Hoje falaremos sobre questões relacionadas à psicoterapia psicanalítica infantil e à utilização da caixa lúdica em contexto clínico.

Psicoterapia infantil

Primeiramente, e buscando responder uma dúvida que se mostrou comum, principalmente para os estudantes de psicologia, é importante dizer que existem diversas abordagens dentro da psicologia clínica e essas possuem teorias e técnicas distintas para compreensão e intervenção sobre o comportamento/psiquismo infantil, o que implica, por exemplo, e para as finalidades do seguinte texto, na utilização ou não de brinquedos/técnica do brincar e/ou caixa lúdica, variando de psicoterapeuta para psicoterapeuta e correspondendo diretamente às suas respectivas linhas e abordagens teórico-práticas. Dentro mesmo da psicanálise (onde há um volume relevante de publicações acerca da utilização de brinquedos no setting analítico) existem profundas divergências sobre a prática. Sendo assim, para quem busca compreender melhor as possibilidades de atuação em psicoterapia infantil que não empregam os tais recursos lúdicos, recomendamos o texto A Clínica da Infância à Partir de Lacan, que foi escrito pelo Psicólogo e Psicanalista Igor Banin.

Anna Freud & Melanie Klein

No começo, a psicanálise não atendia crianças. Hermine Von Hug-Hellmuth, Anna Freud (filha de Sigmund Freud) e Melanie Klein foram as primeiras psicanalistas a atenderem crianças. É verdade que Freud analisou o Pequeno Hans (sendo que os primeiros relatos apontam que esse tinha 3 anos), mas as observações foram feitas pelo pai da criança e Freud encontrou uma única vez com Hans (Reghelin, 2008).

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(Anna e Sigmund Freud)

Anna e Klein trilharam caminhos distintos e propuseram atuações clínicas muitos diferentes. Para Anna, “o analista deve ser educador, porque o superego do paciente ainda depende dos objetos exteriores que o originaram e não está maduro.” (Paula, 2017,p.16). Podemos dizer que sua orientação clínica foi essencialmente pedagógica e que voltou-se mais para o Ego consciente do que para a esfera do inconsciente (Zimerman, 2004), além de valorizar o processos como sonhos, fantasias diurnas, desenhos e limitando a utilização de jogos (Trapiá et al., 2012).

“Anna Freud entendia o brincar como atividade expressiva e não simbólica (pois o simbólico estava ligado ao reprimido) e Melanie Klein via o brincar como alocução e destinado ao analista, pressupondo diferentes níveis de simbolização conforme idade, nível de funcionamento mental, quantidade e qualidade das angústias da criança”

(Reghelin, 2008, pp. 170-171)

Melanie Klein Brincadeira Psicoterapia Infantil Psicanálise

(Melanie Klein e criança)

Klein foi responsável por introduzir uma modificação na técnica básica da psicanálise e substituiu a palavra pelo brincar. Dessa forma, propôs que a brincadeira seria uma via de acesso aos conteúdos inconscientes da criança, equivalendo o meio à linguagem verbal do adulto. “Diferente de Anna Freud, Klein baseia-se na utilização do jogo e continua as investigações de Freud, a fim de construir um arcabouço teórico, a partir da observação de bebês e dos atendimentos com crianças.” (Paula, 2017, p.16). Sua teoria e prática explorou os fenômenos dinâmicos do brincar na cena analítica, trouxe compreensões sobre a técnica do brincar e possibilitou a compreensão da vida mental primitiva (abrindo novos horizontes dentro do campo da psicanálise).”Em 1932, ela notou que a criança expressava suas fantasias, desejos e experiências simbolicamente no brinquedo e acentuou a importância da caixa de brinquedos, que incluía pequenas figuras animais e humanas, pequenos veículos, recipientes, lápis, cola, massa de modelar, fita adesiva, cordão, tesoura… Objetos pequenos e inespecíficos.” (Reghelin, 2008, p. 169).

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(Brinquedos utilizados por M. Klein em psicoterapia com crianças)

Não há regras rígidas sobre o que se deve ter dentro de uma caixa de brinquedos, mas é sensato admitir que o analista deve selecionar, além de objetos que não ofereçam risco à saúde do analisando, relacionando com os objetivos da sessão, do tempo disponível e da idade da criança, selecionar objetos que permitam emergir a expressividade dos conflitos emocionais e a potencialidade dos processos criativos. Dentro dessa seleção, a escolha dos objetos feita pela criança, bem como a forma de utilização, deve ser observada como um ato psíquico intencional e comunicacional que revela muito, a nível clínico, sobre seu portador. Trocando em miúdos, estamos falando da possibilidade de observação dos vínculos, situações edípicas, fantasias, desejos, resistências, sentimentos e até questões como os aspectos maturacionais, motores e cognitivos, por exemplo.

“O trabalho tradicionalmente realizado por Melanie Klein com crianças era conduzido através das observações e interações durante o brincar, que permitiam que a criança criasse, tanto através da construção quanto pela destruição. Água, cola, papéis, tintas, tesouras, alguns bonecos e outros componentes provocavam as mais diversas reações nas crianças, permitindo-lhes criar, repetir, gerar angústia e expressar essas questões a partir da maneira como utilizavam esses itens.”
(Leite, 2016, p. 146)

Caixa de Brinquedos / Caixa Lúdica

Quem realmente introduziu o caixa de brinquedos no setting foi Arminda Aberastury. Ela via esse recurso como representação do mundo interno da criança e contingente de suas representações inconscientes e relações objetais (Reghlin, 2008, p. 169). Há psicoterapeutas, por exemplo, que utilizam uma caixa lúdica diferente para cada criança e outros que trabalham com uma caixa em comum para todas elas.

caixa lúdica psicologia psicanáliseNão há regra ou checklist sobre os itens que devem compor a caixa, todavia, além das preocupações clínicas já citadas, é importante uma espécie de antecipação à certos desenrolares possíveis de brincadeiras, isto é, por exemplo, caso escolha colocar pincel e tinta em sua caixa e deixá-los à disposição da criança, provavelmente também será necessário papel e/ou toalha, água, bem como um ambiente que comporte respingos e manchas de tinta. Esse é um adendo que faço, principalmente aos iniciantes. É natural que com a experiência prática, esse tipo de situação seja ultrapassada.

A maioria das caixas lúdicas são feitas de papel, madeira ou plástico e, de uma forma geral, os principais itens encontrados em seus interiores são: papeis sulfite (brancos e coloridos), papel kraft, lápis, lápis de cor, aquarela, apontador, giz de cera, massinha, retalhos, perflex, cola (bastão e/ou líquida), fita adesiva, barbante, jogos (como damas, dominó, jogo do mico ou pega varetas) e brinquedos (como fazendinha, família terapêutica, carrinhos, casinhas, conjunto de cozinha, telefone). Vale citar a preocupação que alguns tem em colocar ou não a borracha e a tesoura dentro das caixas, isto é, a não borracha faz lidar com a frustração de um desenho falho e a não tesoura obriga a utilização de outros meios para separar os objetos, por exemplo. “Klein sugere que os materiais sejam pequenos, permitindo que a criança os manipule, ou seja, tenha controle sobre os mesmos, mas não tão pequenos que possam colocar sua vida em risco.” (Trapiá et al., 2012, p. 239)

A caixa lúdica contempla brinquedos, jogos e materiais lúdicos. Alguns aspectos a serem observados durante a interação da criança para com os itens dizem respeito, por exemplo, a:

  • exploração ou não do material;
  • classificação e experimentação dos materiais;
  • organização e separação dos itens;
  • fixação em algum item ou jogo;
  • resistências;
  • estruturação da brincadeira com início, meio e fim;
  • interrupção de atividades;
  • escolha da brincadeira;
  • temática da brincadeira;
  • regras da brincadeira;
  • papel na brincadeira/jogo dramático;
  • histórias, situações e conflitos emergentes;
  • ações de juntar/colar X ações de separar/cortar;
  • utilização do corpo e do espaço;
  • entre outros…

“A psicoterapia se efetua na sobreposição de duas áreas do brincar, a do paciente e a do terapeuta. A psicoterapia trata de duas pessoas que brincam juntas. Em conseqüência, onde o brincar não é possível, o trabalho efetuado pelo terapeuta é dirigido então no sentido de trazer o paciente de um estado em que não é capaz de brincar para um estado em que o é.”

(Winnicott, 1975, p. 65)

Espero que o texto tenha auxiliado na sua compreensão sobre alguns fatos e implicações acerca da psicoterapia voltada ao público infantil, bem como na diferença do emprego de brinquedos e na utilização da caixa lúdica em um setting. Também espero que você continue brincando…emocionalmente…sempre e convide outros a brincar consigo. Até breve.

Referências consultadas

Aberastury, A. (1982). Psicanálise da criança: teoria e técnica. Porto Alegre: Artes Médicas.

Leite, R. F. (2016). Caixa lúdica e novas tecnologias. Estudos de Psicanálise, Belo Horizonte-MG, n. 45, pp. 145–148, julho/2016.

Paula, L. de (2017). Psicanálise infantil: uma intersecção entre a teoria e a prática. Secretaria de Estado da Saúde. São Paulo.

Reghelin, M. M. (2008). O uso da caixa de brinquedos na clínica psicanalítica de crianças. Contemporânea – Psicanálise e Transdisciplinaridade, Porto Alegre, n.05, Jan/Fev/Mar 2008, pp. 167-179.

Trapiá, A.; Tagliapietra, C.; Usui, E.; Hammoud, M. & Coelho, T. L. (2012). O psicoterapeuta e a escolha do material no processo de ludodiagnóstico. Estudos Interdisciplinares em Psicologia, Londrina, v. 3, n. 2, p. 233-240, dez. 2012.

Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago.

Zimerman, D. E. (2004). Manual de técnica psicanalítica: uma revisão. Porto Alegre: Artmed.

Por Caio Ferreira


4 comentários

Roseli Ribeiro da Silva · 29 de outubro de 2021 às 08:15

Gostei muito das orientações a respeito da Caixa lüdica.

Vitória · 2 de novembro de 2022 às 16:19

Texto ótimo, elucidatio, muito bem escrito!

Milene Dias · 9 de fevereiro de 2023 às 11:19

Obrigada pelo artigo, foi esclarecedor!

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