“A humanidade age sobre o mundo, e o modifica, e é mudada por sua vez, pelas consequências de suas ações

Skinner, Comportamento Verbal

Através da evolução genética e organização social, ensinamos e praticamos a linguagem como parte do nosso conjunto de comportamentos emitidos. Ressalto que o contexto de análise deva considerar o conjunto dos comportamentos verbais e não verbais para uma avaliação, e com isto, evitar descontextualização.

Imagine que ao aprender a falar a sua primeira frase uma criança diga: “o céu é azul”, o comportamento fora emitido, porém este será validado assim que passar pela aprovação em conteúdo e contexto, ou seja, sua mãe respondendo: “sim o céu é azul”. Nosso indivíduo pode continuar repetindo sua fala sobre o céu, mas se a comunidade ao seu redor não concordar com o que foi dito, ele terá que reavaliar sua fala até que esteja readequada. Você pode me dizer que nada mudará a cor do céu, isto é fato; mas não é exatamente típico um adulto puxar uma conversar dizendo ‘o céu é azul’.

Algo em Game of Thrones fornece substância aos personagens e que conecta com sua linhagem e trajetória. Seja por autoafirmação ou para se posicionar no jogo ou em diálogos com outros personagens que fazem sempre se lembrem quem são e qual é o papel eles tem nesta história: o lema das casas.

Casa Targaryen

Lema: Fogo e Sangue. Estandarte: Dragão vermelho com três cabeças num fundo preto escrito.

“Sou Daenerys, filha da tempestade, da casa dos Targaryen, do sangue da antiga Valíria. Eu sou a filha dos dragões, e eu juro que aqueles que querem prejudicá-los morrerão gritando.” Daenerys Targaryen

Casa Stark

Lema: O Inverno Está Chegando.
Estandarte: Lobo gigante cinza com fundo preto.

“O homem que dita a sentença deve brandir a espada.” Ned Stark

Casa Lannister

Lema: Ouça-me rugir. Eles preferem dizer que “Lannister sempre pagam as suas dívidas”.
Estandarte: Leão dourado num fundo vermelho.

“Quando se entra no jogo dos tronos, ou ganha ou morre.” Cersei Lanister

Como afirma Skinner, os indivíduos são moldados de acordo com as consequências de suas ações. Em GoT, os personagens em suas falas, expõem aos outros quais são suas motivações internas e os demais podem validar ou não dependendo das circunstancias.

Valar Morghulis*

Jaqen H’ghar, 2º Ep. 10º Temp. *Todos os homens tem que morrer. Alto Valeriano língua fictícia dos livros.

Expectadores estão (digamos assim) decepcionados com os rumos tomados pelos produtores da série de TV, David Benioff e D. B. Weiss (comumente conhecidos como D&D). Nas redes sociais após a exibição do último episódio, o gosto agridoce que Martin disse que a história teria no fim, quando transposto para TV ficou amargo.

Em seu início a série de TV era promissora, conseguiu adaptar com qualidade ‘O Jogo dos Tronos’, primeiro livro das Crônicas. Quanto mais se avançava, mais complexa a narrativa dos livros ficava, mas o fandom questionava decisões ora inexistente nos livros ora sem nexo dos personagens.

Se compararmos a adaptação do Senhor dos Anéis pelo diretor Peter Jackson, muitos dirão que os filmes superaram os livros. Isto acontece porque Tolkien não era um escritor, ele não tinha habilidade de contar uma história. Martin é, leva em média cinco anos para escrever um livro. Frequentemente seus leitores não se sentem representados com o que assistem na HBO.

Trailer do 6º Episódio 8º Temporada Season Finale

Valar Dohaeris**

Verme Cinzento, 3º Ep. 8º Temp. **Todos os homens devem servir. Alto Valeriano língua fictícia dos livros.

Os argumentos que sustentam a defesa dos produtores, apontam que eles compraram o desafio de transpor uma história que não havia sido apropriadamente terminada. Quando a série ultrapassou os livros em enredo, negociaram com Martin quais seriam os pontos chaves da trama, assumindo a responsabilidade de preencher lacunas.

Martin afirmou que não ficou muito satisfeito com as resoluções da série, mas também confessou aos 60 Minutes Overtime que não forneceu detalhes de como estes eventos impactariam no comportamento dos personagens e tramas secundárias que facilitam a narrativa.

Conveniências de roteiro fizeram com que uma personagem citasse ipsis litteris Maquiavel – O Príncipe cujo o capítulo XVII – Da Crueldade e da Piedade – Se é Melhor ser Amado ou Temido. Será que na Cidadela temos um exemplar desta obra clássica? Brincadeiras a parte, Martin também poderia se inspirar em Maquiavel, mas certamente seria mais sutil.

George R.R. Martin o autor em entrevista para 60 Minutes Overtime

Será que os personagens terão o mesmo destino da série nos livros?

Assim como seus personagens, um escritor também tem que pagar suas dívidas. Martin disse que não optou ver como a série acabaria para dar sequência à história da sua maneira. “Os livros estarão prontos quando estiverem prontos.” Se um dia veremos a história terminar como está sendo concebida pelo seu autor, somente o tempo dirá.

D&D cumpriram o que se prometeram em fazer: maior série de TV de todos os tempos. Em retrospecto, Game of Thrones, pode ter inovado em efeitos especiais, elenco e quantidade de figurantes, filmagens em locações ao redor do mundo e outros números fabulosos que serão revelados no documentário Game of Thrones: “The Last Watch”.

Trailer do documentário Game of Thrones: The Last Watch

Realmente o ficará na memória dos que viveram este momento, é o fato de milhões de pessoas ao redor do mundo terem a sensação pertencerem a uma comunidade: ter o aumento do número de ‘likes’ ao marcar #gameofthrones nas redes sociais, tendo argumentos para iniciar um papo com desconhecidos, repetir frases dos seus personagens favoritos e receberem feedbacks emocionais, e quem sabe, sentirem-se validados por outras pessoas naquilo que com o que se identificam. Talvez seja esta a maior parte da frustação, o fato é que a realidade bate a porta, depois de nove anos a série chegou ao fim.

O fim da série não é o fim da comunidade, o comportamento verbal precisa se manter acesso. Está aberta a temporada de ‘fanfics’, versões alternativas escritas pelos fãs para editarem o final que satisfaçam as expectativas frustradas. Enquanto isto, HBO pode se gabar da série ser a primeira vez que veremos esta história, mas certamente não será a última.

Masilvia Diniz, primeira de seu nome e Psicóloga

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A SONG OF ICE AND FIRE. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2019. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=A_Song_of_Ice_and_Fire&oldid=55076890>. Acesso em: 8 mai. 2019.

EMBLEMA. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2018. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Emblema&oldid=52569191>. Acesso em: 5 jul. 2018.

GAME OF THRONES – Seasson Finaly. Criação David Benioff e D. B. Weiss: 2019. TV Series. HBO.

GEORGE R. R. MARTIN. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2019. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=George_R._R._Martin&oldid=54941523>. Acesso em: 25 abr. 2019.

GEORGE R. R. MARTIN. (2010) As Crônicas de Gelo e Fogo – Livro 1 a Livro 5. São Paulo. Editora Leya.

J. R. R. TOLKIEN. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2019. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=J._R._R._Tolkien&oldid=54930581>. Acesso em: 24 abr. 2019.

MAQUIAVEL. (1999). O Príncipe. Maquiavel – Vida e Obra. São Paulo. Editora Nova Cultural.

PASSOS, L. R. F, Maria. A análise funcional do comportamento verbal em Verbal Behavior (1957) de B. F. Skinner. (2003). Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva. Rio de Janeiro. Vol. V, nº 2, 195-213. Disponível: https://scholar.google.com.br/scholar?hl=pt-BR&as_sdt=0%2C5&q=A+an%C3%A1lise+funcional+do+comportamento+verbal+em+Verbal+Behavior+%281957%29+de+B.+F.+Skinner&btnG=

SKINNER, B. F. (1957) O Comportamento Verbal. Cambridge, MA: B. F. Skinner Foundation.

60 MINUTES OVERTIME. How will George R.R. Martin’s final “Game of Thrones” books end? 2019. (3m3s). Disponível: https://www.youtube.com/watch?v=SjDentEr9c4&t=11s

VARGAS, A. Ernst.  O Comportamento Verbal de B. F. Skinner: uma introdução. (2007). Belo Horizonte. Rev. Bras. de Ter. Comp. Cogn., Belo Horizonte-MG, 2007, Vol. IX, nº 2, 153-174172. Disponível: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-55452007000200002

Black Mirror Bandersnatch: Caixa de Skinner Interativa

Antes da virada do ano para 2019, a plataforma de streaming Netflix lançou em seu catálogo um evento Black Mirror – Bandersnatch. Um episódio interativo, no qual o espectador dependendo das escolhas que fizesse ao longo da exibição, poderia de influenciar no desfecho da trama. Nos dias que seguiram ao lançamento, especialistas em Cinema tinham dificuldade de classificá-lo como filme, dado a possibilidade de múltiplos finais da história. Enquanto isto, os especialistas em Games, manifestaram que há pelo menos uma década, jogos proporcionam a possibilidade de optar por qual caminho o avatar seguiria, e com isto, consequentemente alterar o rumo da narrativa.

O plano da Netflix era testar a tecnologia interativa para o público adulto (disponível para o público infantil deste 2017), um diferencial no mercado de streaming, com o objetivo de reter/atrair novos assinantes. Ofertar tecnologia interativa num seriado que propõem reflexões sobre o impacto da tecnologia no comportamento humano era estratégica lógica.

Black Mirror faz parte do imaginário da cultura pop recente. Série britânica antológica, episódios de histórias fechadas, tem o objetivo de antever como será o nosso futuro, o impacto das novas tecnologias e o quanto nós estamos deixando que algoritmos influenciar nossas vidas. Uma espécie de ‘Além da Imaginação’ do século 21, um mix de ficção cientifica, realismo fantástico e hardware/software. O espectador ao assistir quaisquer dos dezoito episódios aleatoriamente é provocado a pensar que, o que ocorre no conteúdo consumido poderá ou poderia acontecer consigo. Quanto mais a ficção se aproxima da nossa realidade ecoa a frase: “Isto é muito Black Mirror!”.

Diferente das 4º temporadas anteriores disponíveis na Netflix, o criador/roteirista desta série Charlie Brooker foi convidado a desenvolver uma história interativa. Apesar de inicialmente recusar a proposta, foi justamente a possibilidade de criar algo inovador utilizando interatividade fez com que ele tivesse ‘a ideia’. No making-off de Bandersnatch, Brooker conta que para tornar o evento possível de ser produzido, fez um fluxograma, que se trata de um diagrama que permite desenhar possibilidades, e com isto, poder vislumbrar o que poderia acontecer com jovem Stefan, logo após a cada escolha feita pelo espectador.

Afinal de contas, o que está em jogo ao assistir Bandersnach?

Conforme requer o protocolo, ressalto que o texto a seguir contém muitos spoilers. Talvez não só deste evento, talvez de outros filmes, ou seriados e livros também.

George Orwell escritor da distopia 1984, poderia nortear está análise, dado que este é o ano que se passa a história de Bandersnatch. Livro originalmente foi escrito em 1949, Orwell narra uma história num futuro distópico em que o Grande Irmão (Big Brother) exercia vigilância governamental onipresente, vendo tudo que o cidadão fazia através daquilo que o autor chamou de ‘teletela’. Black Mirror não costuma repetir temática. No episódio da segunda temporada White Bear, referenciado neste em easter egg, é apresentado um programa de condicionamento para readequar o comportamento de um personagem que infringiu o código da Lei. Em Bandernasch, mais do que uma ‘teletela’ para simplesmente vigiar, a proposta é oferecer ao espectador a possibilidade de controlar o que vai ocorrer na história. O personagem executa o comando de acordo com o determinado pelo espectador, por mais improvável que seja. Isto posto, podemos colocar Orwell de escanteio. Caminho errado, vamos tentar de novo.

De acordo Raphael P.H. Santos, crítico de cinema que definiu Bandersnatch como filme, talvez esta seja adaptação mais aproximada das fábulas sobre a menina Alice escrita por Lewis Caroll. Em Matrix, que neste ano completa 20 anos de lançamento, o programador Neo se sente deslocado do mundo em que vive é e orientado a seguir o coelho branco. Em Westword, seriado da HBO que está em fase de produção da terceira temporada, o engenheiro/desenvolvedor Arnold Weber, tentando entender sua criação, pede a resenha de Alice no País das Maravilhas para o androide Dolores, que não por coincidência, usa um vestido azul claro. Será que temos um padrão, toda a vez um personagem de ficção cientifica é levado a questionar a natureza da sua realidade, Caroll será revisitado?

No livro Através do Espelho e o que Alice Encontrou Lá, o personagem
Bandersnatch, que dá o nome ao episódio, é citado uma única vez no poema Jaguadarte. Como está escrito de forma invertida, Alice conclui que para o poema possa ser lido: “Precisa ser colocado na frente do espelho”. Sempre que algum personagem inicia sua jornada, geralmente é o coelho branco aparece, aqui na forma do brinquedo favorito do menino Stefan.  Aparentemente, o mundo de detrás do espelho é acessado quando o espectador apertou o play.

Além da Toca do Coelho Branco

Encontramos o jovem Stefan explicando para seu pai que irá a empresa desenvolvedora de Games Turkersoft, fazer uma demonstração do protótipo de jogo interativo que ele está desenvolvendo. A concepção por trás do jogo vem do livro ‘escolha sua própria aventura’ Bandersnatch (referência dentro da referência), encontrado nos pertences da sua mãe. Neste tipo de livro, o leitor interage com a história quando é convidado optar por exemplo, entre ir para esquerda e pular para página X, ou direita página Y, e assim avançar na narrativa. Enquanto ouve Stefan, o pai pede para que ele escolha entre o cereal matinal X ou Y, aparece no rodapé da tela exatamente a mesma opção para o espectador que tem de dez segundos para usar a interatividade.

Caso o espectador não queria optar, de alguma forma a história avança e Stefan aceita a oferta para trabalhar na empresa e concluir o projeto do jogo. Neste momento, Collin, desenvolvedor de games com vários títulos lançados, bate em seu ombro e diz: “Escolha errada.” A meta autoproposta pelo jovem programador de criar um jogo inovador não alcança o resultado esperado. Após uma avaliação com a nota zero de cinco pelo crítico de jogos da TV, visualmente frustrado, Stefan diz: “Eu deveria tentar de novo”. A história reinicia em edição acelerada retorna ao ponto em que o espectador, para assistir um novo desfecho, se vê obrigado a escolher outra opção.

Recapitulando, um episódio Black Mirror sobre um jovem que está desenvolvendo um jogo interativo, baseado num livro interativo, que está sendo assistido de forma interativa numa plataforma de streaming, cuja a única possibilidade passar pela jornada é fazer escolhas. Um perfeito exercício metalinguagem num propositalmente simplificado labirinto de espelhos. Inevitavelmente, vem à mente do espectador a pergunta: qual das opções é a correta? “Eu não sei para onde ir!” – disse Alice. “Se você não sabe para onde ir, qualquer caminho serve.” disse o Gato de Cheshire.

Entrando no Laboratório Experimental

A psicologia possui diversas linhas de pensamento que possibilitam observar e analisar os fenômenos do comportamento humano. B.F. Skinner (1904/1990), psicólogo americano formado em Harvard e defensor ferrenho do Behaviorismo, teve como foco central do seu trabalho desenvolver instrumentos que possibilitam a observação do comportamento em ambiente controlado. A caixa de Skinner (imagem abaixo) consistia em colocar um roedor num ambiente fechado, no qual para se alimentar (food tray) precisava pressionar uma barra (lever). Inicialmente, esta era pressionada aleatoriamente, com o decorrer do tempo, o bater na barra é associada com a liberação da ração (food tray). Os estímulos iam sendo alternados para ampliar a coleta de dados: aumentar ou diminuir a água (water), aumentar ou diminuir a quantidade de ração (food pellet dispenser), aumentar ou diminui a incidência de luz (light). Comparando os resultados entre os roedores que recebiam a ração, os que recebiam com maior intervalo de tempo e os que não recebiam nenhuma, assim que a comida era disponibilizada, esta influenciava no futuro comportamento do roedor.

Na imagem ilustrativa da Caixa de Skinner, vemos o roedor em ambiente fechado, com iluminação (light) controlada. Para ter acesso a ração, o roedor deve pressionar a barra (lever) que é fracionada em recipiente externo (food pellet dispenser).

Comportamento operante é aquele que modifica o ambiente, estando sujeito a alterações a partir das consequências de sua atuação sobre o ambiente. Ou seja, as probabilidades futuras de um operante ocorrer novamente estão na dependência das consequências que foram geradas por ele (Skinner,1953).

Voltando a Bandersnatch, a outra opção é recusar o emprego. Stefan, claramente desconfortável com esta resposta que sai da sua boca, propõem trabalhar no jogo em casa. Collin diz que entende, que o jovem é um artesão e  para fazer “algo diferente é preciso um pouco de loucura”. Em seguida, no consultório da sua psiquiatra (somente médicos são habilitados a receitar medicamentos), ele relata não entender porque precisa vir nas consultas e que se sente controlado (em uma das possibilidades o controle é literal) pelo seu pai. O espectador não tem outra opção que não seja ouvir o passado do personagem. O jovem relata que devido ao seu pai ter escondido seu coelho branco de pelúcia, ele perdeu tempo procurando o brinquedo, e com isto, ocasionou um atraso e fez com que sua mãe morresse num acidente e trem, e completa: “Eu odeio ele”.

Além do reforço negativo do prazo para entregar o jogo, é evidente dificuldade com que o jovem tem de preencher seu fluxograma em que todos os caminhos do jogo sejam completados. O comportamento tende a ocorrer numa frequência maior quando está vinculado a um esquema de reforçamento intermitente (Skinner,1953). Alternativas na tela novamente, ou escolhe entrar num beco sem saída, ou a opção aversiva – gritar com o pai – e avançar na história.

A história se bifurca, mesmo que o espectador opte por seguir o Collin que diz: “Você está num buraco e eu vou tentar tira-lo”. De uma forma ou de outra, Stefan entra novamente no consultório de sua psiquiatra e relata que percebe que existem alguém o controlando. A solução dela é aumentar a dose dos medicamentos e pressupõem que isto esteja ocorrendo pela proximidade do aniversário da morte da mãe.

Na caixa de Skinner interativa de Black Mirror a ilusão do espectador é controlar o experimento. Tomar ou não tomar o remédio, pedir ou não pedir mais prazo, pegar o livro ou pegar a foto da família. De alguma forma Stefan tem acesso ao passado do escritor de ‘escolha sua própria aventura’ Bandersnatch, este é uma das variáveis que o espectador não tem controle. Seja numa biografia ou documentário, o autor que inspira Stefan, Jerome F. Davies enlouqueceu ao tentar preencher os múltiplos caminhos do seu livro. Neste ponto, o objetivo de Stefan ou/e do espectador é tirar a nota cinco de cinco da avaliação do jogo, nem que para isto o reforçamento intermitente faça com que tudo chegue as últimas consequências.

Mundo do Espelho em Algoritmo

Curiosamente desde dos seus primórdios, o entretenimento usa tecnologia para testar os limites dos nossos sentidos. Em 1895 os irmãos Lumière exibiram o filme ‘Chegada de um trem à estação da Ciotat’, que mostravam um trem em movimento. Como os espectadores não haviam assimilado que se tratava de uma projeção, muitos saíram da sala correndo e outros como costume em estações de trem, acenavam a chegada. No Halloween de 1938, Orson Wells empregou um tom realístico ao narrar no rádio o conto baseado no livro ‘A Guerra dos Mundos’ de H. G. Wells, que chegou a causar pânico nos ouvintes, que aparamente acreditaram que a invasão alienígena estava em curso. Não é possível afirmar se o pânico fora generalizado, dado que a transmissão deste veículo tinha alcance limitado no início do século XX.


“O comportamento é moldado por reforços positivos e negativos.” B. F. Skinner

Se compararmos a experiência proposta a nossa vida atual, existe a ilusão que as redes sociais, sites de busca, canais e App’ de comunicação em tempo real influenciem em suas escolhas na vida real. Como um espelho invertido, algoritmos são alimentados quando se inicia uma pesquisa de preferências em quaisquer destas plataformas. Somos nós que estamos condicionando a inteligência artificial a mensurar nossos anseios e necessidades, e não o contrário. Skinner afirmava que livre-arbítrio é uma ilusão e que “o comportamento é moldado por reforços positivos e negativos”.

Em suma, Bandersnatch é sobre a ilusão de controle. Em um dos finais, vemos a filha do Collin adulta desenvolvendo o episódio para Netflix que espectador está assistindo. Os créditos aparecem na tela e consigo trazem a falsa percepção que experiência está acabando, quanto aparece novamente a possibilidade de voltar a outra parte da história e fazer novas escolhas. Por mais que o espectador queira chegar a um final mais próximo das suas convicções morais e éticas, isto é, um episódio Black Mirror, todas as possibilidades de entretenimento estão devidamente editadas. Para serem assistidas, lembre-se de acordo com Collin, numa das alternativas: “A escolha é sua, inteiramente sua”. A falsa percepção é que a cada estimulo é possível modelar comportamento do personagem, entretanto, a cognição de entretenimento interativo fora inclusa no repertório do espectador enquanto o este apertava a barra, quer dizer, controle remoto, mouse ou touchpad.

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Masilvia Alves Diniz

Referências Bibliográficas

Skinner, B. F. (1974/2006). Sobre o behaviorismo. São Paulo: Cultrix

Bahls, S. Clair e Navolar, Ariana B. Borba. Terapia Cognitivo-Comportamentais: Conceitos e Pressupostos Teóricos. (2004). Curitiba. Disponível: http://files.personapsicologia.webnode.com/200000093-024d10346f/Terapias%20Cognitivo-comportamentais.pdf

Vários Colaboradores. Livro da Psicologia (2012). Tradução Hermeto Clara M. e Martins A. L. São Paulo: Globo

Black Mirror – Bandersnach. Direção: David Slade: Netflix, 2018. Streaming (90 minutos).

Santos, P. H. Raphael. Black Mirror – BLACK MIRROR: Bandersnatch – Jogo ou filme? (Netflix, 2018) | Crítica 2019 . (12m55s). Disponível: https://www.youtube.com/watch?v=wSeYPMOwW9I&t=439s Acesso: 31 dez. 2018

Santos, P. H. Raphael. Black Mirror – Bandersnach: 6 Finais Explicados! 2019 . (13m15s). Disponível: https://www.youtube.com/watch?v=2Uhk8NU6dfI. Acesso: 03 jan. 2019

Orwell, G. 1984. (1998). São Paulo: Companhia das Letras.

L. Carrol. Alice no Pais das Maravilhas (2015). Tradução Leite Sebastião Uchoa. São Paulo: Editora 34.

L. Carrol. Através do Espelho e o que Alice Encontrou Lá. (2015). Tradução Leite Sebastião Uchoa. São Paulo: Editora 34.

As 3 Grandes Forças em Psicologia

Psicologia? Psicanálise? Behaviorismo? Gestalt-Terapia? Perls? Skinner? Freud? Como é estruturado o saber psicológico? O que é o que?

O texto de hoje visa explanar sobre as chamadas 3 Grandes Forças em Psicologia, a fim de traçar uma organização teórica e cronológica acerca do behaviorismo, psicanálise e das linhas humanistas-existenciais.

A Psicologia enquanto ciência

Wundt e estudantes de psicologia em Leipzig

1879 é considerado o ano de nascimento da psicologia. Naturalmente que já se falava de psicologia e de temas como mente, comportamento, felicidade, sofrimento, percepção, inteligência, emoção, saúde, doença, entre outros tópicos basilares, desde a antiguidade, porém, 1879 é o ano em que W. M. Wundt (1832-1920) funda o 1º laboratório de psicologia experimental (Psychologische Institut, na Universidade de Leipzig – Alemanha). É a partir dessa data que a psicologia começa a criar um campo de conhecimento próprio, com metodologia própria e separada do saber filosófico.

Esta ciência tem de investigar os fatos da consciência, suas combinações e relações, de tal modo que possam, finalmente, descobrir as leis que governam tais relações e combinações.

(Wundt, 1912/1973, p. 1)

Os primeiros psicólogos experimentais (além de Wundt vale citar Ernst Heinrich Weber [1795-1878] e Gustav Theodor Fechner [1801-1889]) se debruçaram sobre temas como consciência, introspecção, sensação e percepção, limiares de percepção, atenção e emoções, por exemplo e utilizaram, principalmente, técnicas da chamada psicometria e psicofísica, para analisar e medir esses fenômenos.

A partir dessas investigações surgem ramificações, movimentos e escolas próprias como o estruturalismo, o funcionalismo, o behaviorismo (1ª grande força), a psicanálise (2ª grande força) e a psicologia humanista-existencial (3ª grande força). Essas correntes psicológicas são arcabouços teórico-práticos que influenciam a forma com que o psicólogo compreende e intervém sobre as questões humanas.

1ª Grande Força em Psicologia: o Behaviorismo

skinner, watson e pavlov
(Skinner, Watson e Pavlov com um cão, respectivamente)

O behaviorismo (ou comportamentalismo) nasce como uma crítica ao introspeccionismo e às teorias mentalistas (como a psicanálise), isto é, quando o indivíduo busca acessar, se conscientizar e relatar seus estados internos. Para os behavioristas, o introspeccionismo é falho e, além de fornecer informações errôneas, afasta a psicologia do seu verdadeiro objeto de estudo – o comportamento.

O problema mentalista pode ser evitado com procurarmos diretamente as causas físicas anteriores, desviando-nos dos sentimentos ou estados mentais intermediários. A maneira mais rápida de fazer isto consistem em limitarmo-nos àquilo que um dos primeiros behavioristas, Max Meyer, chamou de “a psicologia do outro”; considerar apenas aqueles fatos que podem ser objetivamente observados no comportamento de alguém em relação com a sua história ambiental prévia. Se todas as ligações são lícitas, não se perde nada por desconsiderar uma ligação supostamente imaterial.

(Skinner, 1974/2006, p. 16)

Dessa forma, essa corrente da psicologia se debruçou sobre o que pode ser observado e mensurado diretamente, isto é, o ambiente e o comportamento da pessoa, ou seja, as contingencias ambientas e comportamentais (estímulos anteriores e posteriores referentes à uma ação).

Podemos entender estímulo como “uma alteração detectável no meio em que o indivíduo está inserido” (Lombard-Platet, Watanabe & Cassetari, p. 37, 2008), o que compreende, por exemplo, alterações na luminosidade, temperatura, sons, cheiros e qualquer coisa captada pelos órgãos sensoriais. O comportamento, em um primeiro momento, tem ser uma ação observável e mensurável, isto é, o behaviorista não analisa o “sofrer” ou a “diversão”, mas pode analisar, em intensidade e frequência, o chorar, a diminuição da fala, a mudança na postura, o gritar, o sorrir, o pular, o correr…. Também falamos de comportamentos involuntários (respondentes, como alteração de pupila, sudorese, salivação, erubescer…) e voluntários (operantes, como acender a luz, pegar uma revista, andar até a padaria…). De uma forma resumida, os comportamentos involuntários são eliciados pelos estímulos antecedentes (condicionamento clássico, pavloviano ou respondente) enquanto os comportamentos voluntários são emitidos, reforçados, punidos ou extintos pelas suas consequências – o estímulo posterior (condicionamento operante). Com o avanço da corrente behaviorista passou-se a falar também dos chamados comportamentos encobertos, isto é, aqueles que não são observados diretamente por outrem (como pensar, sonhar, imaginar…). É importante dizer também que seu desenrolar/legado fez nascer a TCC – Terapia Cognitivo-Comportamental.

Autores do Behaviorismo

Os 3 principais e “clássicos” autores do behaviorismo são I. Pavlov (1849-1936), responsável pela descoberta do comportamento respondente; J. B. Watson (1878-1958), considerado o fundador da corrente, pai do behaviorismo metodológico e famoso pelo experimento do pequeno Albert; e B. F. Skinner (1904-1990), pai do behaviorismo radical, que ampliou as “Leis do Efeito” (de E. L. Thorndike) enquanto compreensão do comportamento operante, grande autor sobre processo de aprendizagem, criador da Caixa de Skinner, famoso pelos experimentos e demonstrações com ratos e pombos.

2ª Grande Força em Psicologia: a Psicanálise

consciente inconsciente id ego superego
(Representação da compreensão Freudiana sobre o aparelho psíquico humano: 1ª e 2ª tópica)

Aqui temos o papel do influente Sigmund Freud (1856-1939) e a importância da vida psíquica inconsciente, onde emergem temas como psicossomática, desenvolvimento psicossexual, neurose, histeria, mecanismos de defesa, sonhos, desejos e censuras. A psicanálise nasce na psicologia e dialoga, principalmente, com a psicologia clínica, todavia, hoje ela está para além da questão clínica, aparecendo como uma forma de estudar os aspectos dinâmicos da sociedade, economia, política e pensamento. Dessa forma, hoje temos muitos psicanalistas que não são psicólogos, mas possuem formação básica em filosofia, sociologia, medicina, letras e outras graduações. Falamos também de psicanálises, isso pois se trata de uma das linhas teórico-práticas que mais apresentam diferenças conceituais e intervencionistas de autor para autor, o costuma causar confusões naquilo que diz respeito às compreensões iniciais na temática. Mas, independente das diferenças do psicanalista em questão e como ele vai compreender aspectos do psiquismo, as psicanálises se aproximam quando compreendem um processo de conhecimento/tratamento/cura que, necessariamente e para sua efetividade, precisa passar pelo outro. Isto é, só sei de mim, pelo outro – e sobre essa questão específica, recomendo o seminário A Utopia do Autoconhecimento, veiculado no Café Filosófico, por Ricardo Goldenberg.

As psicanálises também costumam compartilhar a questão da transferência, isso é, padrões específicos relacionados às relações interpessoais passadas que direcionam a forma como a relação presente se manifesta e se estabelece – a transferência diz sobre seu portador e seu manejo pode ressignificar/resolver conflitos reprimidos. A noção da influência dos processos inconscientes também é basilar sobre o discurso do sujeito (discurso aqui, não compreende apenas a fala).

Digamos que alguém — um paciente em análise, por exemplo — nos relata um de seus sonhos. Nós supomos que desse modo ele faz uma das comunicações que se comprometeu a fazer iniciando um tratamento psicanalítico. Uma comunicação com meios inadequados, é certo, pois o sonho não é uma expressão social, um meio de entendimento. Não compreendemos o que ele quer dizer, e ele próprio não sabe o que é. Então temos que tomar rapidamente uma decisão: ou o sonho, como nos asseguram os médicos que não são psicanalistas, é um indício de que a pessoa dormiu mal, de que nem todas as partes do seu cérebro descansaram igualmente, de que alguns pontos quiseram continuar trabalhando, sob a influência de estímulos desconhecidos, e só puderam fazê-lo de modo bastante incompleto. Se assim for, será correto não nos ocuparmos mais do produto — psiquicamente sem valor — da perturbação noturna; pois o que tal pesquisa traria de útil para nossos propósitos? Ou então — percebemos que desde o início já decidimos de outra forma. Fizemos o pressuposto, adotamos o postulado — bem arbitrariamente, deve-se admitir — de que também esse sonho incompreensível teria de ser um ato psíquico inteiramente válido, de sentido e valor plenos, que podemos usar como qualquer outra comunicação na análise.

(Freud, 2010 pp. 95-96)

O clínico Freud foi influenciado, principalmente, por J.-M. Charcot (1825-1893), com quem aprendeu sobre histeria e hipnose, e J. Breuer (1942-1925) com quem estudou o método catártico (a cura pela fala). Sua obra é grande, estruturada e desenvolve o nascimento da psicanálise por meio de contato com outros saberes (biologia, física e literatura) e por meio dos processos de análise clínica e da autoanálise do próprio Freud.

Durante muito tempo, o aspecto mais conhecido e discutido da obra de Freud era o da teoria da libido, que ele elaborou inspirado nos modelos da eletrodinâmica ou da hidrodinâmica vigentes na ciência da época. Assim, o conceito de libido, que Freud concebeu como sendo a manifestação psicológica do instinto sexual, recebeu sua origem na tentativa de explicar fenômenos, tais como os da histeria, que Freud explicava como sendo resultantes do fato de que a energia sexual era impedida de expandir-se através de sua saída natural e fluía, então, para outros órgãos, ficando restringida ou contida em certos pontos e manifestando-se através de sintomas vários. Freud chegara à conclusão de que as neuroses, como a histeria, a neurose obsessiva, a neurastenia e a neurose de angústia (fobia), teriam sua causa imediata no aspecto “econômico” da energia psíquica, ou seja, num represamento quantitativo da libido sexual.

(Zimerman, 2007, p.23)

Autores da Psicanálise

Para além do próprio Freud, podemos citar a influência de nomes como J. Lacan (1901-1981), que propôs um retorno sistemático à obra de Freud e a relacionou com os saberes da antropologia, linguística e estruturalismo, além de ter desenvolvido conceitos como Real, Simbólico e Imaginário; M. Klein (1882-1960), expoente da chamada “escola inglesa de psicanálise” foi uma das primeiras psicanalistas a atender crianças e sua contribuição se dá, principalmente, na compreensão dos componentes e fenômenos associados à vida psíquica primitiva; D. Winnicott (1896-1971) que abordou o papel do ambiente-cuidador para com o desenvolvimento emocional do sujeito e trouxe, entre outros, os conceitos de criatividade primária e tendência antissocial.

3ª Grande Força em Psicologia: a Psicologia Humanista-Existencial

Como uma reação ao behaviorismo e à psicanálise, a partir da segunda metade dos anos 1950 (e ganhado maior desenvolvimento e destaque durante as duas décadas posteriores), surge a 3ª Força. Contrária a uma visão determinista do homem (seja pela questão dos condicionamentos comportamentais ou pelo determinismo do inconsciente), ela valoriza a experiência consciente e trabalha com tópicos como: livre arbítrio; autorrealização; criatividade; esperança; potencial; sentido; contato; decisão; congruência; responsabilidade; entre outros…

(Abraham Maslow)

Seu fundador é considerado A. Maslow (1908-1970), famoso por desenvolver a “pirâmide hierárquica das necessidades básicas” e quem primeiro cunhou o termo “psicologia positiva“, em uma contraposição à chamada “psicologia negativa” – tradicional e focada na doença, no transtorno, no sofrimento e em seu tratamento/cura. Dessa forma, a Psicologia Humanista incorporou a visão de homem e mundo referente aos movimentos intelectuais do humanismo, do existencialismo e da fenomenologia. Dentro dela, vamos encontrar abordagens distintas como a Gestalt-Terapia, a Abordagem Centrada na Pessoa, ou a Logoterapia, por exemplo, onde cada uma tem suas particularidades clínicas e acabam por se aproximar mais do humanismo ou do existencialismo, a depender da linha téorico-prática, mas todas fazem parte da 3ª força que, segundo Schultz & Schultz (2008), integra os seguintes pontos essenciais:

  1. uma ênfase na experiência consciente;
  2. uma crença na integralidade da natureza e da conduta do ser humano;
  3. a concentração no livre-arbítrio, na espontaneidade e no poder de criação do indivíduo;
  4. o estudo de tudo o que tenha relevância para a condição humana.

Dentre as abordagens clínicas dessa corrente psicológica, aquela que mais me identifico e acabei por estudar é a Gestalt-Terapia (não confundir com Psicologia da Gestalt). Essa abordagem é sempre uma terapia do contato e seu manejo é pautado no aqui-agora, sendo que a relação terapeuta-paciente funciona do ponto de vista dialógico, onde o terapeuta confronta e frustra o paciente que tenta se esquivar ou fugir do seu contato e experiência com o presente. A fenomenologia pauta o setting clínico e, desta forma, a interpretação não é adequada, mas sim a descrição. A farsa, as atuações e as incongruências não se sustentam na Gestalt-Terapia, uma vez que são valorizadas e validadas as experiências mais espontâneas e verdadeiras de alguém.

Gestalt-terapia é uma das forças rebeldes, humanistas e existenciais da psicologia, que procura resistir à avalanche de forças autodestrutivas, autoderrotistas, existentes entre alguns membros de nossa sociedade. Ela é “existencial” num sentido amplo. […] Nosso objetivo como terapeutas é ampliar o potencial humano através do processo de integração. Nós fazemos isto apoiando os interesses, desejos e necessidades genuínas do indivíduo.

(Perls, 1977, p.19)

A Gestalt-Terapia deve ser experimentada para melhor compreensão – ela não se basta enquanto teoria. Caso tenha curiosidade em saber como é uma sessão com abordagem gestáltica, recomendamos que participe de uma 😉 E recomendamos também que assista um, das várias sessões gravadas, com F. Perls – pai da GT. (após esse vídeo, colocamos também um atendimento de Carl Rogers, com a mesma mulher, para finalidades didáticas e comparativas).

Autores da Psicologia Humanista-Existencial

Como já foi dito antes, há abordagens mais humanistas e outras mais existenciais. C. Roger (1902-1987) pai da Abordagem Centrada na Pessoa e dos Grupos de Encontro, estudou sobre o crescimento pessoal, as relações interpessoais e os processos experienciais; F. Perls (1893-1970) ex-psicanalista, pai da Gestalt-Terapia, contribuiu naquilo que diz respeito à visão holística sobre o indivíduo, sobre o papel do terapeuta na conscientização das incongruências, bem como sobre as dificuldades da pessoa em experienciar e desfrutar do presente. V. Frankl (1905-1997), pai da Logoterapia, tem uma abordagem mais existencialista que se relaciona com a temática do sentido da vida – que começou a ser desenvolvida quando esse foi prisioneiro em um campo de concentração nazista.

Referências

Freud, S. (2010). O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). São Paulo: Companhia das Letras.

Lombard-Platet, V. L. V.; Watanabe, O. M. & Cassetari, L. (2008). Psicologia experimental: Manual teórico e prático de análise do comportamento. São Paulo: Edicon.

Schultz, D. P. & Schultz, S. E. (2008). História da psicologia moderna. São Paulo: Cengage Learning.

Skinner, B. F. (1974/2006). Sobre o behaviorismo. São Paulo: Cultrix

Stevens, J. O. (Perls, F. et al.) (1977). Isto é Gestalt. São Paulo. Summus.

Wundt, W. (1912/1973). An introduction to psychology. Translation R. Pintner. London: George Allen & Company, Ltd.

Zimerman, D. E. (2007). Fundamentos psicanalíticos: teoria, técnica e clínica: uma abordagem didática. Porto Alegre: Artmed.

Por Caio Ferreira