Contardo Calligaris (1948 – 2021)

Homenagem ao psicanalista que soube escutar o Brasil como ninguém

Contardo Calligaris fez parte da minha formação de forma única. Sua escrita me fez pensar e refletir sobre a condição humana desde o começo da minha trajetória como terapeuta. Seus textos foram fundamentais para a minha pesquisa e entendimento da diversidade humana e das várias formas de “estar no mundo”.

Lembro-me inclusive de um episódio no final da minha graduação, quando, após um ano de estágio clínico supervisionado, nossa professora nos pediu para redigir uma carta a nós mesmos, como terapeutas no início daquele ano. Clara alusão a seu texto “Cartas a um Jovem Terapeuta”(2004). Ela mesmo, tendo sido aluna direta dele 🙂

Com o recente falecimento do psicanalista, pensei em fazer este pequeno texto reunindo um pouco de sua Formação e Ensino, e suas principais obras publicadas.

Formação e Ensino

“O que me interessa não é ser feliz, mas sim ter uma vida interessante”.

Calligaris, Contardo
Contardo Calligaris

Italiano, nascido em Milão, em 1948, seus pais fizeram parte da resistência Anti-fascista durante a Segunda Guerra Mundial. Sua primeira formação foi em Epistemologia Genética, na Suíça, tendo estudado com Jean Piaget (1896-1980). Posteriormente, graduou-se em Letras, o que o permitiu lecionar teoria da literatura.

Depois, já em Paris, sob a orientação de Roland Barthes (1915-1981), trabalhou em seu doutorado em Semiologia. Passou a ser atendido por Serge LeClaire, e se interessou então por Psicanálise, frequentando os seminários e apresentações de pacientes de Jacques Lacan (1901–1981).

Fez um segundo Doutorado em Psicologia Clínica, focando sua tese no tema “A Paixão de Ser Instrumento“, discutindo os efeitos e narrativas da ascensão de autoritarismos e governos totalitários.

O primeiro contato com o Brasil se deu depois da publicação por aqui de Hipótese sobre o Fantasma em 1986. Passou a visitar o país com certa frequência para proferir seminários, palestras e atender pacientes. Foi membro-fundador também da APPOA (Associação Psicanalítica de Porto Alegre).

Foi também Professor de Antropologia na Universidade da Califórnia em Berkeley, e de Estudos culturais na The New School em Nova Iorque, se revezando entre Brasil e EUA até meados de 2004, atendendo pacientes dos mais diversos.

A partir da publicação de “Hello, Brasil” (1981) é convidado a escrever na Folha de São Paulo, onde, desde 1999 escrevia semanalmente, nas “saudosas quintas-feiras”. Lá escrevia sobre tudo, desde os percalços da sexualidade humana à condição política e histórica do país.

É importante notar o caráter cosmopolita da trajetória de Contardo, foi verdadeiramente um homem do mundo.

Principais Obras

Contardo Calligaris

Além de escrever na já citada coluna semanal das quintas-feiras na Folha de S. Paulo, Calligaris publicou diversos títulos psicanalíticos e romances. Listo aqui alguns dos principais textos voltados (ou não) à comunidade Psi.

Hipótese sobre o Fantasma (1983)

Hipótese sobre o Fantasma (1983)

Em Hipótese sobre o Fantasma, sua primeira publicação psicanalítica, Calligaris aborda a questão do atravessamento do fantasma, entendimento de como seria o final de análise na Clínica do Simbólico (Primeira Clínica de Lacan).

Introdução a uma Clínica Diferencial das Psicoses (1989)

Introdução a uma Clínica Diferencial das Psicoses (1989)

Uma série de sete seminários proferidos por Contardo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 1989, foram transcritos e publicados como livro nesta obra. Temas como a estrutura psicótica, desencadeamento e evolução da crise e diferenciação das psicoses são alguns dos temas discutidos pelo psicanalista. Se constitui como referência para o estudo das psicoses à partir do entendimento lacaniano da psicanálise.

Hello, Brasil (1991)

Hello, Brasil. Psicanálise da estranha civilização brasileira (1991)

Hello, Brasil se afigura, para mim, como uma das análises mais precisas do laço social e histórico do Brasil. Nele, Contardo “coloca o Brasil no divã”, pensando os sintomas sociais à partir da perspectiva psicanalítica. Segundo o próprio autor, esse seria um livro de viagem, escrito à partir da perspectiva de um estrangeiro.

Teve uma republicação em 2017 onde foram adicionados alguns ensaios a partir da vivência de Contardo na nossa “estranha civilização”.

Cartas à um jovem terapeuta (2004)

Cartas a um Jovem Terapeuta (2004)

Talvez este seja o texto mais difundido entre estudantes de Psicologia no começo de seus estágios supervisionados. Em Cartas à um jovem Terapeuta, Calligaris passeia por diversos pontos de ansiedade de todos aqueles que se destinam à prática clínica. Fala sobre Vocação Profissional, Amores terapêuticos e O que fazer para ter mais pacientes?

Coisa de Menina? (2019)

Coisa de Menina? Uma conversa sobre Gênero, Sexualidade, Maternidade e Feminismo (2019)

Em parceria com Maria Homem, Calligaris publicou seu último livro com o formato de uma conversa, de diálogo entre os psicanalistas sobre Gênero, Sexualidade, Maternidade e Feminismo. Temas como Lugar de fala, constituição de Gênero e Limites entre gozo e assédio são alguns dos pontos de parada dessa viagem.

Para além dos textos “psicanalíticos”, Contardo escreveu 2 romances centrados em Carlo Antonini, quase um alter-ego de Calligaris. No primeiro, “O conto do amor” (2008), à partir da morte de seu pai, Antonini busca as origens de sua família no norte da Itália e desvenda segredos do passado. No segundo, “A mulher de vermelho e branco” (2011), uma trama que envolve passado e presente entre Nova York, São Paulo e Paris, Antonini se vê dentro de um verdadeiro “thriller psicanalítico”.

As estórias de Carlo Antonini foram adaptadas para as telas na série de televisão Ps!, pela HBO, contando com Emílio de Mello no papel principal. Com 04 temporadas ao total, o seriado explora temas complexos como Abuso, Assédio e Suicídio, sempre com  o foco na diversidade da experiência humana.

Emílio de Mello em Ps!, da HBO)

Publicou também coletâneas com algumas de suas colunas na Folha de São Paulo, reunidas e organizadas por temáticas. Entre elas destaco “Os Reis estão Nus” (2013).

Deixo aqui linkado também sua participação no Roda Viva em 2017, onde ele fala sobre um pouco de tudo, de A à Z, como era seu costume.

Contardo Calligaris no programa de televisão Roda Viva, em 2017)

Um clínico exímio, um dos principais pensadores críticos do país se foi, mas deixou uma obra importante e tão atual como sempre. Escutou o Brasil como poucos.

Obrigado por tanto, Contardo.

(Autógrafo de Contardo na minha edição de Hello, Brasil)

Até a próxima,

Igor Banin

HP Lovecraft e o Real em Psicanálise

Howard Phillips Lovecraft é um dos casos de autores que ganha mais notoriedade após sua morte. Cada vez mais, percebe-se a presença de elementos de sua obra literária em filmes, séries e livros.

Suas contribuições para a literatura de horror e ficção científica são notáveis, adicionando elementos típicos dos gêneros de fantasia. Alguns o comparam a Edgar Allan Poe, ao qual é atribuído a criação do gênero de Romance Policial.

Críticos e fãs costumam nomear o estilo de Lovecraft de Horror Cósmico, ou “Cosmicismo”, por suas histórias envolverem normalmente seres extraterrenos, monstros ou entidades tão antigas que estariam além da Compreensão humana.

Pensando nisso, a ideia aqui é fazer um paralelo entre o estilo de escrita verborrágica, recheada de adjetivos de Lovecraft com a noção de Real em Psicanálise.

Lovecraft, vida e escrita

Nascido em 1890 na cidade de Providence, Rhode Island no seio de uma família aristocrata da Nova Inglaterra, o pequeno Lovecraft foi criado em um ambiente confortável.

Seu pai morreu quando Lovecraft tinha apenas 08 anos de idade, após ficar internado, depois de ter uma crise nervosa em 1893 constantemente em clínicas de repouso. Suspeita-se que o pai tivesse contraído sífilis. Após a morte do pai, Lovecraft foi morar na casa de seu avô.

Seu avô era uma proeminente empresário industrial o que garantiu uma vida confortável para Lovecraft em seu início. Diz-se que a árvore genealógica de Lovecraft pode ser traçada até mais de 400 anos atrás. Sua família foi uma das primeiras a ter chegado aos Estados Unidos.

Após a morte do pai, diz-se que sua mãe desenvolveu um cuidado excessivo com o garoto. Posteriormente, Lovecraft afirma que esse zelo demasiado deixou marcas profundas em sua psiquê e seu relacionamento com o mundo. Lovecraft passava muito tempo em casa, por ter uma saúde frágil. Frequentou pouco a escola, o que o Ele sofria de poiquilotermia, uma raríssima doença que fazia com que sua pele fosse sempre gelada ao toque.

Tendo crescido na vasta biblioteca de seu avô, Lovecraft passou a venerar a cultura clássica e considerava a poesia como literatura de verdade. Para alguém que passava muito tempo em casa, com gosto pela leitura e escrita, não é de se admirar que tenha se tornado um escritor.

Howard Phillips Lovecraft em junho de 1934

Mesmo após a morte do avô, e de sua mãe, com o dinheiro escasso, H.P. não aceitava trabalhar de maneira contínua. Ele se considerava um cavalheiro aristocrata, e ele entendia que trabalhos que não fossem em jornais ou revistas consideradas adequadas, estavam abaixo dele.

Lovecraft faleceu em 15 de Março de 1937, aos 46 anos de idade.

Foi com o esforço de amigos próximos que fundaram a editora Arkham, e começaram a publicar os textos de Lovecraft em formato de livro, que sua obra ficou mais conhecida do público geral. Até então, seus escritos eram conhecidos por uma audiência mais restrita, principalmente de leitores de revistas Pulp, como a Weird Tales.

Weird Tales, 1922

Seu impacto na literatura de horror e ficção científica é profundo, influenciando autores como Neil Gaiman e Stephen King. Para além disso, sua influência em obras cinematográficas de diretores como Stanley Kubrick e John Carpenter é notável, como no filme Enigma de Outro Mundo (1982), de Carpenter.

Lovecraft durante muito tempo teve uma postura racista e xenófoba em seus contos. Especula-se, inclusive, que muitas das descrições dos monstros nas histórias de Lovecraft tenham sido baseados nos preconceitos íntimos do autor. A posição da aristocracia decadente do Nordeste dos Estados Unidos, a reclusão constante no início da vida, bem como as rápidas mudanças sociais que vinham acontecendo à época no continente americano, certamente influenciaram a visão de mundo de H.P.

Outro ponto importante de se notar nas histórias do autor é a pouca ou nenhuma participação de mulheres nos contos. Por toda a obra de Lovecraft, percebe-se um desprezo pela raça humana de maneira geral, sendo considerada sempre inferior ao cosmos.

Curiosamente, ele se casou com Sonia Greene, uma judia que o convenceu a mudar-se para Nova York, lugar onde eles moraram por pouco tempo, antes de sua separação amigável.

Algumas características importantes da escrita de Lovecraft que também são importantes.

  1. O arcaísmo patente no uso de terminologias. O texto parece, em uma primeira olhada, ter sido escrito no século XIX, tamanho o uso de termos fora de uso empregados por Lovecraft.
  2. O uso indiscriminado de adjetivos quando ele busca descrever os monstros/entidades em suas narrativas.

Essa segunda característica é muito criticada nos meios acadêmicos, sendo visto como uma limitação criativa na escrita de Lovecraft.

Um exemplo claro do estilo “Lovecraftiano” se encontra no texto Ele (1926/2017):

“… e as multidões humanas que fervilhavam pelas ruas estreitas eram seres atarracados, forasteiros escuros com caras abrutalhadas e olhos apertados, estranhos traiçoeiros sem sonhos e sem nenhuma relação com o cenário a seu redor, enigmáticos para os descendentes dos antigos habitantes, que amavam as belas alamedas verdes e as aldeias da Nova Inglaterra com suas torres em formato de agulha” (Lovecraft, p. 62).  

A noção de Real na Psicanálise

O Real na psicanálise não se trata da realidade. Talvez, seria melhor dizer que o Real é tudo aquilo que tem que ser extraído da realidade para que ela faça sentido.

O Real se trata daquilo que é inominável, indizível, impensável. No fundo, tudo aquilo que nos confronta com o nosso caráter eternamente faltante. Segundo Lacan (1953/2005): “O real é ou a totalidade ou o instante esvanecido. Na experiência analítica, para o sujeito, é sempre o choque com alguma coisa, por exemplo, com o silêncio do analista” (p. 45).

Simbólico e Imaginário tentam dar conta do Real, do furo, sendo que “o Real será definido como o que escapa ao Simbólico, o real como trauma” (Chaves, 2009, p. 43).

Uma boa definição do Real, a meu ver é dada por Fink (2018):

“O Real, tal como o apresentei até aqui, é aquilo que ainda não foi posto em palavras ou formulado. Podemos pensar nele, em certo sentido, como a ligação ou o elo entre dois pensamentos que sucumbiu ao recalcamento, e que precisa ser reestabelecido” (p.61)

Lacan dizia também que o Real é como o “muro da linguagem”, o limite que resta de não-simbolizável. A morte, por exemplo, é algo do Real. A experiência de perder alguém próximo costuma vir acompanhada da “falta de palavras”. Não existem palavras que deem conta desse sofrimento.

“Ainda nessa qualidade, em sua posição tópica, ele se caracterizará como exsistente (situado fora de todo campo demarcável). Finalmente, e na medida em que lhe é assim conferido o estatuto de um vazio, ele se articulará numa representação “borromeana” com os vazios constitutivos do simbólico e do imaginário” (Kauffman, 1998, p. 445)

Mais a frente na obra Lacaniana, o autor vai formalizar a tríade, Simbólico-Imaginário-Real, a partir do chamado Nó Borromeano, uma formação topológica que consiste de 3 aros interligado, de tal modo que se um se desvencilhar os outros também o são. Assim é o sujeito para Lacan.

O nó Borromeano

O Real em Lovecraft

Os monstros “Lovecraftianos” não apresentam forma, suas formas não podem ser compreendidas pela raça humana. Muitas vezes a geometria de construções alienígenas são consideradas estranhas e incompreensíveis para nós (Lovecraft, 2017).

A própria palavra “Cthulhu”, oriunda do conto “O Chamado de Cthulhu” (talvez seu texto mais conhecido, adaptado para uma infinidade de jogos, RPG’s, etc) publicado em 1928, seria impronunciável. Segundo ele, “a nossa conformação fisiológica não permitiria que o pronunciássemos corretamente” (Lovecraft, 2017, p.120). Não seria um idioma para a laringe humana.

Em Dagon (1919/2017), seu primeiro conto publicado profissionalmente:

“Então, de repente, eu vi. Com apenas uma leve agitação para marcar sua ascensão até a superfície, a coisa deslizou para fora das águas escuras. Tão vasto quanto Polifemo e horrendo, ele dardejou, como um estupendo monstro de pesadelos, contra o monólito, sobre o qual lançou seus gigantescos braços escamosos, enquanto curvava a cabeça hedionda e dava vazão a certos sons compassados. Naquele momento, pensei ter ficado louco” (Lovecraft, p. 26).

Interessante notar que isso se alinha com a noção de Real que escapa a Simbolização. O inominável e impensável vem de encontro aos personagens nos contos de Lovecraft. O horror, muitas vezes se baseia no desconhecido, na incerteza do que está lá. Para além disso, o fato de não haver palavras que descrevam a visão monstruosa denota um encontro com o Real: “O efeito da visão monstruosa era indescritível, já que alguma violação demoníaca das leis naturais parecia uma certeza desde o começo” (Lovecraft, 1936/2017, p. 209).

A incerteza é algo que invariavelmente estará presente nas nossas vidas, lidar com ela e produzir algo a partir disso é um dos objetivos centrais da análise, sempre apontando para onde está o desejo do sujeito.

O Real se impõe como um muro da linguagem para todos. E é nessa direção que é entendida a clínica psicanalítica lacaniana na atualidade. Levamos o sujeito a se confrontar com sua possibilidade maior de escolhas (Forbes, 2014). Com a mudança do laço social, os referenciais tidos como certos no passado não funcionam mais, com isso, temos que nos reinventar constantemente. A mudança na clínica psicanalítica, passa então por, não mais explicar o sintoma (Clínica da Simbólico), mas por implicar (Clínica do Real) o paciente em seu sintoma e em seu desejo.

Imagino o que pensaria Lovecraft se caminhasse entre nós nos dias de hoje. Talvez ele caminhe.

Até a próxima,

Igor Banin

Referências Bibliográficas

Chaves, W. (2009). Considerações a respeito do conceito de Real em Lacan. In Psicologia em Estudo. (pp. 41-46, v. 14). Maringá.

Fink, B. (2018). Introdução clínica à psicanálise lacaniana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Forbes, J. (2014) Psicanálise – A clínica do Real. Barueri: Manole.

Kauffman, P. (1998) Real. In Dicionário Enciclopédico de Psicanálise. O legado de Freud e Lacan. (pp.444-445) Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Lacan, J. (1953/2005). O simbólico, o imaginário e o real. Em Nomes-do-Pai (T. André, Trad., pp. 11-53). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Lovecraft, H.P. (2017). H. P. Lovecraft: medo clássico. Rio de Janeiro: Darkside Books.

Lovecraft, H.P. (2017). Contos, Volume 1 / H. P. Lovecraft. São Pauo: Martin Claret.

O que é o Autismo?

No mês de Abril comemora-se o mês da conscientização do Autismo. Para uma condição tão em voga para pais nos dias atuais, penso que seja necessário um debate explicativo do que é o autismo, como se constitui enquanto estrutura clínica e seu tratamento.

Autismo 2

Histórico

Apenas recentemente o Autismo ganhou um espaço próprio na compreensão diagnóstica psiquiátrica e psicológica. Até então, o autista era incluído no grande grupo de crianças com deficiências mentais (Kupfer, 1999).

Foi apenas nos anos 1940 que o autismo foi diferenciado das psicoses mais gerais, à partir dos trabalhos de Leo Kanner e Hans Asperger.

O asilamento provinha do diagnóstico frequente de incurabilidade do quadro clínico. A luta por direitos exercida por associações de pais fez com que o acesso à melhores tratamentos fosse possível (Laurent, 2014).

No âmbito da psicanálise, é importante destacar o trabalho de Rosine e Robert Lefort, que, seguindo os passos de Lacan, introduziram uma abordagem terapêutica que conciliava o entendimento psicanalítico lacaniano com a clínica da infância.

Autismo é genético?

Alguns acreditam que componentes genéticos são responsáveis pelo desencadeamento da sintomatologia autista. Por outro lado, temos aqueles que creem que o ambiente é responsável por si só.

A psicanálise envereda por uma terceira via, a da psicogênese, mas sem descartar a importância de outros elementos. Segundo Kupfer (1999):

“o autismo não seria nem o efeito de uma falha genética, nem o efeito de “interações ambientais” entendidas como o faz a psicologia americana, mas uma conseqüência da falha no estabelecimento da relação com o Outro, quer porque o Outro materno não esteve disponível, quer porque falhou no bebê a permeabilidade biológica ao significante.” (p. 99)

Como afirma Laurent (2014): “O fato de haver algo de biológico em jogo não exclui a particularidade do espaço de constituição do sujeito como ser falante” (p. 33).

Lacan dizia que um bebê não passa de um bife com olhos. A subjetivação vai sendo acrescida a sua vida com o passar do tempo, em sua entrada no laço social, na sociedade.

Pensando nisso, é importante ressaltar que a psicanálise não culpa as mães pela emergência no autismo em seus filhos, como falas errôneas pregam já há muito tempo.

Autismo no DSM

Pela perspectiva do DSM-5 (Diagnostic and Statistical Manual for Mental Disorders) o autismo se encontra dentro do grande conjunto de Transtornos de Neurodesenvolvimento.

Algumas das características diagnósticas do transtorno são:

“prejuízo persistente na comunicação social recíproca e na interação social (Critério A) e padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividade (Critério B). Esses sintomas estão presentes desde o início da infância e limitam ou prejudicam o funcionamento diário (Critérios C e D). O estágio em que o prejuízo funcional fica evidente irá variar de acordo com características do indivíduo e seu ambiente. Características diagnósticas nucleares estão evidentes no período do desenvolvimento, mas intervenções, compensações e apoio atual podem mascarar as dificuldades, pelo menos em alguns contextos. Manifestações do transtorno também variam muito dependendo da gravidade da condição autista, do nível de desenvolvimento e da idade cronológica; daí o uso do termo espectro. O transtorno do espectro autista engloba transtornos antes chamados de autismo infantil precoce, autismo infantil, autismo de Kanner, autismo de alto funcionamento, autismo atípico, transtorno global do desenvolvimento sem outra especificação, transtorno desintegrativo da infância e transtorno de Asperger.” (DSM, 2014, p. 53)

Em muitos casos o paciente não fala. Não porque não consegue, mas não sente a necessidade. A necessidade de rotinas bem definidas e seguidas à risca também é uma característica comum em pacientes com tal transtorno.

Autismo na Psicanálise

Rosine
Rosine e Robert Lefort

O autismo foi tema de debates intensos nos anos 80 e 90 no cenário psicanalítico. Muito se debatia se a sintomatologia autística se enquadrava dentro de um grande grupo de estruturas psicóticas, ou se era algo à parte. Apenas para relembrar rapidamente, a diagnóstica psicanalítica lacaniana se constitui de três estruturas clínicas, ou, em termos técnicos, três modulações de transferências, isto é, três maneiras de se estar com, e em relação ao Outro. São elas: Neurose, Psicose e Perversão.

O autista é psicótico?

Sim, e não. Pensando por uma clave de primeira clínica lacaniana o psicótico é um sujeito que não interiorizou o “Nome-do-Pai”, e isso, o autista não faz mesmo, o que em um primeiro momento nos levaria à crer que trata-se de uma estrutura no âmbito da psicose. Todavia, por outro lado, autistas não apresentam alucinações e delírios que frequentemente vemos em sujeitos de estrutura psicótica.

Para alguns analistas, há uma diferença, no entanto na forma de não integração do Nome-do-Pai entre psicose e autismo. Enquanto na primeira há um sujeito que se inscreve no Simbólico em uma posição fixa, na segunda não há assunção de sujeito.

Essa posição pode ser contestada pela teorização mais clássica da psicanálise em comportamentos frequentes em austistas como “tapar os ouvidos” quando na presença de outras pessoas. Em teoria, isso demonstra o reconhecimento de algo do qual o sujeito gostaria de “fugir” (Kupfer, 1999).

Penso que na estrutura autista como estando em um momento anterior de formação de alteridade em relação ao desenvolvimento do Eu, do que as psicoses mais clássicas.

Tratamento do Autismo

Autismo

O estigma gerado por um diagnóstico atrapalha ainda mais o sujeito que já encontra obstáculos em sua vida. Não é incomum que os pais da crianças assumam imaginariamente o lugar de defensores da “causa” de seus filhos (Laurent, 2014).

Importante mencionar que o meu entendimento do tratamento se dá a partir da clínica psicanalítica de orientação lacaniana.

Muito se fala em metodologias comportamentais de aprendizado, que, em muitos casos se concentra em objetivos como adquirir funções elementares, através do espelhamento. Critico nesses casos, as experiências que adquirem um aspecto coercitivo e imaginário, sem que se possa inserir o sujeito na troca significante.

O singular da falar do sujeito deve ser o ponto balizador da escuta do analista, e prover esse enquadramento de espaço ao sujeito o auxilia no processo de subjetivação.  Seu tempo e suas rotinas devem ser respeitados de tal modo que o avanço do tratamento aconteça progressivamente.

Sobre o acesso à linguagem do sujeito, Dolto (2010) afirma:

“Para estudar a linguagem difratada e diferida no comportamento, nos desenhos, nas modelagens e no discurso do analisando, o psicanalista topa com fantasias (até mesmo fantasias de fantasias), máscaras em camadas de cebola, que poderíamos chamar de “resistências” e que ele deve respeitar totalmente, se pretende socorrer o sujeito em sua relação consigo mesmo, reconhecidamente mascarado, mas também livre para conservar a máscara” (p. 210)

Um dos pontos importantes à se trabalhar na clínica de sujeitos autistas, é o desejo da mãe (Outro materno). Temos que lembrar que para Lacan, o sujeito se faz na e pela linguagem, através de um Outro que o enlaça. Esse Outro deve supor um sujeito e se dirigir à ele antes que ele exista (Kupfer, 1999).

As estereotipias, ou movimentos repetidos que o sujeito performa podem ser entendidos também como movimentos que não receberam uma significação pelo Outro, isto é, permanecem “sem sentido”.

A mãe (Outro) tem então o papel de criar , como afirma Kupfer (1999):

“Seja como for, o corpo de um bebê jamais sairá de sua condição de organismo biológico se não houver para ele um outro que sustente o lugar de Outro Primordial e que o pilote em direção ao mundo humano, que lhe dirija os atos para além dos reflexos, e, principalmente, que lhes dê sentido.” (p. 99)

Pensando no manejo dos pais no tratamento de seus filhos, Kupfer (1999) afirma:

“Aposta-se que, para eles, fará diferença que um psicanalista oponha resistência à objetalização da criança e à “desresponsabilização” do Outro materno, pois isto permitirá que se localize com maior precisão a posição das mães, quem sabe a tempo de a reverter.” (p. 107)

Que a conscientização que Abril nos traz perdure pelo ano.

Até a próxima,

Igor Banin

Referências Bibliográficas

American Psychiatric Association (2014). DSM-5 – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Porto Alegre: Artmed.

Dolto, F. (2010). O caso Dominique. São Paulo: Editoria WMF Martins Fontes.

Kupfer. M (1999). Psicose e Autismo na Infância: Problemas Diagnósticos. In Estilos da Clínica. (pp. 96-107, Instituto de Psicologia da USP). São Paulo.

Lacan, J. (1953/1998). Função e campo da fala e da linguagem. Escritos (pp. 238-324). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Laurent, E. (2014) A Batalha do Autismo: Da Clínica à Política. Rio de Janeiro: Zahar.

Mélega, M. (1999) Pós-Autismo: Uma narrativa psicanalítica. Rio de Janeiro: Imago.

 

Winnicott: Holding, Handling e Apresentação dos Objetos

Expoente da chamada escola inglesa de psicanálise, D. W. Winnicott (1986 – 1971) foi um médico pediatra e psicanalista pós-freudiano que conseguiu criar uma dimensão original na psicanálise. Em sua trajetória, entre outros tópicos, destacam-se:

  • o papel e valor do ambiente/cuidador para com o desenvolvimento do indivíduo;
  • as funções de holding, handling e apresentação de objetos;
  • a descoberta do objeto transicional e da zona potencial;
  • os conceitos de verdadeiro e falso self;
  • a teoria da tendência antissocial e delinquência.

Escola britânica de psicanálise e Donald Winnicott

Winnicott foi supervisando de Melanie Klein (1882-1960) – psicanalista austríaca responsável por pioneiras teorias e descobertas acerca do aparelho psíquico do bebê e da criança – sendo que a teoria kleiniana serviu tanto para Winnicott confirmar algumas de suas investigações, como para o guiar e inspirar sua em própria teoria e abordagem, distinta da clínica de Klein.

O olhar de Winnicott mirou o ambiente e os cuidados maternos que cercam o início da vida de alguém. Diferente de Klein, ele nos diz que não é possível compreender a vida psíquica primitiva do bebê olhando apenas para esse e suas fantasias, mas deve-se analisar também o ambiente no qual ele está inserido e como são os cuidados que ele recebe.

Dessa forma, a teoria winnicottiana nos diz que não existe um bebê separado do seu cuidador (There is no such thing as a baby / a baby alone doesn’t exist) Winnicott,

“Se a dependência realmente significa dependência, então a história de um bebê individualmente não pode ser escrita apenas em termos do bebê. Tem de ser escrita também em termos da provisão ambiental que atende a dependência ou que nisso fracassa”.

(Winnicott, 1975, p. 116)

melanie klein e donnald winnicott
(Melanie Klein e Donald W. Winnicott, em jantar para M. Klein, em Londres de 1952).

Dependência e ambiente em Winnicott

Winnicott observou que ao nascer, diferente de alguns outros bichos, o ser humano é completamente dependente de seu cuidador, sendo que, caso esse não provenha alimento e segurança para o bebê, o mesmo certamente morrerá, uma vez que é incapaz de buscar, inicialmente e por conta própria, o conforto no ambiente – ele chamou isso de dependência absoluta.

Na teoria winnicottiana aparecem 3 fases de dependência: absoluta; relativa e rumo à independência. Na dependência absoluta não há separação entre corpo e meio; ainda não existe Eu configurado; o indivíduo é completamente dependente do ambiente. Na dependência relativa começamos a encontrar o self separado do outro; é o início da distinção do ser; há Eu e há outro; envolve a utilização de objeto transicional; o indivíduo começa a buscar o ambiente, mas ainda necessita de cuidados de alguém. No rumo à independência temos o estabelecimento de relacionamentos do indivíduo para com objetos externos baseados no princípio da realidade. Para o autor, o ser humano é um ser potencialmente criativo, que carrega uma tendência inata para a integração e o desenvolvimento, mas cabe ao ambiente oferecer o suporte para que essas potencialidades se realizem. Dessa forma, Winnicott fala de um ambiente facilitador ou suficientemente bom, representado pela mãe suficientemente boa (good enough parent): alguém que consegue, de forma empática, sensível e dinâmica se adaptar aos diversos estágios de desenvolvimento do bebê e responder adequadamente tanto às suas necessidades quanto às suas tolerâncias em suportar a frustração. De acordo com o autor, é função da mãe suficientemente boa: o holding; o handling; e a apresentação dos objetos.

Sustentação (Holding)

Geralmente traduzido como sustentar ou segurar e, por outras vezes, mantido no original “holding”, o termo faz referência ao suporte físico e psíquico oferecido ao bebê pelo seu cuidador. Envolve um padrão empático e uma rotina nos cuidados do bebê e se expressa como um conjunto de comportamentos afetivos relacionados ao alimentar, limpar, proteger, uma vez que o bebê precisa estar fisicamente seguro e psicologicamente acolhido. O holding permite uma certa estabilidade e previsibilidade do ambiente, o que é fundamental para o desenrolar das tendências hereditárias do indivíduo. De acordo com Winnicott, esse processo se dialoga diretamente com a continuidade do ser, com a noção de ilusão e com a integração das partes do self.

“Tudo isso é muito sutil, mas ao longo de muitas repetições, ajuda a assentar os fundamentos da capacidade que o bebê tem de sentir-se real. Com esta capacidade o bebê pode enfrentar o mundo ou (eu diria) pode continuar a desenvolver os processos de maturação que ele ou ela herdaram.”

(Winnicott, 2012, p. 5)

“quando o ato de segurar o bebê é perfeito (e de um modo geral assim é, já que as mães sabem exatamente como fazê-lo),o bebê pode adquirir confiança até mesmo no relacionamento ao vivo, e pode não integrar-se enquanto está sendo seguro. Esta é a experiência mais enriquecedora. Freqüentemente, no entanto, o ato de segurar o bebê é irregular, e pode até mesmo ser desperdiçado pela ansiedade (o controle exagerado da mãe para não deixar o bebê cair) ou pela angústia (a mãe que treme, a pele quente, um coração batendo com muita força, etc.), casos em que o bebê não pode dar-se ao luxo de relaxar. O relaxamento acontece então, nestes casos, apenas por pura exaustão. Aqui, o berço ou a cama oferecem uma alternativa muito bem-vinda.”

(Winnicott, 1990a, p. 61)

Manejo (Handling)

Vibrant Health Mother hugging child – Katie M. Berggren

Traduzido como manejo ou deixado no original “handling”, esse termo deriva de hand (mão) e diz respeito ao contato pele com pele entre bebê e cuidador. Faz referência aos cuidados físicos e envolve o manuseio corporal do bebê durante os suportes básicos como: banho, troca e amamentação, por exemplo. Segundo o autor, o handling auxilia a formar as bordas do corpo, a harmonizar a vida psíquica (realidade interna) com o corpo (esquema corporal), a diferenciar o Eu do outro, e a reconhecer sua própria psique dentro do seu próprio corpo (personalização). Dessa forma, o par segurar-manejar é fundamental para o estabelecimento das bases mínimas que possibilitarão a instauração de um ser saudável e criativo.

“Um bebê pode ser alimentado sem amor, mas um manejo desamoroso, ou impessoal, fracassa em fazer do indivíduo uma criança humana nova e autônoma”.

(Winnicott, 1975, p. 172)

Apresentação de Objetos (Object-presenting)

Por fim, mas não menos importante, a 3ª função que compete à mãe suficientemente boa é a apresentação dos objetos (ou apresentação de mundo), que consiste em oferecer objetos substitutos de satisfação. Relaciona-se com a apresentação da externalidade e da realidade. É fundamental para a avanço da fase de dependência absoluta para dependência relativa, uma vez que possibilita o interesse, curiosidade e a busca por objetos de satisfação para além da cuidadora. A mãe deve apresentar o mundo em pequenas doses, ao passo em que permita a ilusão inicial (onipotência) de que quem criou aquilo foi o bebê. Segundo o autor, essa apresentação carrega a função formativa que permite o estabelecimento das relações objetais.

“O bebê desenvolve a expectativa vaga que se origina em uma necessidade não-formulada. A mãe, em se adaptando, apresenta um objeto ou uma manipulação que satisfaz as necessidades do bebê, de modo que o bebê começa a necessitar exatamente o que a mãe apresenta. Deste modo o bebê começa a se sentir confiante em ser capaz de criar objetos e criar o mundo real. A mãe proporciona ao bebê um breve período em que a onipotência é um fato da experiência.”

(Winnicott, 1990b, p.56).

Ambiente e Self

De acordo com o autor, o sucesso dos processos ambientais possibilitará o desenvolvimento e a estruturação saudável do ser (distinto, autêntico e criativo), assim como as falhas ambientais (negligências, intrusões ou desastres) levam ao desenvolvimento adaptativo e reativo de personalidade ao ambiente. O verdadeiro self e a sensação de que a vida vale apena ser vivida, apontada por Winnicott, é a realização da nossa tendência e potencial de desenvolvimento, assim como as estruturações defensivas do self, as neuroses e sensação de futilidade do viver, são características de um falso self que precisou se adaptar e/ou reagir a um ambiente falho.

Para saber mais sobre verdadeiro e falso self, recomendo a leitura do texto Explicando Winnicott: Criatividade Primária, onde abordo mais aspectos do desenvolvimento emocional primitivo e trago algumas relações entre o self e a criatividade primária. Deixo também como recomendação o trecho de “A criatividade humana e a crise contemporânea”, com psicanalista Carlos Plastino, que discorre sobre a temática.

Referências e complementos

Winnicott, D. W. (1975). O brincar & a realidade. Rio de Janeiro: Imago

Winnicott, D. W. (1990a). Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago.

Winnicott, D. W. (1990b). O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Editora Artes Médicas.

Winnicott, D. W. (2012). Os bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes.

Por Caio Ferreira

FaceApp – Fascinação e medo na clínica dos idosos

Por que o aplicativo que nos mostra mais velhos chama tanta atenção?

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(Imagem retirada da Internet)

De tempos em tempos um aplicativo chamado FaceApp cai no gosto do povo e chama a atenção geral. Já conseguiu “mudar” o gênero da face das pessoas e transformá-las em bebês. Nos últimos meses, outra aplicabilidade interessante causou alvoroço geral na rede. A possibilidade de “predizer” como você estará daqui à alguns anos. Ou seja, com base em uma foto de sua escolha, realiza um processo de envelhecimento artificial e apresentava um resultado (na maioria das vezes bizarro).

Não deu outra, a internet foi abaixo. O aplicativo acumulou mais de 150 milhões de fotos em questão de dias.

O debate acerca da privacidade envolvendo esses aplicativos fica para outro dia (e recomendo essa reportagem).

Espelho e formação da imagem

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(Imagem retirada da Internet)

A nossa imagem corporal é constituída em um longo processo mental, que é sempre pautado pela relação com o Outro. Jacques Lacan (1901 – 1981) introduziu a noção de estádio do espelho, que, resumidamente,  nos auxilia a compreender a constituição do sujeito em relação ao outro. Sugiro que todos se remetam ao próprio texto, mas para já é importante apontar que o aporte corporal do sujeito é dado pelo outro. A nomeação de nosso corpo e filiação é dada pelo Outro, e é simbolizada pelo sujeito.

“Basta compreender o estádio do espelho como uma identificação, no sentido pleno que a análise atribui a esse termo, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem – cuja predestinação para esse efeito de fase é suficiente indicada pelo uso, na teoria, do antigo termo imago.” (Lacan, 1951/1998, p. 97)

Logo após a constituição dessa unidade imaginária (Eu), o sujeito passa de uma relação auto-erótica, anterior, primária, a uma relação de narcisismo, onde o investimento libidinal volta-se sobre si mesmo, mas de uma maneira organizada.

 

Diana e Mario Corso (2018) falam da formação da imagem no adolescente, e como esse período determinará nossa relação com o espelho para o resto da vida. A adolescência é o momento onde formamos nossa assinatua visual, como fala Diana. “Sempre que olharmos para o espelho, é esse adolescente que vamos enxergar, e ele vai nos cobrar”. As selfies insistentes dos adolescentes (e dos nem tão jovens) podem ser entendidos como esse apoio para a formação da imagem.

 

 

A morte, segundo Freud se coloca como a castração final. E nos é impossível, conceber a nossa propria morte em seu aspecto completo, realmente imaginar nosso desfalecimento.

Muitos pacientes relatam imaginar e fantasiar sobre o seu próprio funeral. O que aconteceria, quem viria, se haveriam lágrimas sendo derramadas ou sorrisos exibidos.

O que argumento é, talvez o que importa no fato do app nos transformar em velhos é a possibilidade de poder mostrar para o outro. Olhar e ser olhado. Toda relação é a três como já dizia o velho Freud. Em uma passagem interessante do livro Como ler Lacan? (2010), do irreverente Slavoj Žižek, ele comenta esse aspecto (o leitor me perdoará desde já a longa citação):

“Essa referência inerente ao Outro é o tópico de uma piada infame sobre um pobre camponês que, tendo sofrido um naufrágio, vê-se abandonado numa ilha com, digamos, a Cindy Crawford. Depois de fazer sexo com ela, ela lhe pergunta como foi; sua resposta é “Foi ótimo”, mas ele ainda tem um favorinho a pedir para completar sua satisfação: poderia ela se vestir como seu melhor amigo, usar calças e pintar um bigode no rosto? Ele lhe garante não ser um pervertido enrustido, como ela verá assim que lhe fizer o favor. Quando ela o faz, ele se aproxima dela, dá-lhe um tapinha nas costas e lhe diz com o olhar malicioso da cumplicidade masculina: “Sabe o que me aconteceu? Acabo de transar com a Cindy Crawford!”

 

A clínica psicanalítica com idosos

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(Imagem retirada da Internet)

É possível analisar idosos? Agora, respondo que sim. Antes, talvez tivesse mais resistência para com isso. A kilometragem de divã nos ajuda bastante.

Para Freud (1898/1996), analisar idosos poderia não ser uma boa idéia pelo fato da neurose estar tão arraigada que não haveria tempo de realizar o tratamento psicanalítico, haveria “muito material”.

 

A psicanálise faz com que o sujeito reflita sobre seu próprio desejo, e muitas vezes ajuda a recriá-lo. A velhice pode ser tida por alguns como período de espera pela morte. O analista aposta no sujeito, para que ele ainda podem ter sonhos.

A clínica psicanalítica faz com que o sujeito possa se re-inventar, encontrar outras formas de satisfação e lidar de maneira menos tóxica com a perda dos objetos.

 

Lembro de um episódio específico da série televisiva “Friends” quando todos fazem 30 anos, onde a forma como cada um lida com isso é mostrado. Muitos não aceitam, alguns inclusive querem fazer um pacto com Deus para não mais envenlhecer.

Como dizia Freud: Existe vida antes da morte.

Até a próxima,

Por Igor Banin

PS:

Sobre esse tema, acho interessante a leitura dos textos abaixo. Um deles trata de um experimento feito por um fotógrafo onde ele junta imagens de pessoas idosas, com retratos das mesmas quando jovens. O outro é um artigo da psicanalista Vera Iaconelli, diretora do Instituto Gerar, que também faz uma análise do aplicativo FaceApp. Além disso, seguem também os comentários do psicanalista Christian Dunker acerca da clínica na velhice.

https://extra.globo.com/noticias/mundo/fotografo-americano-poe-idosos-para-se-verem-mais-jovens-no-espelho-em-ensaio-10969068.html

 

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/vera-iaconelli/2019/07/vida-longa-as-vovozinhas-assanhadas.shtml

 

Referências Bibliográficas

Crane, D & Kauffman, M. (2000). Friends: The one where they all turn thirty. Estados Unidos da América: Warner Bros. Television.

Freud, S. (1898/1996). A sexualidade n aetiologia das neuroses. In Primeiras publicações psicanalíticas. (pp. 249-272, Obras completas de Sigmund Freud, v.3). Rio de Janeiro: Imago.

Lacan, J. (1951/1998). O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica. In Escritos. (pp 96 – 103). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Zizek, S. (2010). Como ler Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

“Adolescentes e adultos: tudo fora do eixo”. Palestra da série: Adolescência em cartaz por Mario Corso e Diana Corso, feita em 2018. Promovido pela CPFL Cultura.