Minhas melhores leituras de 2022

Recomendações de leitura para o teu ano 🙂

Durante a pandemia, voltei ao antigo hábito de leitura voraz. Tem sido tão interessante que no início de 2022, fiz minha lista de melhores leituras do ano anterior, muito mais como um exercício de reflexão para mim mesmo. Decidi repetir a dose, então aqui vão as melhores obras que encontrei no último ano.

Não diria que há necessariamente uma ordem gradativa de qualidade, algo como “do pior ao melhor”, mas sim obras que me afetaram

Tive leituras fascinantes em diversos gêneros. Ficção, Não-Ficção e Histórias em Quadrinhos. A lista a seguir tenta abranger um pouco de tudo.

O Homem que passeia, mangá por Jiro Taniguchi

O estilo de Taniguchi é incomparável. Sempre reflexivo e calmo, ler uma obra do Taniguchi tem um efeito de uma sessão de meditação zen. Parar e observar o mundo à sua volta trazem efeitos de pertencimento e organização, e isso é o objetivo da maioria das obras de Taniguchi.

Nessa história acompanhamos justamente o que o título sugere: Um homem que passeia e explora diversas regiões próximas a sua casa, se deixando levar e estar, verdadeiramente no lugar. Aberto às experiências, pessoas e aventuras possíveis em cada situação.

O traço de Taniguichi é leve e refrescante. Não foi a única obra do autor que li no último ano. Na verdade, acredito que foi o autor com mais obras no último ano. Dele li também: “Um Bairro Distante”, “Tokyo Killers”, “O Gourmet Solitário”, “Zoo no Inverno” e “Guardiões do Louvre”.

Recomendo também o vídeo do Pipoca e Nanquim comentando a obra:

Alack Sinner – José Muñoz e Carlos Sampayo

Alack Sinner foi um acontecimento no meu ano. Uma história que me pegou desprevenido e que foi crescendo com o seu desenrolar.

A combinação da arte de José Muñoz e o texto de Carlos Sampayo são o máximo que se pode pedir de uma obra noir. Recheado de referências ao universo do Jazz e Nova York do final dos anos 1970 e início dos anos 1980.

Na obra acompanhamos um detetive particular, Alack após ter saído, desiludido, da força policial. Uma história que poderia parecer de início como qualquer outra sobre violência, corrupção e crimes, passa a ser sobre a vida, sobre as complexidades e camadas de cinza da vida humana. Da condição humana.

Uma arte que me foi estranha inicialmente, me ganhou quando entendi a proposta expressiva da obra. Os traços reforçam os acontecimentos e os estados internos dos personagens.

Aqui temos o vídeo da época de lançamento pela editora Pipoca e Nanquim dando mais contexto à obra:

O Marinheiro que perdeu as graças do Mar – Yukio Mishima

Um dos últimos livros lidos no ano passado me trouxe uma impressão muito positiva da escrita de Yukio Mishima, autor japonês premiado e lido em todo o mundo. Cheguei tarde nesse autor, eu sei, mas suponho que nunca é tarde para conhecer boa literatura.

Aqui acompanhamos a história de Ryuji Tsukazaki (O marinheiro que perdeu as graças do mar), e sua relação com a família Kuroda. Fusako, a mãe e Noboru, o filho. Seu propósito de vida, lugar no mundo e relação com o feminino são discutidos à minúcia.

Temas como a descoberta da sexualidade na adolescência, a sensação de impotência e castração são discutidos aqui. Sem falar de toda a temática do luto e recomeço, presentes na personagem da mãe.

Recomendo aqui a entrevista concedida em 1969:

O livro de Areia – Jorge Luis Borges

Envergonhado de dizer que este foi o meu primeiro contato com a obra de Borges (mas não o único lido no ano, ao menos), tão elogiada mundo à fora. Pudera, suas influências passeiam pelas coisas que amo: Lovecraft, Poe e Kafka.

Essa coletânea conta com alguns dos melhores textos curtos que já li. Notadamente: “O Outro”, “Utopia de um Homem que está cansado”, “O Disco” e o texto que dá nome à antologia, “O livro de Areia”.

O estilo de Borges é muito conversacional, muito fluido e envolvente. Ele mistura fantasia e realidade muito bem, com um arcabouço de referências literárias interessantíssimas.

Recomendo esse trecho de uma entrevista concedida em 1980, onde Borges comenta sobre o amor e amizade:

O Oráculo da Noite – Sidarta Ribeiro

Primeiro de não-ficção que li no ano e já ficou como um dos melhores. A vasta pesquisa de Sidarta Ribeiro sobre a função e o funcionamento do sonho e do sonhar devem ser tidos como obra obrigatória em qualquer curso de Psicologia moderno.

Sidarta nos pega pela mão e conduz através da história e do papel do Sonho na cultura ocidental, desde civilizações antigas (Egito e Grécia, por exemplo), até os mais recentes estudos da neurociência. O mais interessante para mim: ele não descarta a psicanálise, mas sim a aproxima como um complemento dos conceitos da biologia, medicina, neurofisiologia e da própria neurociência.

Aqui vemos como o sonho molda a nossa experiência desperta. Me peguei particularmente fascinado com a temática de sonhos na antiguidade. Como seria a percepção de alguém no Paleolítico, ao acordar de um sonho vívido e se perceber de volta a sua cama?

Isso me lembra o famoso problema filosófico de Chuang Tzu (filósofo taoísta), que ao sonhar que era uma borboleta, passeando pelos campos que acabara de percorrer, vendo as mesmas coisas que vira durante aquele dia.

Ele acorda e se depara com a pergunta: “Quem sou eu?”.

“Sou um homem que sonhou que era uma borboleta? Ou sou uma borboleta sonhando que se transformou em um homem?”

Interessante notar que li essa obra na mesma época em que estava descobrindo as páginas de Sandman, outro primor dos quadrinhos escritos por Neil Gaiman, que explora o tema do Sonhar por outro ângulo. Definitivamente deve aparecer entre os melhores de 2023 (desde que eu consiga terminar a saga principal até o fim do ano).

Recomendo essa edição do Roda Viva, com a participação do autor:

Menções Honrosas:

Bom, essas foram as recomendações e destaques do ano de 2022 para mim. Ansioso para saber as suas melhores leituras do ano que passou e sempre aceito recomendações, deixe-as nos comentários.

Até a próxima,

Por Igor Banin

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HP Lovecraft e o Real em Psicanálise

Howard Phillips Lovecraft é um dos casos de autores que ganha mais notoriedade após sua morte. Cada vez mais, percebe-se a presença de elementos de sua obra literária em filmes, séries e livros.

Suas contribuições para a literatura de horror e ficção científica são notáveis, adicionando elementos típicos dos gêneros de fantasia. Alguns o comparam a Edgar Allan Poe, ao qual é atribuído a criação do gênero de Romance Policial.

Críticos e fãs costumam nomear o estilo de Lovecraft de Horror Cósmico, ou “Cosmicismo”, por suas histórias envolverem normalmente seres extraterrenos, monstros ou entidades tão antigas que estariam além da Compreensão humana.

Pensando nisso, a ideia aqui é fazer um paralelo entre o estilo de escrita verborrágica, recheada de adjetivos de Lovecraft com a noção de Real em Psicanálise.

Lovecraft, vida e escrita

Nascido em 1890 na cidade de Providence, Rhode Island no seio de uma família aristocrata da Nova Inglaterra, o pequeno Lovecraft foi criado em um ambiente confortável.

Seu pai morreu quando Lovecraft tinha apenas 08 anos de idade, após ficar internado, depois de ter uma crise nervosa em 1893 constantemente em clínicas de repouso. Suspeita-se que o pai tivesse contraído sífilis. Após a morte do pai, Lovecraft foi morar na casa de seu avô.

Seu avô era uma proeminente empresário industrial o que garantiu uma vida confortável para Lovecraft em seu início. Diz-se que a árvore genealógica de Lovecraft pode ser traçada até mais de 400 anos atrás. Sua família foi uma das primeiras a ter chegado aos Estados Unidos.

Após a morte do pai, diz-se que sua mãe desenvolveu um cuidado excessivo com o garoto. Posteriormente, Lovecraft afirma que esse zelo demasiado deixou marcas profundas em sua psiquê e seu relacionamento com o mundo. Lovecraft passava muito tempo em casa, por ter uma saúde frágil. Frequentou pouco a escola, o que o Ele sofria de poiquilotermia, uma raríssima doença que fazia com que sua pele fosse sempre gelada ao toque.

Tendo crescido na vasta biblioteca de seu avô, Lovecraft passou a venerar a cultura clássica e considerava a poesia como literatura de verdade. Para alguém que passava muito tempo em casa, com gosto pela leitura e escrita, não é de se admirar que tenha se tornado um escritor.

Howard Phillips Lovecraft em junho de 1934

Mesmo após a morte do avô, e de sua mãe, com o dinheiro escasso, H.P. não aceitava trabalhar de maneira contínua. Ele se considerava um cavalheiro aristocrata, e ele entendia que trabalhos que não fossem em jornais ou revistas consideradas adequadas, estavam abaixo dele.

Lovecraft faleceu em 15 de Março de 1937, aos 46 anos de idade.

Foi com o esforço de amigos próximos que fundaram a editora Arkham, e começaram a publicar os textos de Lovecraft em formato de livro, que sua obra ficou mais conhecida do público geral. Até então, seus escritos eram conhecidos por uma audiência mais restrita, principalmente de leitores de revistas Pulp, como a Weird Tales.

Weird Tales, 1922

Seu impacto na literatura de horror e ficção científica é profundo, influenciando autores como Neil Gaiman e Stephen King. Para além disso, sua influência em obras cinematográficas de diretores como Stanley Kubrick e John Carpenter é notável, como no filme Enigma de Outro Mundo (1982), de Carpenter.

Lovecraft durante muito tempo teve uma postura racista e xenófoba em seus contos. Especula-se, inclusive, que muitas das descrições dos monstros nas histórias de Lovecraft tenham sido baseados nos preconceitos íntimos do autor. A posição da aristocracia decadente do Nordeste dos Estados Unidos, a reclusão constante no início da vida, bem como as rápidas mudanças sociais que vinham acontecendo à época no continente americano, certamente influenciaram a visão de mundo de H.P.

Outro ponto importante de se notar nas histórias do autor é a pouca ou nenhuma participação de mulheres nos contos. Por toda a obra de Lovecraft, percebe-se um desprezo pela raça humana de maneira geral, sendo considerada sempre inferior ao cosmos.

Curiosamente, ele se casou com Sonia Greene, uma judia que o convenceu a mudar-se para Nova York, lugar onde eles moraram por pouco tempo, antes de sua separação amigável.

Algumas características importantes da escrita de Lovecraft que também são importantes.

  1. O arcaísmo patente no uso de terminologias. O texto parece, em uma primeira olhada, ter sido escrito no século XIX, tamanho o uso de termos fora de uso empregados por Lovecraft.
  2. O uso indiscriminado de adjetivos quando ele busca descrever os monstros/entidades em suas narrativas.

Essa segunda característica é muito criticada nos meios acadêmicos, sendo visto como uma limitação criativa na escrita de Lovecraft.

Um exemplo claro do estilo “Lovecraftiano” se encontra no texto Ele (1926/2017):

“… e as multidões humanas que fervilhavam pelas ruas estreitas eram seres atarracados, forasteiros escuros com caras abrutalhadas e olhos apertados, estranhos traiçoeiros sem sonhos e sem nenhuma relação com o cenário a seu redor, enigmáticos para os descendentes dos antigos habitantes, que amavam as belas alamedas verdes e as aldeias da Nova Inglaterra com suas torres em formato de agulha” (Lovecraft, p. 62).  

A noção de Real na Psicanálise

O Real na psicanálise não se trata da realidade. Talvez, seria melhor dizer que o Real é tudo aquilo que tem que ser extraído da realidade para que ela faça sentido.

O Real se trata daquilo que é inominável, indizível, impensável. No fundo, tudo aquilo que nos confronta com o nosso caráter eternamente faltante. Segundo Lacan (1953/2005): “O real é ou a totalidade ou o instante esvanecido. Na experiência analítica, para o sujeito, é sempre o choque com alguma coisa, por exemplo, com o silêncio do analista” (p. 45).

Simbólico e Imaginário tentam dar conta do Real, do furo, sendo que “o Real será definido como o que escapa ao Simbólico, o real como trauma” (Chaves, 2009, p. 43).

Uma boa definição do Real, a meu ver é dada por Fink (2018):

“O Real, tal como o apresentei até aqui, é aquilo que ainda não foi posto em palavras ou formulado. Podemos pensar nele, em certo sentido, como a ligação ou o elo entre dois pensamentos que sucumbiu ao recalcamento, e que precisa ser reestabelecido” (p.61)

Lacan dizia também que o Real é como o “muro da linguagem”, o limite que resta de não-simbolizável. A morte, por exemplo, é algo do Real. A experiência de perder alguém próximo costuma vir acompanhada da “falta de palavras”. Não existem palavras que deem conta desse sofrimento.

“Ainda nessa qualidade, em sua posição tópica, ele se caracterizará como exsistente (situado fora de todo campo demarcável). Finalmente, e na medida em que lhe é assim conferido o estatuto de um vazio, ele se articulará numa representação “borromeana” com os vazios constitutivos do simbólico e do imaginário” (Kauffman, 1998, p. 445)

Mais a frente na obra Lacaniana, o autor vai formalizar a tríade, Simbólico-Imaginário-Real, a partir do chamado Nó Borromeano, uma formação topológica que consiste de 3 aros interligado, de tal modo que se um se desvencilhar os outros também o são. Assim é o sujeito para Lacan.

O nó Borromeano

O Real em Lovecraft

Os monstros “Lovecraftianos” não apresentam forma, suas formas não podem ser compreendidas pela raça humana. Muitas vezes a geometria de construções alienígenas são consideradas estranhas e incompreensíveis para nós (Lovecraft, 2017).

A própria palavra “Cthulhu”, oriunda do conto “O Chamado de Cthulhu” (talvez seu texto mais conhecido, adaptado para uma infinidade de jogos, RPG’s, etc) publicado em 1928, seria impronunciável. Segundo ele, “a nossa conformação fisiológica não permitiria que o pronunciássemos corretamente” (Lovecraft, 2017, p.120). Não seria um idioma para a laringe humana.

Em Dagon (1919/2017), seu primeiro conto publicado profissionalmente:

“Então, de repente, eu vi. Com apenas uma leve agitação para marcar sua ascensão até a superfície, a coisa deslizou para fora das águas escuras. Tão vasto quanto Polifemo e horrendo, ele dardejou, como um estupendo monstro de pesadelos, contra o monólito, sobre o qual lançou seus gigantescos braços escamosos, enquanto curvava a cabeça hedionda e dava vazão a certos sons compassados. Naquele momento, pensei ter ficado louco” (Lovecraft, p. 26).

Interessante notar que isso se alinha com a noção de Real que escapa a Simbolização. O inominável e impensável vem de encontro aos personagens nos contos de Lovecraft. O horror, muitas vezes se baseia no desconhecido, na incerteza do que está lá. Para além disso, o fato de não haver palavras que descrevam a visão monstruosa denota um encontro com o Real: “O efeito da visão monstruosa era indescritível, já que alguma violação demoníaca das leis naturais parecia uma certeza desde o começo” (Lovecraft, 1936/2017, p. 209).

A incerteza é algo que invariavelmente estará presente nas nossas vidas, lidar com ela e produzir algo a partir disso é um dos objetivos centrais da análise, sempre apontando para onde está o desejo do sujeito.

O Real se impõe como um muro da linguagem para todos. E é nessa direção que é entendida a clínica psicanalítica lacaniana na atualidade. Levamos o sujeito a se confrontar com sua possibilidade maior de escolhas (Forbes, 2014). Com a mudança do laço social, os referenciais tidos como certos no passado não funcionam mais, com isso, temos que nos reinventar constantemente. A mudança na clínica psicanalítica, passa então por, não mais explicar o sintoma (Clínica da Simbólico), mas por implicar (Clínica do Real) o paciente em seu sintoma e em seu desejo.

Imagino o que pensaria Lovecraft se caminhasse entre nós nos dias de hoje. Talvez ele caminhe.

Até a próxima,

Igor Banin

Referências Bibliográficas

Chaves, W. (2009). Considerações a respeito do conceito de Real em Lacan. In Psicologia em Estudo. (pp. 41-46, v. 14). Maringá.

Fink, B. (2018). Introdução clínica à psicanálise lacaniana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Forbes, J. (2014) Psicanálise – A clínica do Real. Barueri: Manole.

Kauffman, P. (1998) Real. In Dicionário Enciclopédico de Psicanálise. O legado de Freud e Lacan. (pp.444-445) Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Lacan, J. (1953/2005). O simbólico, o imaginário e o real. Em Nomes-do-Pai (T. André, Trad., pp. 11-53). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Lovecraft, H.P. (2017). H. P. Lovecraft: medo clássico. Rio de Janeiro: Darkside Books.

Lovecraft, H.P. (2017). Contos, Volume 1 / H. P. Lovecraft. São Pauo: Martin Claret.

Reflexões sobre o Aqueronte: Como alcançar o inconsciente em uma análise.

Flectere si nequeo superos, acheronta movebo! É com este verso, retirado do clássico da literatura escrito por Virgílio, A Eneida, que Sigmund Freud decide abrir a obra que dá início a história da psicanálise, A interpretação dos sonhos. Lançada sua primeira edição com a data de 1900, Freud demonstrou a intenção de fazer com que seu livro abrisse um novo horizonte para o vigésimo século que se iniciava e assim o foi.  A frase escolhida pelo primeiro psicanalista se encontra no verso 312 do livro VII do clássico latino e é normalmente traduzida como: “Se não posso dobrar os céus, moverei o inferno.” Interpreta-se deste modo que Freud estava se referindo a “mover” a parte mais profunda de nosso psiquismo, isto é, o inconsciente, uma vez que seria impossível atingir as neuroses por via da consciência. No entanto convido ao leitor a refletir um pouco mais sobre isso.

     A começar pela tradução, podemos pensar que Freud não se referiu propriamente ao inconsciente quando usou esta frase como epígrafe de seu livro. Virgílio não usou a palavra inferno, mas sim o Aqueronte, o rio que leva as almas ao submundo de Plutão. Ora, desta forma podemos interpretar que Freud estava se referindo àquilo que é o caminho para o inconsciente, ou seja o próprio sonho, assim como os chistes, os lapsos e os atos falhos. Outro grande problema  que a palavra inferno pode provocar é a associação de que o nosso inconsciente é feito somente de tudo aquilo que é recalcado por ser interpretado pela consciência como ruim, feio, tenebroso ou socialmente não aceito. Esse tipo de interpretação é aquela que alguns acabam fazendo quando associam erroneamente o id freudiano ao conceito da psicologia analítica chamado sombra, ou acabam tratando a primeira e segunda tópica da teoria psicanalítica por iguais.  Isto acontece porque acaba prevalecendo a ideia cristã de inferno. Esta ideia do inferno como um lugar de punição eterna para os pecados e cheio de labaredas de fogo foi fixada ainda mais no imaginário do ocidente graças a Divina Comédia de Dante Alighieri.

     Segundo Petrella (2009), O inferno greco-romano, não seria um lugar de castigo por atos que possam ter ofendido os deuses, uma vez que essas punições eram dadas aos humanos ainda em vida. O Hades então, seria um lugar monótono sem dor, mas também sem nenhuma expectativa de alegrias futuras. A autora ainda aponta que a frase que inicia este artigo é expressa pela deusa Juno quando esta decide evocar Alecto ao ter um pedido de ajuda negado por Júpiter. O nome da fúria pode significar “aquela que não descansa” (assim como as mensagens do inconsciente).  Podemos conjecturar que em sua genialidade Freud nos dá indícios da técnica psicanalítica de acesso ao inconsciente ao escolher tal verso como epígrafe de sua mais importante obra.  Em contato com paciente, não devemos focar propriamente nos seus sintomas e mazelas para chegar ao seu inconsciente. Devemos pois, “mover o seu Aqueronte” em um novo curso usando associações livres e interpretações para ressignificar a sua história.

O rio que leva ao inconsciente pode ser usado como metáfora para os traços mnemônicos que vão se formando no desenvolvimento psíquico do sujeito e criam um caminho onde sua libido possa circular.

acheronte
A travessia de Caronte, por Alexander Litovchenco. (imagem coletada da internet)

O Édipo é estruturante e estrutural

Tentarei aqui de modo muito sintético demonstrar como se forma os afluentes de nosso Aqueronte psíquico que vão servir de base para as três estruturas clínicas de personalidade que Lacan aborda no seu quinto seminário (1999[1957-1958]).

Lacan recebe a influência de Saussure, Jakobson e Lévi-Strauss para apoiar a tese de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Essa linguagem trata-se de uma articulação dos significantes com os eixos sintagmáticos e para-sintagmáticos da metáfora e metonímia. A linguagem é aquela que pode conduzir uma histérica a uma conversão, por exemplo (ALTOÉ S; MARTINHO M, 2012).

A linguagem é também responsável por encher de libido o corpo do bebê através de sua relação, primeiramente com a mãe, e depois com outros sujeitos.  É nesse momento que começam se formar os traços mnêmicos que vão estruturar três posicionamentos possíveis diante do mundo: A psicose, a perversão ou a neurose. Estes posicionamentos se formam em etapas pelas quais todos os sujeitos passam. A resolução destas etapas é aquilo que fará com que o sujeito se fixe em uma ou outra estrutura de personalidade.  A essas etapas Lacan dividiu como sendo os três tempos do édipo.

O édipo é pré-histórico, pois os pais já conceberam ideias sobre o bebê antes mesmo dele ter nascido. É a partir do édipo dos pais que o édipo do sujeito se formará. No primeiro tempo do édipo existem três personagens: a mãe, a criança e o falo. É importante fixar que o falo não é a parte anatômica sexual masculina, mas é sim, o significante inconsciente que vai preencher a dor da falta. Neste tempo, a criança entra em uma relação de simbiose com a mãe e experimenta ser o seu falo. Sem diferenciação do eu e do outro existe uma negação da castração e podemos dizer que o primeiro tempo é o tempo da psicose, que dará base as psicopatologias da paranoia e da esquizofrenia.

No Segundo tempo o pai é introduzido junto aos outros três personagens do tempo anterior. Ele vem para quebrar a simbiose entre mãe e bebê. Isto para o bebê é um momento de horror. A criança deixa de ser o falo, o ego ideal, e passa a ver o pai com falo, seu ideal de ego. O do Nome do Pai, ou seja, A Lei, é introduzida na relação. A criança passa então a perceber de que existem regras que devem ser cumpridas e que ela não é mais o centro do mundo e isso é algo muito difícil de ser introjetado. A criança tenta fingir que a Lei não existe, mesmo sabendo que ela está ali em sua frente. Existe então a ideia de desmentir a castração, podemos assim chamar o segundo tempo de o tempo da perversão. A função paterna é determinante neste tempo, pois se a criança percebê-la como extremamente autoritária poderá ser mais facilmente desmentida. O pai déspota é o pai da horda primeva que exerce direito sobre todas as fêmeas. Ele “É” a Lei ao contrário da função paterna democrática na qual o pai “TEM” a Lei e se comporta como representante dela.

No terceiro tempo os personagens são os mesmos, contudo passa-se ter a ideia de “ser o falo” para “ter o falo”. Isto não é algo que se é, mas algo que se tem. Se é algo que se pode ter, também é algo que se pode perder. Isto se dá através do pai, que insere a criança no mundo simbólico. Ele mostra para ela que ele também é castrado. A criança percebe que seu pai não é a personificação da lei, mas um representante dela que vai mostrar a criança que ela também pode sobreviver a falta. Assim, o sujeito pode aceitar a castração de duas maneiras: A primeira pode ser a de forma nostálgica. O sujeito sabe que não é o falo, mas seu inconsciente recorda nostalgicamente que um dia ele foi. Fazendo assim com que ele tenha uma estrutura neurótico-obsessiva. A outra maneira é quando o sujeito sabe que não é o falo, mas se sente injustiçado e lutará a vida toda para sê-lo. Esta é a estrutura histérica. Podemos então nominar o terceiro tempo como o tempo da neurose. É sob a influência destas estruturas que o sujeito forma seu jeito de lidar com a falta primordial que existe no âmago de cada psiquismo e é através das experiências no jogo fálico que a pessoa forma os caminhos pelos quais sua libido vai circular.

 

O analista no papel de Caronte, o barqueiro.

Cada estrutura tem seu mapa de traços mnêmicos que darão um modo de discurso em relação ao outro. É através desse caminho que o analista fará o manejo clinico de cada estrutura. Se na nossa metáfora o Aqueronte pode ser visto como o caminho que leva ao inconsciente, podemos também dizer que o analista pode ser visto como Caronte, o barqueiro mitológico que leva os mortos através do rio. Assim como Caronte recebe seus dois dobrões como pagamento, o analista recebe seus honorários para levar o sujeito pelo caminho do autoconhecimento. Seu barco, é a transferência.  Conhecida como “o motor da análise” a transferência se torna o veículo principal pelo qual podemos fazer interpretações e diagnósticos em psicanálise. Contudo, devemos tomar muito cuidado em fazer interpretações sistemáticas da transferência, pois isto contribuiria para reforçar um vínculo entre analista e analisando baseado na fase do espelho. Junto às interpretações transferenciais devemos também adicionar castrações simbólicas para fazer com que o analisando passe do nível do imaginário da fase do espelho para o nível simbólico. Como nos elucida Zimerman:

Para Lacan, a psicanálise consiste em um processo dialético, pelo qual o paciente traz a sua tese, o analista propõe uma antítese, daí surge uma síntese (insight) que leva a novas teses, sendo que a transferência somente surgindo quando, por alguma razão, esse processo dialético é inoperante. (ZIMERMAN D, 2010 p. 335)

Deste modo podemos perceber que a transferência não é um barco que vai à deriva, mas necessita de que o barqueiro esteja sempre atento ao manusear o leme para que o caminho através da via pluvial do inconsciente seja bem percorrido. Por meio desta reflexão pode-se notar a importância de diagnosticar em qual estrutura clínica o sujeito se encontra. Desta forma é possível saber a maneira como o processo analítico se dará. Estudar as três estruturas de personalidade torna-se basilar para compreensão da psicopatologia psicanalítica. Colocando didaticamente o sujeito em uma destas estruturas podemos entender como este é capaz de lidar com as frustrações cotidianas. Se no discurso de um paciente consigo notar que em seus relacionamentos interpessoais ele demonstra uma constante insatisfação e que está sempre numa repetição de sedução sem chegar ao ápice, usando seus sintomas como um monumento, posso então inferir de que sua estrutura é uma estrutura histérica, uma vez que percebi que no terceiro tempo do édipo esse sujeito se comportou como um “militante do falo.”  Do mesmo modo, se noto no discurso do paciente uma completa negação da realidade e que não há uma distinção entre seu Eu e o Outro, posso pensar em uma estrutura psicótica e assim por diante. É importante frisar de que na clínica contemporânea não é comum encontrar estruturas de personalidade “puras”. Acabamos sempre notando pequenos traços das outras estruturas, mas que nunca vão preencher todo o psiquismo, fazendo assim com que sempre haja uma estrutura principal.  Como terapeutas em contato com o paciente vamos dobrando e esmiuçando seus sonhos, lapsos e atos falhos. Vamos movendo seu Aqueronte, e podemos assim, chegar ao seu inconsciente.

Veja Também: A Psicanálise hoje

 

REFERÊNCIAS

ALTOÉ S; MARTINHO M. A Noção de estrutura em Psicanálise. Estilos da Clínica. São Paulo, v. 17 n.1 p.14-25, 2012.  Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/estic/v17n1/v17n1a02.pdf

LACAN J. O seminário 5; As formações do inconsciente. (1957-1958) Rio de Janeiro, J. Zahar ,1999.

PETRELLA S. Acheronta Movebo: El Infierno y el inconsciente; Virgilio y Freud. Exenzplaria 7, P. 95-109, Universidad de Huelva,2009. Disponível em: http://rabida.uhu.es/dspace/bitstream/handle/10272/1837/b15205101.pdf

ZIMERMAN D. E. Fundamentos psicanalíticos: teoria, técnica e clínica- uma abordagem didática.  Porto Alegre: Artmed, 1999.

Por Bruno de Brito