Você não deve conhecer esta palavra, mas provavelmente deve conhecer (ou temer) o que ela representa: soniloquismo — ou falar enquanto dorme — é uma manifestação normal da atividade cerebral. Por isso, é considerado um distúrbio do sono benigno, ou seja, que não costuma indicar nenhum tipo de doença grave.

Muita gente morre de medo do que pode ser dito durante o sono. Principalmente as crianças, adolescentes e os casais. Uma vez que toda a nossa privacidade está concentrada ali. Já pensou se nem isso pudéssemos esconder de nossos pais ou pares?

Já sabemos através deste e deste artigo que os Sonhos representam uma parte de nossa atividade psíquica que não pôde ser completa ou parcialmente realizada, simbolizada e/ou significada durante nossa vida em vigília. Ou ainda aquela que gerou algum tipo de impacto direto ou indireto em nossos eternos conflitos entre as imposições da realidade e o ímpeto de buscar realização e/ou satisfação de nossa vida.

Inclusive foi possível perceber o porquê de estarmos sonhando mais durante o início da quarentena, imposta pela pandemia, neste texto aqui. Fato que não era difícil de se imaginar acontecendo, uma vez que nossas liberdades de movimento, de satisfação sexual, de lazer e conexões interpessoais foram amplamente cerceadas, interditadas por uma real ameaça à vida – própria e alheia. Não seria tão surpreendente que a gente encontrasse um cantinho só nosso para beber alguns pingos de todas aquelas necessidades necessariamente reprimidas.

Enfim, não é atoa que dá um medinho ser descoberto por tudo isso numa posição totalmente desprevenida. Mas o alívio de muita gente é que raríssimas vezes o que é falado nessas tem algum sentido para quem escuta ou sequer é lembrado por quem sonha. E algumas pessoas, mesmo que acordadas por alguns instantes, se voltarem a dormir sequer terão conhecimento de qualquer interação ali realizada. Mas existiria alguma forma de tornar este diálogo mais consciente?

Seria possível interagir durante um sonho?

Contudo, apesar de muitas pessoas falarem (e temerem o que é dito) durante o sono, é muito comum que haja apenas uma verbalização irracional de um fragmento do sonho. Um processo completamente inconsciente, que só se encontraria sentido a partir de extensa análise metafórica e metonímica dos significados ali presentes. No entanto, os cientistas da equipe do Dr Ken Paller, da Universidade Northwestern (Northwestern University), localizada em Evanston, no estado de Illinois, nos Estados Unidos realizaram um estudo com pessoas consideradas “sonhadores lúcidos – aquelas que durante um sonho alegam saber que aquilo é um sonho de fato, podendo algumas até controlar/escolher o que acontece ali – questionando exatamente isso: É possível conversar e aprender racionalmente durante o Sonho?

Seria possível aprender, interagir, obedecer ou até raciocinar a partir do que é introduzido por quem está “do lado de fora” daquele nosso pequeno e gigante parque de realizações privadas?

O Estudo

Conforme já sabemos, todos nós sonhamos. Podemos até não lembrar de nossos sonhos, mas sonhamos. E não estamos sozinhos nessa: do cachorro ao elefante, os animais também compartilham deste resquício de pensamentos que se transformam em imagens durante o descanso de nosso organismo.

A própria neurociência acredita que os sonhos ajudam no nosso processamento de memórias, inclusive aquelas que não temos mais acesso de prontidão. E como as memórias, os sonhos também não nos são de total acesso. Sabemos apenas a parte que lembramos, que por si só pode não ser mais tão completa. E esta foi uma das barreiras que os cientistas também encontraram no estudo, já que ficaram à mercê de dois fatores: os participantes, ou sonhadores, assim como nós, não podiam fala propriamente e diretamente com ninguém durante o sonho, relatando-o em tempo real; bem como sobraria aos pesquisadores o relato não necessariamente confiável daqueles que despertaram do sonho.

Mas antes de chegarmos diretamente a pesquisa, é preciso conhecermos um pouco mais sobre o sono e suas características, uma vez que a pesquisa aconteceu em um momento específico deste fenômeno que nos permite reorganizar o corpo e a mente.

Os Estágios do Sono

Estágio 1

Adormecimento: é aquele momento de transição entre a vida de vigília e seu final, que dá lugar ao sono. Sua duração cerca os 15 minutos e é introduzida a partir de algum tipo de relacionamento. É preciso reduzir o nível de alerta para que os músculos relaxem e a respiração fique mais leve.

Estágio 2

Sono leve: neste estágio os estímulos externos começam a se tornar cada vez mais irrelevantes para o cérebro. Alguém tocar em você não necessariamente irá despertar uma resposta, bem como os barulhos (leves ou intensos, variando de acordo com a personalidade) passam a ser ignorados. Seus batimentos cardíacos estarão cada vez menos intensos e o corpo terá uma temperatura menor do que no estado de vigília. É como se aqui o corpo se preparasse para o sono profundo.

Estágio 3

Assim como no estágio um, aqui há mais um momento de transição. Mas desta vez, ao invés de partir do estado de vigília para o estado de sono, é uma transição entre o sono leve e o sono profundo, com uma considerável redução da atividade cerebral somada a um relaxamento muscular.

Estágio 4

Sono Profundo: aqui é onde descansamos de fato. Apesar de não haver uma cessão da atividade cerebral, seus níveis mais baixos encontram-se neste momento. Há aqui uma regeneração celular e liberação do hormônio do crescimento, por exemplo. Aqui o corpo se revigora. É onde ocorre a reconstrução de fibras musculares rompidas em um treino de musculação, por exemplo. A sensação de que uma noite de sono foi “mal-dormida” está amplamente ligada à capacidade de adentrar ou permanecer neste estágio.

Sono REM

A equipe de Ken Paller começou do ponto de que os sonhos lúcidos estariam associados a um estágio específico do sono, chamado de sono REM, cuja sigla significa Rapid Eye Movement (movimento rápido dos olhos). Neste estágio, que ocorre logo após a etapa do sono profundo, há uma atividade cerebral quase tão intensa quanto no estágio de vigília. Com movimentos musculares, liberação de hormônios e até raciocínio lógico. Este é o berço da vida onírica tão acalmada por Freud.

Pesquisa, Método e Resultados

Pesquisas já apontam que estímulos externos podem sim, ter influência nos sonhos que temos. Mas a pesquisa em questão, publicada na revista Current Biology, procurou saber se era possível “encontrar” estas pessoas no sonho e obter respostas.

Dr. Paller e seus colegas, também cientistas, da França, Holanda e Alemanha, reuniram 35 voluntários já treinados a terem consciência de seus estados mentais – exatamente para que soubesse distinguir se estariam acordados ou em um sonho. Não seria errado, ou um chiste ruim, dizer que este sim, é o verdadeiro Dream Team.

Eles também foram treinados a realizarem movimentos distintos para a esquerda/direita com os olhos, tanto para indicar se estavam acordados ou em um sonho, como para responder as questões que seriam feitas. Eles também praticaram a identificação de números, transmitidos como flashes de luz, toques no braço ou até através de palavras que lhes seriam ditas. Observe na imagem abaixo, retirada diretamente da pesquisa:

Tradução (da esquerda para a direita):
[estímulos oferecidos ao voluntário]
(Caixa de som): palavras ditas, barulhos de beep (“pi, pi”); luzes piscando; estímulos táteis.

[respostas emitidas pelo voluntário]
(Desenho de um rosto com eletrodos): Movimentos oculares, contrações dos músculos da face

Após o treino e as orientações, os voluntários foram conectados a eletrodos e colocados para dormir. Para estabelecer contato, os pesquisadores tocavam o som e aguardavam a resposta através de um sinal ocular. Bem como, conforme combinado, os participantes também enviavam alguns sinais oculares em momentos específicos. Assim que era confirmado que o contato havia sido estabelecido, os pesquisadores começaram a fazer as perguntas.

Resultados

Agora acordados, os voluntários relataram que as perguntas eram incorporadas aos seus sonhos, como se tivesse agora se tornado parte destes. Um deles relatou escutar uma destas perguntas através do rádio do carro que dirigia, outro disse que os flashes de luz apareciam como se fosse uma luz piscando, numa espécie de farolete. Uma das perguntas numéricas, inclusive aparecia como o número de uma casa na rua em que se passeava pelo sonho.

Tradução:

[PESQUISADOR PERGUNTOU DURANTE O SONHO]: Você fala espanhol?

[VOLUNTÁRIO APÓS O EXPERIMENTO]:
“Eu estava em uma festa com amigos e sua voz estava vindo do lado de fora, como o narrador de um filme. E eu decidi responder que não [através de contrações nos músculos faciais].

Entretanto, para a loucura dos pesquisadores, ocasionalmente alguns participantes traziam à tona problemas de matemática diferentes daqueles que lhe foram proposto. Mas a parte surpreendente é que: antes, eles haviam respondido corretamente através dos movimentos oculares!

Tradução:

[VOLUNTÁRIO APÓS O EXPERIMENTO]:
“Quando as luzes começaram a piscar, eu reconheci isso como um sinal de Código Morse e contei ºººº -º–º —– e relatei a resposta “4” com sinais pelo olhar”

Mas o método ainda pareceu um pouco controverso, uma vez que os participantes disseram que em apenas 26% das sessões foi possível obter um sonho lúcido. E deste grupo, 47% respondeu de forma correta ao menos uma das questões colocadas.

Tradução:
[VOLUNTÁRIO RELATANDO]
“Enquanto eu sentia alguém me cutucando eu estava lutando com duendes do mau (goblins). E então eu lembrei e fiquei surpreso que eu era capaz de fazer tantas tarefas ao mesmo tempo”

Apesar de ser um estudo preliminar, algo foi provado: a comunicação com pessoas que estão sonhando não pode ser considerada 100% improdutiva.

As principais conclusões, afinal, não são tão diferentes daquilo proposto por Freud, em A Interpretação dos Sonhos, (veja aqui e aqui), de que:

  • Os relatos dos sonhos dados por alguém em um estado de vigília são frequentemente fragmentados e distorcidos;
  • É possível que alguém em um sonho receba uma mensagem de fora e está seja incorporada ao sonho.

E a novidade foi que: em alguns casos, quem está sonhando é capaz de responder em tempo real à perguntas feitas por quem está acordado, mesmo que seja appenas perguntas de “sim” ou “não”.

Quem sabe os próximos pesquisadores não tenham noções que nos deixem mais felizes quanto a este assunto no futuro? Aliás, não necessariamente todos ficariam mais felizes, é preciso dizer.

Referencia para a pesquisa na íntegra (em inglês):

Konkoly et al., 2021, Current Biology 31, 1417–1427
April 12, 2021 ª 2021 The Authors. Published by Elsevier Inc.


Bons sonhos!

Por Caio Cesar Rodrigues de Araujo


0 comentário

Deixe um comentário

Avatar placeholder

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *