Musicoterapia: o que é e como funciona

A musicoterapia é uma forma de terapia que utiliza a música e os elementos sonoros como ferramentas para intervir na saúde mental, emocional e física das pessoas. Embora seja uma forma relativamente nova de terapia, a música tem sido usada para curar e acalmar desde tempos antigos.

O uso terapêutico da música pode ser encontrado desde a antiga Grécia. Neste período as doenças estavam envoltas às manifestações da natureza sem explicações científicas e possuíam um caráter psicossomático. Desta forma a música através de sua estrutura dos sons parecia uma fonte promissora para o restabelecimento da harmonia humana.

(Costa, 1989, apud Romão, 2015)

Um Breve Histórico Contemporâneo

Soldados ouvindo música durante a 2ª Guerra Mundial. (Reprodução / NARA [National Archives and Records Administration]).

Acredita-se que a musicoterapia tenha começado a ser praticada formalmente no século XX. Durante a Primeira Guerra Mundial, músicos voluntários tocavam para soldados feridos em hospitais militares. Mais tarde, na Segunda Guerra Mundial, a música foi usada como forma de mudar o estado mental dos soldados e também ajudar os veteranos a lidar com o estresse pós-traumático e outras neuroses relacionadas ao conflito. (Romão, 2015).

“Aproveitando as tecnologias modernas e o potencial da música para entreter, por um lado, e fornecer elevação moral e educação, por outro, os Serviços Especiais do Exército iniciaram os “V-Discs” (o V significava “vitória”) para aumentar o moral da tropa em 1943. V-discs – tipicamente discos de gramofone de 12 polegadas e 78 rpm – podiam conter mais de seis minutos de música por lado e apresentavam seleções populares, folclóricas e clássicas, geralmente gravadas especialmente para soldados. Embalados em caixas à prova d’água completas com agulhas de reposição, mais de 3 milhões de V-discs foram enviados para as tropas americanas. Toca-discos de manivela deram vida ao som gravado.”

(Tradução livre de trecho do texto “War, Vinyl and Print: Music for the Troops during World War II“, de Macklem, 2015)

Na década de 1940, a musicoterapia começou a ser estudada como uma forma de tratamento para pessoas com transtornos mentais e emocionais. Em 1950, o primeiro programa de treinamento formal em musicoterapia foi criado nos Estados Unidos.

No Brasil encontramos o marco do ano de 1968 como o de fundação de duas associações: a Associação Brasileira de Musicoterapia e a Associação Sul Brasileira de Musicoterapia. A partir dos anos 1970 a musicoterapia começou a ganhar espaço em cursos de graduação e centros de formação (Romão, 2015), como o primeiro curso de especialização em musicoterapia que foi oferecido pela Faculdade de Artes do Paraná em 1970 e o primeiro curso de graduação, pelo Conservatório Brasileiro de Música, em 1972 (Puchivailo & Holanda, 2014).

Nos anos 1980 a musicoterapia se desenvolveu na América do Sul, principalmente com os trabalhos e contribuições do argentino Rolando Benezon, que vinha da escola psicanalítica e desenvolveu o conceito de Identidade Sonora (ISO) que diz respeito a um som ou um conjunto de sons e de movimentos internos que caracterizam ou individualizam cada ser humano (Puchivailo & Holanda, 2014), e que também é dividido em ISO gestáltico, ISO cultural, ISO universal, ISO complementário e ISO grupal (Benezon, 1988).

“Esse conjunto de movimento-som condensa os arquétipos sonoros herdados onto e filogeneticamente. Evolutivamente se lhe agregam as vivências sonoro-vibratórias e de movimento durante a vida intra-ulterina, no período gestacional. Mais tarde se enriquece com as experiências vividas durante o parto, nascimento e durante todo o tempo de vida. […] Também pertencem ao ISO universal os sons de inspiração e expiração, o sussurro da voz da mãe, o atrito das paredes uterinas, o fluxo sanguíneo, a água e muitos outros que surgem da natureza e do ser humano na sua evolução”

(Benezon, 1988, p. 34-35)

Para conhecer o histórico desde a antiguidade até meados dos anos 2000, recomendo que leia o artigo “A história da musicoterapia na saúde mental: dos usos terapêuticos da música à musicoterapia“, de Puchivailo & Holanda (2014).

O primeiro artigo publicado na Revista Brasileira de Musicoterapia a respeito da Musicoterapia na Saúde Mental foi “Musicoterapia nas Oficinas Terapêuticas: trilhando e recriando horizontes”, de Claudia Lelis; Lúcia M. Romera, em 1997. As autoras discorrem sobre um projeto interdisciplinar realizado junto à Clínica Psicológica da Universidade Federal de Uberlândia. As oficinas de musicoterapia funcionavam uma vez por semana com os usuários do serviço, e também eram realizadas atividades sonoro-musicais com os estagiários. Segundo as autoras, a oficina era um lugar de reflexão e questionamento a respeito das relações humanas.

(Puchivailo & Holanda, 2014).

Conceitos, Definições e Práticas

Tudo bem, Caio, já entendi que a música compreende potenciais terapêuticos desde a antiguidade, mas afinal, do que se trata a musicoterapia? O que a diferencia de ouvir música ou então das outras terapias?

Na prática, as sessões de musicoterapia trabalham desde a escuta de uma música, até a reprodução, criação e improviso. Dessa forma, não é necessário que o paciente tenha conhecimento sobre a teoria musical ou sobre composição, mas, ainda assim, muitas vezes ele é convidado a tocar ou improvisar algo sonoro e isso tende a envolver instrumentos percussivos ou instrumentos não convencionais, uma vez que esses tendem a ser mais intuitivos. Isso é, se você der um violão (instrumento melódico/harmônico) para alguém que nunca tocou um, ela dificilmente vai conseguir utilizar aquele instrumento para externalizar algo, mas se você entregar tambores, sinos ou até lixas (instrumentos percussivos), essa pessoa terá mais aptidão em produzir um som.

Dito isso, é importante frisar que musicoterapia não é arte. A pessoa não precisa tocar bem um instrumento ou então cantar de forma afinada. O importante são os sons que emergem na sessão e como eles são interpretados dentro do complexo terapeuta-som-paciente.

De acordo com Bruscia (2000), a musicoterapia é, por natureza, transdisciplinar e então envolve elementos tanto do estudo da música quanto do estudo das terapias e abordagens terapêuticas.

MÚSICATERAPIA
PsicoacústicaPsicoterapia
Educação musicalTeoria clínica
EntretenimentoArtesterapias
Sociologia da músicaEducação especial
Quadro resumido com base em Bruscia (2000). Demais elementos e campos de estudo são elencados na publicação original.

Esse mesmo autor definiu a musicoterapia como “um processo sistemático de intervenção em que o terapeuta ajuda o cliente a promover a saúde utilizando experiências musicais e as relações que se desenvolvem através delas como forças dinâmicas de mudança” (Bruscia, 2000). Lendo Ruud (1990), também encontramos uma possível definição: “a mesma consiste numa profissão de tratamento onde o terapeuta usa a música como instrumento ou meio de expressão a fim de iniciar alguma mudança ou processo de crescimento direcionados ao bem-estar pessoal, adaptação social, crescimento adicional ou outros itens“.

Técnicas e Intervenções em Musicoterapia

Bruscia (2000) separou os 4 tipos de experiências musicais com potenciais terapêuticos: improvisação, execução (ou re-criação), composição e audição.

De acordo com um documento da UBAM – União Brasileira das Associações de Musicoterapia (2019), são destacadas e referenciadas 23 técnicas te intervenção em musicoterapia, o que inclui:

  • MATADOC _ Ferramenta de Avaliação para Distúrbios da Consciência (MAGEE et al, 2014, 2015, 2016; O´KELLY & MAGEE, 2013)
  • IMTAP Perfil de Avaliação Individual em Musicoterapia (BAXTER et al, 2007; DA SILVA, 2012)
  • IMCAP-ND __ Perfil de Avaliação Individual Músico-Centrada dos Transtornos de Neurodesenvolvimento (CARPENTE, 2016)
  • Escala ERI _ Avaliação das Relações Intramusicais (FERRARI, 2013)
  • Escala Nordoff-Robbins de Comunicabilidade Musical (ANDRÉ, 2017)
  • CIM – Classificação da Interação Musical (PAVLICEVIC, 1995)
  • 64 técnicas de Improvisação Clínica Musicoterapêutica (BRUSCIA, 1987)
  • 21 técnicas da Musicoterapia Neurológica (THAUT & HOEMBERG, 2015)
  • 38 técnicas da Abordagem Plurimodal de Musicoterapia (SCHAPIRA, 2007)
  • BMGIM _ Método Bonny de Imagens Guiadas e Música (BONNY e SAVARY, 1973; BONNY, 2002; BARCELLOS, 1999; GROCKE e MOE, 2015)

Para consultar as referências dessas ferramentas e as demais técnicas, ver o texto Justificativa Para Projetos de Musicoterapia, da UBAM.

Por Fim

Por meio da música, os pacientes podem se expressar, explorar emoções, relaxar e desenvolver habilidades sociais e cognitivas. Além disso, a música tem a capacidade de ativar áreas do cérebro relacionadas à memória, à linguagem e às emoções, o que pode ser especialmente benéfico para pacientes com lesões cerebrais e demências. Dessa forma, diferentemente do tradicional consultório de psicologia onde costumamos receber paciente em conflito com suas neuroses, na musicoterapia também encontramos muitos perfis psicóticos, autistas e pessoas buscando reabilitação ou enfrentando problemas do neurodesenvolvimento.

Referências

Benezon, R. (1988). Teoria da musicoterapia: contribuição ao conhecimento do contexto não-verbal. São Paulo: Summus.

Bruscia, K. E. (2000). Definindo musicoterapia. Rio de Janeiro: Enelivros.

Puchivailo, M. C. & Holanda, A. (2014). A história da musicoterapia na saúde mental: dos usos terapêuticos da música à musicoterapia. Brazilian Journal of Music Therapy, (16). Recuperado de https://musicoterapia.revistademusicoterapia.mus.br/index.php/rbmt/article/view/230

Macklem, Mary. (2015). War, Vinyl and Print: Music for the Troops during World War II. National Endowment for the Humanities. (Acessado em 14/03/2023). Disponível aqui: https://www.neh.gov/divisions/research/featured-project/war-vinyl-and-print-music-the-troops-during-world-war-ii

Romão, S. L. S. (2015). Os diferentes caminhos da música – um olhar sobre a musicoterapia. Colloquium Humanarum, vol. 12, n. Especial, 2015, p. 1713-1720. ISSN: 1809-8207. DOI: 10.5747/ch.2015.v12.nesp.000801

Ruud, E.. (1990). Caminhos da musicoterapia. São Paulo: Summus.

UBAM (2019). Justificativa para projetos de musicoterapia. (Acessado em 14/03/2023). Disponível aqui: https://ubammusicoterapia.com.br/wp-content/uploads/2021/05/Justificativa-para-Projetos-de-Musicoterapia.pdf

por Caio Ferreira

O Experimento de Duchenne: um dos primeiros estudos com fotografia em psicologia

Duchenne e paciente; Duchenne experimento estudo
Duchenne e seu paciente mais ilustre no estudo de 1862.

No ano de 1862 um neurologista francês publicou um trabalho de pesquisa chamado “Os Mecanismos da Expressão Facial Humana” (Mécanisme de la Physionomie Humaine), onde buscou estudar expressões faciais associadas à emoções e sentimentos. Esse estudo foi conduzido por G.-B. Duchenne (1806 – 1875) que estimulou eletricamente, de forma isolada e combinada, os músculos faciais de sujeitos, relatando então as alterações de aparência por meio de extensas considerações e registrando-as por meio de fotografias. (Duchenne, 1862).

Embora essa obra só tenha sido publicada em 1862, Duchenne se interessava e estudava a estimulação elétrica desde 1835, debruçando-se sobre patologias como atrofias e distrofias musculares, e propondo técnicas de manejo/intervenção frente a elas. Chegou a publicar, inclusive, um trabalho em 1855 chamado “Sobre eletrificação localizada e sua aplicação na terapia” (De l’électrisation localisée et de son application à la thèrapeutique). Em sua carreira, encontramos mais de 90 trabalhos entre artigos e livros, sendo que a obra que lidamos nesse texto é considerada o primeiro estudo sobre a fisiologia da emoção (Maranhão-Filho & Vincent, 2019).

Em 1835, Duchenne questionou por que uma corrente elétrica produzia uma contração muscular localizada. Sua curiosidade logo se tornou uma obsessão. Ele percebeu que poderia estimular os músculos usando dois eletrodos metálicos (reóforos) aplicados na pele úmida. Ele construiu pacientemente seu próprio instrumento de indução de corrente farádica para estimulação de músculos e nervos. [..] As contribuições de Duchenne incluíram trabalhos sobre o uso da fotografia da histologia microscópica, ataxia locomotora tabética (confundida com a ataxia de Friedreich na época), lesões de células do corno anterior, que causavam poliomielite aguda, e paralisia glosso-labial-laríngea (paralisia bulbar). Ele foi o primeiro clínico a realizar biópsias musculares com a invenção que chamou de l’emporte-pièce (cortador de biscoito).

(Maranhão-Filho, & Vincent, 2019, tradução livre).

O Experimento de Duchenne

Buscando em autores como Platão, Aristóteles, Cícero, Descartes, Hobbes etc, Duchenne elaborou uma lista com 73 termos afetivos, o que inclui estado como: admiração, raiva, tédio, coragem, curiosidade, desejo, nojo, embriaguez, ódio, alegria, risada, amor, esperança, tristeza, medo, surpresa, vergonha, desprezo, entusiasmo, inveja, ciúme, orgulho, dor…

Seu estudo classificou 33 expressões faciais derivadas da estimulação eletrofisiológica, discriminando o músculo ou o conjunto de músculos que produzem a respectiva alteração de aparência. As expressões catalogadas por Duchenne foram: atenção, reflexão, meditação, concentração mental, dor, agressão ou ameaça, choro com lágrimas quentes, choro moderado, alegria, riso, riso falso, ironia ou riso irônico, tristeza ou desânimo, desdém ou nojo, dúvida, desprezo ou escárnio, surpresa, espanto, estupefação, admiração ou surpresa agradável, susto, terror, terror com dor ou tortura, raiva, levado por raiva feroz, reflexão triste, reflexão agradável, alegria feroz, lascívia, delírio sensual, êxtase, grande dor com lágrimas e aflição, dor com desânimo ou desespero

Para qualquer desforra frente as traduções livres, seguem os termos empregados na edição inglesa (uma vez que esse livro não conta com tradução para língua portuguesa): attention, reflection, meditation, intentness of mind, pain, aggression or menace, weeping with hot tears, moderate weeping, joy, laughter, false laughter, irony or ironic laughter, sadness or despondency, disdain or disgust, doubt, contempt or scorn, surprise, astonishment, stupefaction, admiration or agreeable surprise, fright, terror, terror with pain or torture, anger, carried away by ferocious anger, sad reflection, agreeable reflection, ferocious joy, lasciviousness, sensual delirium, ecstasy, great pain with tears and affliction, pain with despondency or despair).

Os resultados gerais do estudo catalogaram diversas alterações de aparência decorrentes dos movimentos musculares, contemplando 84 pranchas individuais e 9 pranchas sinóticas que também abordam outros estados afetivos e expressivos para além do 33 catalogados. Vale dizer também o pesquisador anestesiava seus pacientes antes das sessões e que seu sujeito mais ilustre ficou conhecido como homem velho desdentado (old toothless man) e possuía uma condição patológica peculiar que não lhe permitia sentir qualquer dor na região da face, caracterizando-se assim como a cobaia perfeita para esse estudo.

Homem Velho Desdentado e o Sorriso Duchenne

Foi inclusive com esse sujeito que Duchenne estudou uma das mais importantes expressões humanas, o sorriso, onde encontrou considerações relevantes sobre o que até hoje é conhecido como sorriso verdadeiro (Duchenne smile) e sorriso falso (non-Duchenne smile). O pesquisador descobriu que os sorrisos falsos/simulados envolvem a contração do músculo zigomático maior, que puxa o canto dos lábios para trás e para cima, enquanto os sorrisos genuínos/espontâneos envolvem esse músculo e também a contração do orbicular do olho, elevando as bochechas e apertando as pálpebras (ação que ficou conhecida como o marcador de Duchenne). Mais sobre esse tópico você pode encontrar clicando no texto “Sorriso Falso e Sorriso Verdadeiro (Duchenne Smile)” que escrevi para o blog do CICEM.

O espírito é, portanto, a fonte de expressão. Ativa os músculos que retratam nossas emoções no rosto com padrões característicos. Consequentemente, as leis que governam as expressões do rosto humano podem ser descobertas pelo estudo da ação muscular.

(Duchenne, 1862, tradução livre)

Por curiosidade, como costumamos lembrar e ensinar que S. Freud estudou com M. Charcot, por sua vez, Charcot foi aluno de Duchenne 😉

Você também pode ver outras pranchas do estudo e saber mais sobre com o vídeo a seguir:

Referências e Recomendações

Darwin, C. (2009). A expressão das emoções no homem e nos animais. (Leon de Souza Lobo Garcia, Trad.). São Paulo: Companhia das Letras. (Obra original publicada em 1872).

Duchenne, G. B. A. (1862). Mécanisme de la physionomie humaine [The mechanism of human facial expression]. Cambridge University Press: 1990.

Ferreira, C (2018). Sorriso Falso e Sorriso Verdadeiro (Duchenne Smile). CICEM.

Joaquim, R. M. (2021). Neuropsicologia das emoções: caracterização, expressão facial & aspectos psicopatológicos. Belo Horizonte: Editora Ampla, 2021.

Maranhão-Filho, P. & Vincent, M. (2019). Guillaume-Benjamin Duchenne: a miserable life dedicated to science. Arquivos de Neuro-Psiquiatria [online]. 2019, v. 77, n. 6 [Accessed 25 October 2022] , pp. 442-444. Available from: https://doi.org/10.1590/0004-282X20190044. Epub 15 00 2019. ISSN 1678-4227.

Curso EAD: Fundamentos da Expressão Facial da Emoção. CICEM.

Por Caio Ferreira

Bons estudos!!

Psicologia na Antiguidade: as primeiras compreensões da pessoa

Os filósofos gregos – notadamente Sócrates, Platão e Aristóteles – afirmavam ser o distúrbio mental resultante de processos de pensamento desordenados. Prescreviam o método persuasivo de cura por meio da força das palavras.

(Schultz & Schultz, 2014, p. 285)

Nos cursos de psicologia, costumo dizer que podemos falar da história da psicologia desde a antiguidade e dos pensadores da Grécia antiga, mas que, geralmente, nos atentamos à chamada psicologia moderna, que é aquela posterior à fundação do Laboratório de Psicologia Experimental da Universidade de Leipzig, em 1879, por Wilhelm Wundt – o marco de nascimento da psicologia científica.

Esse marco histórico significou o desligamento das idéias psicológicas de idéias abstratas e espiritualistas, que defendiam a existência de uma alma nos homens, a qual seria a sede da vida psíquica. A partir daí, a história da Psicologia é de fortalecimento de seu vínculo com os princípios e métodos científicos. A idéia de um homem autônomo, capaz de se responsabilizar pelo seu próprio desenvolvimento e pela sua vida, também vai se fortalecendo a partir desse momento.

(Bock et al., 2001 p. 26)

Como os autores antigos não costumam ter muito espaço nos cursos livres, chegou a hora de falar deles por aqui 😉

Os termos e as especulações

Embora a palavra “psicologia” tenha sua origem grega e signifique “estudo da alma” (ψυχή, psyché, “alma” – λογία, logia, “tratado”, “estudo”), esse termo só foi aparecer na obra Psichiologia de ratione animae humanae, datada do séc. XVI, feita pelo poeta e juiz renascentista Marko Marulić. Mas antes disso, para os efeitos desse texto, os gregos abordavam as personalidades, comportamentos, emoções e motivações humanas com os termos “psyché” e “anima“, por exemplo, enquanto compreensões de alma ou mente.

A origem da psicologia não é diferente de muitas ciências, pois ela nasce da filosofia e das indagações realizadas pelos filósofos antigos. Nessa época, era comum a compreensão associada com aspectos teológicos, o que costumava envolver uma visão dualista, onde a alma era diferente do corpo e poderia levar uma vida autônoma, separada e/ou imortal.

Os pré-socráticos

Esse termo reúne um grupo de pensadores que aconteceram antes do referencial filosófico Sócrates e perdurou entre os séculos VI a.C. e V a.C.. Aqui começaram as primeiras especulações cosmológicas e percepções da natureza separando o pensamento mítico do filosófico. Nesse grupo encontramos nomes como Pitágoras, Heráclito, Demócrito, Parmênides, Xenófanes, Tales e Protágoras, por exemplo, sendo que suas ideias nos chegaram, principalmente, por doxografia e fragmentos, uma vez que se perdeu grande parte das obras dos chamados primeiros filósofos.

Ao invés de explicarem a ordem cósmica por meio das compreensões divinas, eles buscaram explicações com base na percepção, na razão e na argumentação de ideias.

Os diferentes filósofos escolheram diferentes physis, isto é, cada filósofo encontrou motivos e razões para dizer qual era o princípio eterno e imutável que está na origem da Natureza e de suas transformações. Assim, Tales dizia que o princípio era a água ou o úmido; Anaximandro considerava que era o ilimitado sem qualidades definidas; Anaxímenes, que era o ar ou o frio; Heráclito afirmou que era o fogo; Leucipo e Demócrito disseram que eram os átomos. E assim por diante.

(Chauí, 2000, pp. 41-42)

Essa physis (elemento primordial, eterno e imortal) daria origem a todos os seres que, por sua vez, são mortais e em constante transformação – mudando de qualidade e de quantidade (Chauí, 2000). A qualidade compreende mudanças como o novo ficando velho, o quente esfriando, o dia se tornando noite, o úmido se tornando seco, o saudável adoecendo e vice-versa em alguns casos. Já a quantidade envolve o pequeno ficando grande, o longe ficando perto, o rio aumentando de volume ou diminuindo na seca, por exemplo. Em resumo, assim como no zen budismo, os filósofos antigos entendiam que o mundo está em constante movimento e transformação.

Esse movimento e transformação foi chamado de devir e explorado por Heráclito de Éfeso, que afirmava que “nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio”, uma vez que, na segunda vez, as águas não são as mesmas e nós também não somos – tudo flui. O quadro abaixo foi pintado por René Magritte em 1935 e chama “Ponte de Heráclito”. Nele vemos a ilusão de uma ponte interrompida pela névoa, mas cujo reflexo nos revela a ponte inteira. Essa pintura carregas as dúvidas da própria percepção humana e o movimento contínuo de transformação que o rio, a ponte, o reflexo e as névoas passam.

Ponte de Heráclito, por Magritte (1935)

Outro nome relevante entre os pré-socráticos é Pitágoras de Samos, que é geralmente lembrado por nós pelas suas relações com a matemática e pelo seu famoso teorema sobre as relações de comprimentos que encontramos em um triângulo retângulo: “o quadrado da medida da hipotenusa é igual à soma dos quadrados das medidas dos catetos” ou c2 = b2 +a2. Para além dessas observações matemáticas, racionais e em busca de padrões da natureza, Pitágoras é um dos grandes precursores no estudo da música e das relações entre as notas musicais que nos causam conforto e desconforto (os intervalos musicais).

Ele e seus seguidores, os pitagóricos, desenvolveram experimentos com um monocórdio (instrumento musical com uma corda esticada e que possibilita dividi-la em segmentos menores). A depender do comprimento da corda, ao vibrar, essa irá produzir um som e quanto mais você divide essa corda, mais aguda ela ira soar. Foi com base nessas frações que Pitágoras descobriu os intervalos musicais consonantes e dissonantes (utilizados até hoje na nossa música). Ele descobriu que frações específicas nos eram percebidas como confortáveis (consonantes) ou como desconfortáveis/estranhas (dissonantes) – ele inventou as escalas musicais (série harmônica).

Em resumo, a nossa percepção sonora de algo agradável ou desagradável depende desses intervalos rígidos encontrados nos estudos de Pitágoras. Por exemplo, se somarmos uma corda solta, juntamente com seu intervalo de terça maior (5/4) e quinta justa (3/2), vamos obter um acorde maior – que aparece em diversas músicas populares, folclóricas e dançantes. Já, se somarmos o som de uma corda solta com o seu intervalo de sétima maior (15/8), iremos experienciar algum tipo de tensão ou desconforto sonoro. Essa percepção influenciou as composições musicais ao longo dos séculos, fazendo, por exemplo, com que as igrejas católicas compusessem missas e cantos utilizando intervalos consonantes e proibindo o uso de intervalos dissonantes (notas proibidas). Enquanto os grupos pop e a indústria musical tem preferência pelos intervalos consonantes, os dissonantes tendem a ser explorados pelo jazz e pela bossa nova, por exemplo, além de aparecem e serem sustentados nas trilhas sonoras de suspense, terror, mistério e ficção – tendendo a nos causar, por sua vez, algum estado de alerta ou inquietação.

Para Pitágoras a música tinha várias finalidades inclusive as pedagógicas onde se podia controlar a raiva, a agressividade entre outras, assim ele usava a música para criar um ambiente de tranquilidade para passar aos seus discípulos os seus ensinamentos.

(Almeida, 2018, p. 13)
Braço de vioção Di Giorgio n38

Se você lembrar do braço de um violão ou guitarra, vai perceber que ele é todo dividido. Essas divisões acontecem nas frações estudadas por Pitágoras, sendo que a escolha das notas executadas por quem toca vai resultar nos intervalos citados acima (sugerindo percepções de tensão ou relaxamento). Para exemplificar melhor essa relação entre música, escala musica e matemática pitagórica, recomendo que você veja o trecho abaixo, encontrado no curta-metragem Donald no País da Matemágica (1959).

Período Clássico: Sócrates, Platão e Aristóteles

Esse período aconteceu nos séculos V a.C. e IV a.C., onde encontramos tanto os sofistas quanto os três grandes nomes do pensamento grego: Sócrates, Platão e Aristóteles. Esse tempo é também compreendido como um período antropológico, mais orientado para o conhecimento do homem e de sua capacidade para conhecer a verdade (Chauí, 2000), o que ampliou os questionamentos para as áreas da moral e da política (Aranha & Martins, 2016).

no século V a.C., Platão, Aristóteles e outros sábios gregos se viam às voltas com muitos dos mesmos problemas que hoje ocupam os psicólogos: a memória, a aprendizagem, a motivação, a percepção, a atividade onírica e o comportamento anormal. As mesmas espécies de interrogações feitas atualmente sobre a natureza humana também o eram séculos atrás, o que demonstra uma continuidade vital entre o passado e o presente em termos de seu objeto de estudo.

(Schultz & Schultz, 2014, p.17)

Sócrates de Atenas preocupou-se com aquilo que separa o homem dos animais e postulou a razão como a principal característica humana, o que permitiria ao homem sobrepor-se aos instintos (Bock et al, 2001). Ao afirmar “só sei que nada sei“, Sócrates reconhece a própria ignorância e inicia a busca pelo saber. Seu método envolvia o diálogo, a confrontação de ideias e a introspecção, que mais tarde, seria retomada por Wundt (citado no início do texto). Em poucas palavras, introspecção pode ser definida como”autoanálise da mente para inspecionar e relatar pensamentos ou sentimentos pessoais” Schultz & Schultz (2014).

Esse filósofo considerava-se um parteiro de ideias (maiêutica) e buscava o conceito de algo, para além da mera opinião sobre algo. Diz-se que Sócrates conversava com todos, jovens e velhos, nobres e escravos, sendo que, ao perguntar e confrontar as crenças das pessoas, essas ficavam curiosas, irritadas, surpresas ou envergonhadas, uma vez que nunca tinham pensado sobre os valores e ideias que carregavam e expressavam. As indagações de Sócrates levavam a reflexões tanto pessoais quanto sociais e sobre a vida política da polis.

Não deixou nada escrito, sendo que suas ideias nos chegaram, principalmente, por 2 discípulos: Xenofonte e Platão. Foi acusado de não acreditar nos deuses da cidade e corromper as pessoas, o que acarretou em sua prisão e pena de morte.

Que retrato Platão nos deixa de seu mestre, Sócrates?

O de um homem que andava pelas ruas e praças de Atenas, pelo mercado e pela assembléia indagando a cada um: “Você sabe o que é isso que você está dizendo?”, “Você sabe o que é isso em que você acredita?” , “Você acha que está conhecendo realmente aquilo em que acredita, aquilo em que está pensando, aquilo que está dizendo?” , “Você diz” , falava Sócrates, “que a coragem é importante, mas: o que é a coragem? Você acredita que a justiça é importante, mas: o que é a justiça? Você diz que ama as coisas e as pessoas belas, mas o que é a beleza? Você crê que seus amigos são a melhor coisa que você tem, mas: o que é a amizade?”

(Chauí, 2000, p. 44)

Seu discípulo Platão (Arístocles de Atenas) é considerado o primeiro filósofo sistemático do pensamento ocidental. Além de fundar uma escola (Academia de Atenas), seus diálogos abrangeram diversas áreas da filosofia que nascia, referenciavam Sócrates e empregavam mitos ou alegorias que visavam tornar mais concretas suas ideias abstratas (Aranha & Martins, 2016).

Para este filósofo, existem 2 mundos, o sensível (fenômenos) e o inteligível (ideias). O mundo sensível nos chega pelos órgãos sensoriais e seria como uma sombra do verdadeiro mundo, nele encontramos movimento e ilusões – é o mundo das nossas impressões e opiniões. Por outro lado, o mundo inteligível carregaria a verdade das coisas, o que é invisível e somente alcançada pela dialética ascendente, quando nos afastamos dos dados sensoriais, das opiniões e dos preceitos (Aranha & Martins, 2016; Chauí, 2000).

Escola de Atenas, pintura de Rafael, séc. XVI. Nela vemos Sócrates e Platão, ao centro, posados por Leonardo da Vinci e Michelangelo.

É também em Platão que encontramos um “lugar corporal” para a razão, sendo essa, localizada na cabeça – o local da alma. Como um dualista, este pensador separava mente e corpo e dizia que a medula seria responsável por realizar essa conexão. Ele também compreendia o corpo como uma matéria mortal e a alma como algo separado e imortal, que ficava livre após deixar o corpo (Bock et al, 2001).

A psicologia platônica também é considerada uma psicologia erotizada, uma vez que Eros (Ἔρως = amor) tem aparições recorrentes e relaciona-se diretamente com a Psyché (ψυχη = alma) enquanto Dýnamis (δυναμις = poder/força), ou seja, algo que não se vê diretamente mas percebe-se pelos seus efeitos. Em Platão, vemos Eros, não como um Deus, mas como algo que impulsiona a Psiché, que a coloca num processo de buscar coisas boas e belas, dirigindo-se para objetos que podem ser desejados – em outras palavras, tendo um papel de impulso, de potência e de colocar em movimento na direção de um objeto específico. Essa discussão é bem explorada na obra “O Banquete“, onde Platão dialoga sobre o amor, resgatando as ideias míticas e as aparições poéticas, enquanto caminha rumo às compreensões de Fedro, Sócrates, Aristófanes, Diotima e de outros presentes (Silva, 2021).

Diotima: – Corre, entretanto, uma versão segundo a qual erotizados vivem os que procuram sua própria metade. Meu amigo, penso, ao contrário, que Eros não busca a metade nem o todo, se estes não se encontrarem em bom estado. Há quem esteja disposto a perder até mãos e pés, se esses membros lhe parecerem corrompidos. Não é ao próprio que aspiram os homens; exigem que o próprio seja bom, o mal lhes é alheio. De sorte que os homens só se erotizam pelo bem. O que te parece?

(Platão, 2009, p. 99)

Seguindo essa toada histórica, vamos encontrar Aristóteles de Estagira, discípulo de Platão, consolidador do período sistemático, fundador do Liceu, da escola peripatética e compilador de grande parte do conhecimento produzido até então pelo pensamento ocidental, foi também tutor de Alexandre, o Grande.

Sua obra Da Anima, é considerada por alguns como o primeiro tratado de psicologia e já aborda as diferenças entre razão, sensação e percepção. Diferentemente de Platão, Aristóteles compreendia a psiché como indissociável do corpo e como o princípio ativo da vida. Para ele, tudo o que cresce, se alimenta e se reproduz possui psiché, sendo que ele diferencia a alma vegetativa – relacionada aos vegetais e funções de alimentação e reprodução – da alma sensitiva – relacionada aos animais e funções de percepção e movimento – e também da alma racional – exclusiva do homem e à função de pensar. Para esse pensador, o homem teria essas 3 almas, sendo todas mortais e pertencentes ao corpo (Bock et al, 2001).

Foi ele quem estabeleceu as primeiras linhas da lógica, além de questionar os métodos anteriores de apuração da informação (como indução, dedução e analogia). Por meio do silogismo ele apresentou maneiras de encontrar falácias e argumentos não válidos. Sua filosofia também compreende 2 tipos de conhecimentos: o sensível e o racional, que são dependentes um do outro. O conhecimento sensível envolve as abstrações, sensações e percepções de coisas particulares, enquanto o conhecimento racional engloba os conceitos universais. Aqui ele se distancia de Platão, concluindo que não existe intelecto que não tenha passado, antes, pelos sentidos (Aranha & Martins, 2016).

Uma outra compreensão pertinente que aparece em Aristóteles é a noção de ato e potência, sendo o ato aquilo que se apresenta no aqui-e-agora, sua forma e manifestação no tempo presente; já a potência é a capacidade de se tornar outra coisa, é aquilo que pode vir a ser. Não como uma mudança definitiva, mas como um constante processo e movimento, onde um feto pode se transformar em recém-nascido, depois em bebê, criança, adolescente, adulto e idoso. Escrevendo agora, lembro de um exemplo usado pelo professor de filosofia da graduação, Sérgio Barbosa, quando nos contou sobre o ato de uma semente e sua potência em ser árvore e dar frutos.

Recapitulando os conceitos aristotélicos: todo ser é uma substância constituída de matéria e forma; a matéria é potência, o que tende a ser; a forma é o ato. O movimento é, portanto, a forma atualizando a matéria; é a passagem da potência ao ato, do possível ao real.

(Aranha & Martins, 2016, p. 113)

Para os efeitos desse texto, vou encerrar, hoje, por aqui. Não que o conhecimento tenha sido esgotado; muito pelo contrário, há bastante ainda a falar sobre Sócrates e sua dialética, Platão e suas ideias abstratas, Aristóteles e sua ética, ciências e metafísica, para além de outros pensadores do período pré-socrático e também os do período helenístico, como Hipócrates, pai da medicina, precursor da anamnese e quem traçou a teoria dos humores ou dos temperamentos, o que compreende personalidades coléricas, fleumáticas, sanguíneas e melancólicas – assuntos esses para outra publicação;)

Bons estudos!!

Se eu lhe perguntar o que é você, o que você vai me responder?

por Caio Ferreira

Referências

Almeida, L. X. (2018). Matemática e música: uma abordagem através do monocórdio de Pitágoras. (Trabalho de conclusão de curso). Castanhal: UFPA.

Aranha, M.L.A. & Martins, M. H. P. (2016). Filosofando: uma introdução à filosofia. São Paulo: Moderna.

Bock, A. M. B.; Furtado, O. & Teixeira, M. L. T. (2001). Psicologias: uma introdução ao estudo de psicologia. São Paulo: Saraiva.

Chauí, M. (2000). Convite à filosofia. São Paulo: Ed. Ática.

Silva, F. G. S. (2021). Eros e Psiché nos discursos do Banquete de Platão. (Tese de doutorado). Recife: UFPE.

Schultz, D. P. & Schultz, S. E. (2014). História da Psicologia Moderna. São Paulo: Cengage Learning.

Psicologias da Emoção: teorias e implicações

Psicologia das emoções
(O filme Divertida Mente [Inside Out], 2015, Disney-Pixar, ilustra bem várias questões relacionadas ao desenvolvimento e ao uso das emoções)
Todos os dias e em quase todos os momentos estamos em contato com as nossas emoções e a psicologia científica estuda emoções desde o seu surgimento. Embora muitas estruturas, fenômenos e leis tenham sido investigadas, ainda não há um consenso sobre o que são as emoções e como elas acontecem. Diversos modelos de experiência emocional já foram propostos ao longo da história e, no texto de hoje, vou abordar algumas das principais teorias e descobertas que tocam a vida emocional humana. Quando falamos de emoção, falamos daquilo que é pulsional e mobiliza o comportamento em virtude de uma função (social/comunicação; proteção/sobrevivência); falamos daquilo que te faz sorrir e pular de alegria, de forma involuntária, frente à uma conquista, por exemplo; e falamos daquilo que acontece com você no caso de se deparar com um leão enorme rugindo na sua frente: você paralisa por um instante, sua pálpebra superior se eleva e sua pupila dilata, você encara a fera enquanto seu cérebro cuida de desviar o sangue do seu corpo em direção às suas pernas e, antes que você pense muito, já se percebe correndo/fugindo.

Falar de emoção é também se emocionar, olhar para si, para seus sinais corporais, expressões faciais, pensamentos associados, sentimentos, alterações respondentes (cardíacas, sudorese, enrubescer…). É falar sobre as valências emocionais, isso é, suas intensidades e sensações associadas (positivas ou negativas). É viver emoções primarias (básicas/universais) e secundárias (sociais/culturais). É tentar diferencias emoções, sentimos e afetos. É apreciar a leveza e a paz que um alívio pode trazer e perceber também que o nojo te protege de ingerir algo tóxico e prejudicial. Venha pela trilha emocional e lembre-se sempre que “as emoções determinam a qualidade das nossas vidas” (P. Ekman).

Charles Darwin: o pai do comportamento emocional

O comportamento emocional é essa força viva, universal e involuntária que faz o indivíduo responder de maneira previsível quando o assunto é a experiência emocional genuína/espontânea (quando uma pessoa, de fato, sente uma emoção). O trecho abaixo apresenta alguns exemplos do comportamento emocional.

O sorriso verdadeiro durante a vivência da alegria;
O paralisar, correr ou lutar frente à situação de perigo;
A elevação do pitch vocal e “tremor na voz” durante a sensação de ansiedade;
A dilatação e a contração pupilar referente não a alteração da luminosidade do ambiente, mas à alteração emocional particular de alguém;
O aumento no uso de gestos manipuladores durante a emoção negativa;
O ruborizar durante a vergonha ou raiva, por exemplo.

(Ferreira, 2018, p. 11)

Psicologia das emoções expressão facial duchenne
(Duchenne realizou experimentos de eletroestimulação em músculos da face humana, durante uma investigação sobre a fisiologia das emoções que influenciou Darwin.)

Se hoje podemos falar de comportamento emocional universal, vale lembrar que foi em 1872 que Charles Darwin publicou “A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais”, onde propôs, de forma pioneira, que as emoções e suas expressões não seriam produto cultural ou decorrente de processos de aprendizagem, mas seriam universais e partilhadas, de maneira comum, por todos os membros de uma mesma espécie. Trocando em miúdos, segundo Darwin, todos os cachorros do mundo expressam raiva e medo da mesma forma e todos os humanos do mundo expressam alegria e tristeza da mesma forma, por exemplo, e isso acontece de forma instintiva – como resultado de uma interação dialética evolutiva entre a espécie, sua sobrevivência e seu meio. Ao longo do livro, Darwin relaciona diversos comportamentos (encolher-se, eriçar de pelos, empalidecer, elevar a pálpebra, abrir a boca, abaixar as sobrancelhas, franzir o nariz etc…) com base em suas funções práticas para lidar com uma situação

Como a surpresa é provocada por algo inesperado ou desconhecido, quando nos assustamos, naturalmente desejamos descobrir a causa tão logo quanto possível. E consequentemente, abrimos bem os olhos, de forma que o campo de visão seja ampliado, e os olhos possam mover-se facilmente em qualquer direção.

(Darwin, 1972/2009 p. 241)

Darwin chegou a essas suas conclusões por meio de suas próprias observações e arcabouços teóricos sobre a evolução e seleção natural, contou também com o aporte de relatos enviados por colegas viajantes que contavam como eram as expressões emocionais das pessoas em diferentes pontos da Terra e também se baseou nos trabalhos do Dr. Duchenne, que em 1862 publicou uma pioneira investigação fotográfica sobre a expressão facial das emoções em seres humanos.

Teoria James-Lange

Uma das primeiras teorias da emoção, dentro da chamada psicologia moderna, foi proposta por William James (1842-1910) e Carl George Lange (1834-1900), que chegaram às mesmas conclusões após trabalharem de forma independente. A premissa básica é que a sensação emocional vem depois de uma excitação fisiológica e, dessa forma, as emoções são vistas como a experiência de conjuntos de alterações corporais que acontecem após um estímulo emocional.

Para exemplificar, se pensarmos em uma situação que envolve um urso raivoso na nossa frente, a tendência é pensar que sentimos medo e então corremos/fugimos, mas a teoria James-Lange aponta uma outra ordem para os comportamentos. Ela vai nos dizer que primeiro há as alterações fisiológicas (elevação dos batimentos cardíacos, dilatação da pupila e comportamento de correr) para depois, com o conjunto disso, ser experienciada a emoção de medo. Trocando em miúdos, diz que não sentimos medo e por isso fugimos, mas fugimos e por isso, sentimos medo. Nessa visão, o princípio vale para todas as emoções e seus comportamentos associados, isso é, ficamos tristes porque choramos e não o contrário. Caso você se pergunte, por exemplo, por que se sente alegre? A teoria de James-Lange diria que, como você está respirando rápido e seu coração está mais acelerado, seu cérebro concluiu que você está alegre.

Estímulo emocional → Padrão de resposta fisiológica → Experiência afetiva

Talvez essa lhe pareça uma teoria absurda (é até considerada contra intuitiva), mas já existem estudos de informação retroativa (facial feedback hypotesys) que apresentam dados sobre como certas mímicas faciais e comportamentos acabam por disparar neurotransmissores específicos relacionados com estados emocionais (assunto esse, para outro post).

Teoria Cannon-Bard

Uma teoria posterior criticou a visão de James-Lange, ao afirmar que as mesmas manifestações fisiológicas poderiam estar presentes em emoções muito distintas, isso é, o medo é acompanhado sim por aumento da frequência cardíaca e sudorese, mas essas mesmas alterações fisiológicas acompanham outras emoções como a raiva, e até estados patológicos, como a febre. Dessa forma, Walter Cannon (1871-1945) e Philip Bard (1898-1977) propuseram que o sistema nervoso central seria o causador, tanto das manifestações fisiológicas, quanto da experiência emocional, e isso ocorreria ao mesmo tempo, como processos paralelos (e não sequenciais, em comparação com a teoria anterior). A teoria Cannon-Bard é conhecida também como uma teoria “talâmica” das emoções, em referência à estrutura cerebral “tálamo”, pois foi Bard quem descobriu que todas as informações sensoriais, motoras e fisiológicas tem que passar pelo diencéfalo (particularmente o tálamo), antes de serem submetidas a qualquer processamento adicional.

Dessa forma, frente ao mesmo urso raivoso, pela teoria Cannon-Bard, as mudanças fisiológicas (elevação dos batimentos cardíacos, dilatação da pupila e comportamento de correr) ocorrem ao mesmo tempo em que a sensação de medo enviada.

James-Lange Cannon-Bard Psicologia das emoções
(Quadro comparativo entre as teorias James-Lage e Cannon-Bard)

O circuito de Papez

sistema límbico papez psicologia emoções
(imagem ilustra os componentes originais do circuito de Papez [interligados por setas grossas], e aqueles acrescentados por outros pesquisadores [interligados por setas finas]. Lent, 2010, p. 720).
A teoria Cannon-Bard foi a primeira tentativa concreta de compreensão das bases neurais emocionais e acabou atraindo a atenção de vários neurocientistas. James Papez (1883-1958) foi um deles e foi responsável por mudar a noção de um “centro emocional cerebral” para um “sistema” ou “circuito cerebral das emoções“, isso é, revendo a literatura da época e apontando um conjunto de regiões associadas à experiência emocional.

Papez percebeu que essas regiões eram conectadas reciprocamente de modo “circular”, o que revelava uma rede neural que ficou conhecida como circuito de Papez. Mais tarde aproveitou-se um termo antigo criado pelo neurologista Paul Broca, e o circuito de Papez passou a ser conhecido como sistema límbico.

(Lent, 2010, p.720)

Paul Ekman: a teoria neuro-cultural

Uma vez que começamos com as propostas universais de Darwin, quero fechar o texto com descobertas emocionais que dialogam com as hipóteses dele. Com fins de recapitulação, Darwin disse, em 1862, que as expressões emocionais são inatas e universais. Com pesquisas transculturais realizadas, principalmente nos anos 1960 e 1970, foi possível validar a afirmação de Darwin para 6 emoções básicas com expressões faciais universais (alegria, tristeza, raiva, nojo, medo e surpresa), isso é, independente de onde nasceu e como foi criada uma pessoa, ao entrar em contato com uma dessas emoções, ela vai movimentar músculos na face que são organizados, conhecidos e previsíveis.

Um dos psicólogos responsáveis por mapear as expressões faciais universais foi Paul Ekman (1934- ) que, em um de seus estudos, comparou a expressão emocional entre japoneses e estadunidenses e percebeu que eles apresentavam as mesmas expressões faciais quando estavam sozinhos assistindo aos vídeos do estudo, mas que os japoneses, mais do que os estadunidenses, mascaravam emoções negativas (medo e nojo) com a exibição de um sorriso. Essa investigação apontou um fenômeno que hoje é conhecido como “regras de exibição” ou “costumes” (display rules) e, sobre elas, Ekman diz:

são socialmente aprendidas, muitas vezes culturalmente diferentes, a respeito do controle da expressão, de quem pode demonstrar que emoção para quem e de quando pode fazer isso. Eis por que, na maioria das competições esportivas públicas, o perdedor não demonstra a tristeza e o desapontamento que sente. As regras de exibição estão incorporadas na advertência dos pais: “pare de parecer contente”. Essas regras podem ditar a diminuição, o exagero, a dissimulação ou o fingimento da expressão do que sentimos.

(Ekman, 2003, p. 22)

Ekman neuro cultural emoções psicologia
(Paul Ekman e nativos Fore na Papua Nova-Guiné)

Em outro estudo posterior, Ekman foi para a Papua Nova-Guiné analisar a expressão emocional de uma tribo socialmente isolada – os Fore. Lá, com máquina fotográfica e fotografias de faces emocionais, ele chegou a conclusão sobre a universalidade de 6 emoções básicas inatas. Vale dizer que outros pesquisadores, como Carroll Izard, estavam, ao mesmo tempo, realizando estudos paralelos e chegaram a conclusões que também apontavam para a existência de expressões faciais universais. Ekman desenvolveu então a teoria neuro-cultural das emoções, que aponta características universais e inatas relacionadas às estruturas e ao funcionamento cerebral, mas também aponta a influência da cultura naquilo que diz respeito à permissividade ou não de uma exibição emocional. Foi só o começo…nos anos 70, uma ferramenta científica de mensuração da ação facial foi criada, o Facial Action Coding System (FACS), que permite analisar e medir qualquer expressão facial realizada por um ser humano. Nos anos 80, novas evidências foram encontradas e a emoção desprezo foi incorporada à lista das emoções básicas universais. Estudos comparativos entre atletas cegos e atletas com visão foram feitos e as expressões forma sempre as mesmas. Por meio das pesquisas de Ekman, hoje falamos também das famílias das emoções, isso é, o saber que a alegria compreende prazeres sensoriais, alívio, diversão, contemplação…. que o medo compreende ansiedade, receio, terror… que a raiva compreende aborrecimento, irritação, fúria… Por meio do legado de Paul Ekman, podemos também nos entreter assistindo o Lie to Me e nos deleitar com o, sempre emocional, Divertida Mente.

Referências

Darwin, C. (2009). A expressão das emoções no homem e nos animais. (Leon de Souza Lobo Garcia, Trad.). São Paulo: Companhia das Letras. (Obra original publicada em 1872).

Ekman, P. (2003). A linguagem das emoções: revolucionando sua comunicação e seus relacionamentos reconhecendo todas as expressões das pessoas ao redor. São Paulo: Lua de Papel.

Ferreira, C. (2018). Estudos sobre a mensuração científica da face humana: vol. 1 – o guia do emocionauta. São Paulo: CICEM Ed.

Lent, R. (2010) Cem bilhões de neurônios?: conceitos fundamentais de neurociência. São Paulo: Ed. Atheneu.

Por Caio Ferreira

Para saber mais (CURSO)

Quer saber mais sobre as emoções humanas? Sua estrutura, função e expressão? Inscreva-se já para o próximo curso presencial Introdução à Psicologia das Emoções. Mais informações aqui: http://cicem.com.br/introducao-psicologia-das-emocoes-sp/

Explicando Seligman: Felicidade Autêntica e Florescimento (Psicologia Positiva)

Quando a psicologia decide investigar a felicidade e o bem-estar (subjetivo) humanos, ela passa, inevitavelmente, sob os terrenos abertos pela Psicologia Positiva e pelo seu fundador, o psicólogo Martin Seligman, PhD. Isso, pois foi a corrente da Psicologia Positiva que conseguiu, de forma pioneira, investigar, compreender e intervir com sucesso sobre as chamadas forças e virtudes do homem e ampliar o foco da psicologia científica tradicional que, até então, partilhava do modelo médico e estava voltada, quase que totalmente, a curar/tratar doenças. É então, com a Psicologia Positiva que não apenas temos hoje estudos sobre os fenômenos e impactos das emoções positivas na vida das pessoas, ou do “estado de flow”, ou do “mindfulness”, ou da resiliência, por exemplo, entre outras contribuições, mas também podemos falar de uma psicologia preventiva e fortalecedora tão sólida quanto a tradicional psicologia reparadora de danos.

Vale dizer que a Psicologia Positiva (PP) está saindo da adolescência, isto é, ela foi fundada em 1998 e, portanto, é um corpus de estudo científico relativamente novo. Para saber mais sobre seus antecedentes, nascimento, propósito e principais contribuições, recomendamos o texto A Psicologia Positiva e o Estudo da Felicidade.

Martin Seligman

Psicólogo Martin SeligmanMartin Elias Pete Seligman (1942 – ) é um Psicólogo estadunidense considerado o pai da da PP. Ele é um dos principais divulgadores internacionais dessa corrente e foi responsável pela sua criação, em 1998, enquanto Presidente da American Psychological Association (APA). Ficou conhecido como “a voz”, ao lado de Mihaly Csikszentmihalyi, conhecido respectivamente como “o cérebro” e também pai da teoria flow. Seligman preparou o terreno para o nascimento da PP, contactou patrocínios, escreveu artigos, livros, desenvolveu ferramentas de mensuração e possibilitou outras tantas contribuições para esse campo. Entre seu legado, vale destacar a obra Character Strengths and Virtues: A handbook and classification (CSV) (sem tradução para a língua portuguesa) que, resumidamente, é o equivalente ao DSM para a PP, isto é, ao invés de catalogar, de forma rigorosa, doenças e tratamentos, cataloga forças, virtudes e as respectivas avaliações e intervenções sob elas.

Felicidade Autêntica

felicidade autêntica martin seligmanUm dos pilares da PP é o estudo das emoções positivas no âmbito pessoal e coletivo (instituições positivas) e, buscando compartilhar sua visão, Seligman estrutura o livro Felicidade Autêntica (Authentic Happiness, 2002) em 3 eixos:

  • Estudo das emoções positivas;
  • Estudo dos traços de personalidade positivos (como forças e virtudes);
  • Estudo das instituições positivas ou aquelas que promovem aspectos positivos no ser humano.

“A crença de que existem maneiras rápidas de alcançar felicidade, alegria, entusiasmo, conforto e encantamento, em vez de conquistar esses sentimentos pelo exercício de forças e virtudes pessoais, cria legiões de pessoas que, em meio a grande riqueza, definham espiritualmente. Emoção positiva desligada do exercício do caráter leva ao vazio, à inverdade, à depressão e, à medida que envelhecemos, à corrosão de toda realização que buscamos até o último dia de vida.”

(Seligman, 2010, p. 16)

Por meio de relatos de pacientes, relatos de pesquisas, questionários, fatos históricos, teorias, estatísticas, porcentagens e muita emoção, Seligman apresenta uma teoria da felicidade. Resumidamente, ele diz que a felicidade é alcançada por meio da emoção positiva, do engajamento e do significado. Falar cientificamente sobre a felicidade não é fácil, mas um avanço foi feito ao correspondê-la em elementos mais bem definidos e mensuráveis.

Esses 3 elementos, por sua vez, fazem referências a 3 tipos de vida:

  • Vida prazerosa ⇒ emoções positivas
  • Vida engajada ⇒ engajamento (flow)
  • Vida significativa ⇒ sentido

Nessa teoria, Seligman não apenas divide a felicidade, mas fala de 3 caminhos que levam à ela. A vida prazerosa é aquela onde temos alta concentração, quantidade, frequência e intensidade de emoções positivas (diversão, orgulho, contemplação, gratidão, serenidade…). Na vida engajada, o sujeito utiliza suas forças pessoais e envolve-se em atividades com ela. Essa felicidade se relaciona diretamente com o estado de flow – um estado em que o indivíduo fica envolvido, concentrado e absorvido, sem sentir fome e/ou perder a noção do tempo, por exemplo, durante uma tarefa (comum em escritores, pintores, músicos, atletas mas alcançável por qualquer pessoal). Na vida significativa, a pessoa valoriza os sentimentos de buscar, servir e pertencer a algo maior ou a algum propósito que envolva suas virtudes.

Florescer

Florescer florescimento martin seligman psicologia positiva9 anos depois da publicação do Felicidade Autêntica, com novas e importantes pesquisas sobre a felicidade, Seligman publica o Florescer (Flourish: a visionary new understanding of happiness and well-being, 2011), onde faz uma mudança teórica significativa, ao deixar de abordar o conceito de felicidade, para abordar o de bem-estar. Com essa mudança, as formas de felicidade anteriormente descritas passam a ser elementos da nova teoria.

O novo modelo é representado didaticamente pelo acrônimo PERMA

  • P – Positive emotion (Emoção positiva)
  • E – Engagement (Engajamento)
  • R – Relationships (Relacionamentos)
  • M – Meaning (Significado)
  • A – Accomplishment (Realização)

Dessa forma, cada elemento contribui, mas não define o bem-estar. A tabela abaixo compara os temas, padrões de mensuração e objetivos correspondentes às duas teorias.

psicologia positiva martin seligman
(Seligman, 2012, p. 19)

Referências e recomendações de leitura:

Achor, S. (2012). O jeito Harvard de ser feliz. São Paulo: Editora Saraiva.

Peterson, C., & Seligman, M. E. P. (2004). Character strengths and virtues: A handbook and classification. New York: Oxford University Press and Washington, DC: American Psychological Association.

Pureza, J. R.; Kuhn, C. H. C.; Castro, E. K. & Lisboa, C. S. M. (2012). Psicologia positiva no Brasil: Uma revisão sistemática da literatura. Revista Brasileira de Terapias Cognitivas. 2012, 8 (2), pp.109-117.

Seligman, M. E. P. (2010). Felicidade autêntica: usando a nova psicologia para a realização permanente. Rio de Janeiro: Objetiva.

Seligman, M. E. P. (2012). Florescer: uma nova compreensão sobre a natureza da felicidade e do bem-estar. Rio de Janeiro: Objetiva.

Para saber mais e já sobre Psicologia Positiva:

Por Caio Ferreira