Da morte e do (quase) morrer
Este será um texto diferente, talvez o mais pessoal que já escrevi. Tentarei relatar nessas passagens as impressões de um acontecimento em sua vida e o que se seguiu.
Aconteceu em uma manhã de segunda-feira. O pai desse meu amigo foi acometido por um AVC (Acidente Vascular Cerebral), também conhecido como derrame, no último mês de março. A esposa não percebeu logo de cara que se tratava de um derrame. Achou que ele estava tossindo ou coisa parecida. Só após algum tempo que a pobre mulher se deu conta da gravidade da situação.
Levado ao pronto-socorro de um hospital público, o paciente recebeu o diagnóstico de AVC isquêmico, com prognósticos dos mais diversos, à depender do médico de plantão.
Hoje, dois meses após o ocorrido ainda acompanho o caso de perto. O paciente já está em casa, com sequelas significativas, mas que parecem estar diminuindo à cada dia. O lado direito do corpo ficou paralisado, mas está voltando com o auxílio da fisioterapia. Não consegue falar, apenas emite sons ininteligíveis de tempo em tempo. Com a fonoaudiologia deve retomar parte da comunicação verbal.
Quanto ao meu amigo, ele parece se recuperar à passadas largas. Está elaborando o ocorrido, e temos discutido o tema do luto.
Curioso que, assistindo recentemente alguns episódios da série de televisão House M.D., me deparei com um chamado “Dying changes everything”, algo como “Morrer muda tudo”. Neste caso, quase morrer.
O médico mais famoso da tv argumenta que morrer muda tudo, mas quase morrer não muda nada, depois dessa situação discordo. Logo eu que costumo concordar com as opiniões pessimistas do rabugento doutor.
As fases do luto
(Imagem retirada da Internet)
Dentre alguns teóricos da psicologia, me utilizo aqui da divisão em cinco fases do processo do luto, estabelecida por Kubler-Ross (1996). São elas:
- A negação ou isolamento
- A raiva
- A barganha
- A depressão
- A aceitação
Falemos delas. Em um primeiro momento, após a morte há a fase chamada de negação, ou isolamento, onde a pessoa não aceita a perda, e entra em uma espiral de negação, isto é, “ele não morreu, é mentira”. Após isso, vem a raiva, momento em que pestaneja-se aos céus e o mundo a indignação, do tipo: “Maldição, porque comigo. Deus não poderia fazer isso, logo comigo”. Depois, o estágio da Barganha, que é mais curto, se caracteriza por uma negociação, principalmente evidente quando se está em estágios terminais de uma doença. Algo como: “Serei uma pessoa melhor, se sobreviver”. A depressão vem logo em seguida, quando a pessoa se isola do mundo em uma tentativa de fuga para elaborar a perda. Por fim vem a aceitação, onde a pessoa encara a situação de forma “razoável”, com menos desespero.
Segundo minha observação, as fases não se seguiram de forma tão sequenciada, se intercalando por vezes, no meu amigo.
A morte por vários olhos
(Imagem retirada da Internet)
Japoneses festejam a morte. Lembro de um grande amigo de origem nipônica, que, com toda celeridade, característica dos japoneses, uma vez me disse: “Não tem porquê ficar triste. É lógico que agora ele está melhor, não está mais sofrendo”. Concordo com ele
Recentemente li As Intermitências da morte, conto de José Saramago (2005), e achei fabuloso. Trata-se de uma estória, narrada com maestria pelo português, onde a morte decide não mais trabalhar, isto é, em um determinado país, ninguém mais morre. À partir das 00:00 do primeiro dia do ano, todas as pessoas que estavam prestes à “partir desta para melhor”, ficam como em um estado de “vida suspensa”, como diz o escritor.
Interessante notar quais as consequências e reações sociais da extinção por tempo indeterminado da morte. Hospitais ficam lotados de idosos, funerárias entram em colapso (e praticamente qualquer companhia e setor que esteja ligado à morte de pessoas), e espaços destinados ao tratamento e cuidados dos idosos. Elucubrou-se logo que não haveria pessoal suficiente para cuidar de tamanha população idosa.
Moradores de cidades que faziam fronteira com outros países logo descobriram uma solução: Carregar os moribundos para o outro lado, assim, levando-os para um lugar onde a morte ainda vigorava. Questão ética importante aí exposta. Levá-lo para o outro lado (jogo de palavras intencional, ou não), é passível de condenação por assassinato, mesmo quando o próprio doente o pede?
Tocamos aqui em uma máscara social profunda, até quando é suportável cuidar de alguém em tais condições de saúde.
Outro ponto que é discutido no texto, é que, caso a morte de fato não mais retornasse a atuar no país, não haveria sentido a vida. A vida parece ter sentido à partir da morte. Fazemos o que fazemos pois há um limite, um ponto-final.
Luto e melancolia – A morte em psicanálise
(Imagem retirada da Internet)
Um texto que penso ser válido trazer é “Luto e Melancolia” de Freud, datado de 1917. Nele Freud discursa sobre as diferenciações do quadro clínico conhecido como melancolia, e o processo “normal” de luto. O luto é caracterizado enquanto uma dificuldade de alterar o objeto de investimento libidinal, isto é, o que morre em última instância é a representação daquele objeto para nós. Segundo Freud (1917[1915]/1996): “… é fato notório que as pessoas nunca abandonam de bom grado uma posição libidinal, nem mesmo, na realidade, quando um substituto já se lhes acena” (p. 250). Já em relação à melancolia, os pontos-chave do quadro clínico são:
“um desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e uma diminuição dos sentimentos de auto-estima a ponto de encontrar expressão em auto-recriminação e auto-envilecimento, culminando numa expectativa delirante de punição” (Freud, 1917[1915]/1996, p.250).
Na melancolia, o próprio ego assume o lugar do objeto perdido. Por isso, o melancólico (ou Maníaco-depressivo) é alguém que personifica a perda do objeto de desejo.
Falar sobre a morte não é fácil, e configura um dos “pontos-chave” da análise. Diz da relação do sujeito com o limite, com a castração. Freud chegou à afirmar que considerava a morte como a castração final. “Nosso hábito é dar ênfase à causação fortuita da morte…” (Freud, 1915/1996, p.300), isto é, procuramos dar um sentido para a morte, para além da aleatoriedade da vida.
“De fato, é impossível imaginar nossa própria morte e, sempre que tentamos fazê-lo, podemos perceber que ainda estamos presentes como espectadores. Por isso, a escola psicanalítica pôde aventurar-se a afirmar que no fundo ninguém crê em sua própria morte, ou, dizendo a mesma coisa de outra maneira, que no inconsciente cada um de nós está convencido de sua própria imortalidade” (Freud, 1915/1996, p.299)
Segundo Freud (1915/1996 ): “A consideração pelos mortos, que, afinal de contas, não mais necessitam dela, é mais importante para nós do que a verdade, e certamente, para a maioria de nós, do que a consideração pelos vivos” (p.300). Observação apurada a dele.
Sobre a necessidade de acreditarmos em espíritos, Freud (1915/1996 ) comenta: “Foi ao lado do cadáver de alguém amado por ele que inventou os espíritos, e seu sentimento de culpa pela satisfação mesclado à sua tristeza transformou esses espíritos recém-nascidos em demônios maus que tinham de ser temidos”. (p.304)
Por último, gostaria de pontuar uma homofonia da língua inglesa que me ocorreu no dia mesmo em que soube do acontecido: ““Dad is Dead”. Nietzsche neles.
Até a próxima.
Por Igor Banin
Indicação de vídeo. Nele o psicólogo Caio Cesar comenta sobre os 5 estágios do luto.
Assista abaixo!
Referências Bibliográficas
Freud, S. (1917[1915]/1996). Luto e Melancolia. In A História do Movimento Psicanalítico, Artigos sobre a Metapsicologia e outros trabalhos. (pp. 245-270, Obras completas de Sigmund Freud, v.14). Rio de Janeiro: Imago.
Freud, S. (1915/1996). Reflexões para os tempos de guerra e morte. In A História do Movimento Psicanalítico, Artigos sobre a Metapsicologia e outros trabalhos. (pp. 285-316, Obras completas de Sigmund Freud, v.14). Rio de Janeiro: Imago.
Kubler-Ross, E. (1996). Sobre a morte e o morrer. São Paulo: Martins Fontes.
Saramago, J. (2005). As Intermitências da Morte. São Paulo: Companhia das letras.
Shore, D. House M.D. Estados Unidos da América: Universal Studios.
Yalom, I. (2008). Mamãe e o sentido da vida. Rio de Janeiro: Agir.
3 comentários
Geraldo · 5 de fevereiro de 2023 às 00:43
A Morte é ausência física! Já tive momentos de quase morte, mas o momento que me levou a reflexão foi de uma prima quando faleceu e, poucos meses depois de sua morte a ouvi me chamando no trecho do percurso que me leva ao Shopping e algumas vezes a encontrei! Ai me lembrei foi da “limitação do morrer”: sem estar encarnado (a), sem interação com todos e sem precisar estar “a boa mesa”! Já dizia meu pai: “Se a morte é um descanso, preferiria ficar cansado”!
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