Tempo, marcado pelos números em folhas de papel dependurado em algum lugar próximo a você. Um período que termina e outro que se inicia. Num momento de pausa para reflexão, proponho uma reflexão diferente. Não aquela que usualmente você faria sobre metas que não foram cumpridas por um fator chamado Vida, mas aquela que estamos precisando.
Como buscamos o que precisamos?
Neste momento interconectado, fazemos como qualquer um, abrimos uma página de busca no Google e digitamos o que desejamos saber.
Você consegue imaginar quais foram as palavras mais se buscadas em 2019?
O ano em que a polarização ficou mais evidente, enquanto muitos de nós, usou palavras fortes e caluniosas de enfrentamento para defender posicionamentos e tentar mudar as crenças das demais pessoas. Num momento de tanto embate e desgaste mental para quer dizer como os outros devem viver, pensar e sentir, o Google nos trouxe num vídeo as palavras mais buscas em 2019 foram: Existem heróis de verdade?
Se você clicou no vídeo acima, dois minutos de vida que valem o investimento, você deve ter visto várias pessoas reais apenas almejando uma única coisa: existir.
Existir, como você é neste exato momento, com as potencialidades que possui e talvez não faça a menor ideia e as fraquezas que tenta esconder na maioria das vezes desnecessariamente. Fazendo aquilo que faz ou almeja fazer, principalmente, sem medo de ser julgado. Julgado somos todos. Todos sem exceção, mas a frente neste texto ficará bem evidente.
Parece simples, não é mesmo. Leio com certa frequência que é fácil, que para existir basta fechar seus olhos, inspirar profundamente e deixar seu pulmão encher de oxigênio. Mas, sempre tem o, mas. Todos nós encontramos em diversos de obstáculos sejam físicos ou mentais, dentro de si e no mundo exterior, as vezes mais ou menos intenso, mas em todos os casos a dor sentida é real.
Porque estamos no Janeiro Branco o mês da consciência da Saúde Mental, esta seja a reflexão que necessita maior atenção, a sua atenção.
“Este é seu Ego falando“
Se utilizamos como base o 1º Parágrafo da Constituição Brasileira ou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, está tudo descrito, todos temos direito garantido do livre pensar e de livremente nos expressar.
Porém quando nós nos expressamos por palavras e/ou atitudes somos categorizados, como produtos numa gôndola de supermercado. Os produtos mais caros e com maior investimento de propaganda ficam nas prateleiras que está ao alcance dos olhos, e assim se segue até que os produtos cujo investimento é menor ficam nas prateleiras superiores ou na inferior quando o preço é menor.
Você não é um produto, não é mesmo, você é uma pessoa, mas é categorizado pela cor da pele, pela roupa que veste, pela aparência e pela importância. Quando aquilo que é mais precioso, que faz de você ser uma experiência única é deixado em segundo plano. Exigem seu silêncio antes mesmo de deixá-lo falar, o tempo passa e as vezes você esquece a sua própria voz ou que ao menos tem uma voz.
Posso ouvi-lo enquanto lê este trecho neste momento “este texto está envolto de posicionamento político com viés X ou Y”, assim como várias pessoas foram para Youtube querendo desqualificar o filme Dois Papas (2019, Netflix) pelas posições políticas do diretor. Como estamos num momento de reflexão um convite honesto, deixe as armas e as foices de fora e permita-se e continuar lendo este texto.
Podemos nos abrir ao diálogo mesmo discordando sobretudo, é assim derrubando muros imaginários e construindo novas possibilidades podemos inclusive descobrir que no fundo todos queremos apenas a mesma coisa: co-existir.
“Uma resposta certa para tudo“
Então você está zapeando seu catálogo Netflix e vê o título: Dois Papas. Fujas das primeiras impressões, não precisa ser católico, religioso ou ateu para poder desfrutar de um filme por duas horas. Basta assistir, sem bandeiras e investir a sua atenção numa aula diferente, uma sobre usar aquilo que você tem deixado desligado há algum tempo: a habilidade de ouvir. Porque é quando se ouve que a comunicação começa.
Marshall B. Rosenberg (1934/2015), psicólogo americano com PHD na Universidade Madison em Wisconsin, em sintonia com os movimentos dos direitos civis americanos propôs um treinamento conhecido como “Comunicação Não-Violenta” (1999) que serve de guia para resolução de conflitos em mais de 65 países, é utilizada em tribunais de Justiça na vara da família, na Justiça Restaurativa e por situações de risco pela Policia Militar de São Paulo. O que a CNV (assim como é conhecida a Comunicação Não-Violenta) almeja é aquilo que o próprio Marshall definiria nas primeiras páginas do livro: “uma forma de comunicação que nos leva a nos entregarmos de coração.”
O diretor Fernando Meirelles (“Cidade de Deus” e “O Ensaio da Cegueira”) e o roteirista Anthony McCarten (“Teoria de Tudo” e “Bohemian Rhapsody”) pretendiam preencher lacunas. Filme que fica numa janela entre a realidade e ficção. Teria então estas duas pessoas de posicionamentos tão diferentes tido esta conversa e se houvesse como teria sido? Então, num jardim eles se encontram, cada um deles tem um pedido a fazer ao outro, curiosamente ambos querem a mesma coisa, desistir daquilo que mais lutaram para ter, mas estranhamente ambos precisam um do outro para ter validada sua solicitação.
O que eu quero em minha vida é compaixão, um fluxo entre mim mesmos e os outros com base numa entrega mútua, do fundo do coração.
Marshall B. Rosenberg, Ph.D.
“Seus sapatos são uma crítica”
Não há spoiler em fatos, um Papa renunciou e outro teve que ser eleito. Talvez tentar entender os porquês seja a parte menos interessante.
O Papa Bento XVI fora julgado e condenado por muitos, pela sua aparência austera e pouco afetiva, momentos após sua eleição, um retrogrado que não faria as mudanças desejadas pelos fiéis e desgarrados do catolicismo. Os anos que seguirão trouxeram à tona as muitas denúncias de pedofilia encobertas em vários países e o Vatileaks, um escândalo de proporções nunca vistas, envolvendo lavagem de dinheiro e o vazamento de documentos que comprometia a idoneidade da Cúria Romana – os cargos mais importantes da Santa Fé no Vaticano. Chamavam-no de Papa Nazista, de distante e incomunicável com seus discursos em latim e suas incontáveis encíclicas. Em meio a tudo isto, um ato que deixaria até as pessoas que não se interessavam pelo assunto em descrença – a renúncia a cadeira de São Pedro.
Não julgueis, para não sejais julgado. Pois, com o critério com que julgardes, sereis julgado.
Mateus Capitulo 7. Versículo 1
Quando se abdica daquilo que se pensa ser seu destino, que passara anos buscando esta posição, um dos cargos mais poderosos do Mundo, todos nós podemos aprender com isto. Aprender sobre vulnerabilidade, sobre limitações e aceitar como somos, aceitar que é chegada a hora de ter que admitir que o que se deve abandonar.
Anos antes de Benné Brown escrever em seu livro “A Coragem de Ser Imperfeito” (2016), Marshall já apontava a vulnerabilidade como a raiz causa de toda a violência, a nossa incapacidade de aceitar nossa própria vulnerabilidade e a incapacidade de perceber de forma empática a vulnerabilidade do outro.
Longe das frases prontas que você reposta em suas redes sociais, o conceito de empatia em Psicologia nasceu na abordagem da Terapia Centrada no Cliente de Carl Rogers (1902/1987), psicólogo americano também formado na Universidade Madison em Wisconsin e indicado ao Prêmio Nobel da Paz em 1987. Então, vamos tirar o elefante branco da sala: empatia não é capacidade de estar no lugar do outro, isto é fisicamente impossível.
Empatia é a capacidade de mesmo você estando na sua pele, sendo quem você é sentindo o que você sente, você consegue ouvir o outro e perceber o que esta pessoa está falando e sentindo quando ela está se expressando e dizendo o que é importante, para ela.
“Dizem que Deus elege um Papa para corrigir o anterior”
Caro leitor, trabalhei arduamente para evitar spoilers. Como temos os dois maiores atores em atividade em cena, não se sinta impedido de ver o filme mesmo que depois de ler o texto. Portanto, agora que temos um cenário perfeito: a Capela Sistina, dois homens em seu vigor intelectual, que se permitem expressarem e ouvir atentamente o ponto de visto um do outro, nos apresentam uma de uma receita de Comunicação Não-Violenta.
Comunicação Não-Violenta – Modo de Fazer
- Observar: Bento XVI, mesmo certo de suas convicções, quer ouvir o cardeal Bergoglio. Pergunta, presta atenção e gentilmente o ouve. Pontua, questiona, diz claramente que não há concordância, mas não demonstra julgá-lo por suas convicções. Não julgar aqui não se trata de algo religioso, como um mandamento, mas construir uma percepção de si e do outro para estabelecer comunicação.
- Sentimento: Quanto mais o diálogo avança, o Papa Bento XVI percebe seu sentimento de coragem, que tudo que aconteceu é uma validação daquilo que ele esperava sentir quando fosse chegado o momento.
- Necessidade: Havia algo que consumia Bento XVI há semanas, uma necessidade de expor sua vulnerabilidade, pois sua decisão havia sido tomada ele não sentia capaz de se manter em sua posição à frente da Igreja Católica.
- Pedido: Quando o sentimento se encontra com a necessidade, é hora de fazer um pedido. Algo que acontece no filme que o Papa Bento chama de dilema espiritual, dado que ele confessa que deseja renunciar, mas para isto, precisa do Cardeal Bergoglio, que atônito fiz: “Se você fizer isto, estará danificando o Papado para sempre”, e Bento responde: “E o mal que eu farei se eu permanecer?”
O Papa do Fim do Mundo
Em entrevista ao Fantástico em 2014, o Papa Francisco (real-oficial, não resisti), disse que para sua saúde mental não vivia no apartamento Papal, porque ele não gosta de viver sozinho “então por razões psiquiátricas, eu moro na Casa Santa Marta com bispos, padres, visitantes não católicos. Almoçamos juntos no mesmo refeitório e conversamos”.
É impossível viver sozinho, mesmo quando estamos amalgamados com nossos celulares. Apesar de passarmos muito tempo mandando emoji e figurinhas para nossos grupos de relacionamento, estamos de fato nos comunicando?
A misericórdia é a dinamite que explode os muros.
Cardeal Jorge Bergoglo no filme Dois Papas
Comunicação necessita de embate, mas de forma boa. Desclassificar, categorizar, diminuir, simplificar e por fim excluir é quando o 5G cai para internet discada da comunicação.
Quando fazemos isto, o que acha que iremos receber? A beleza está na diferença, naquilo que faz o outro brilhar e quando vimos o reflexo em nós. Pensar que se sabe tudo sobre os seres humanos, te limita a conhecê-los verdadeiramente.
Saúde Mental é como um alimento, não basta nutrir, tem que ter gosto e dar prazer ao comer. Como saber se é bom ou ruim sem experimentar? Então, experimente: o divergente, o contraditório que há em si e no outro. Quando você pensa ser completo em si, perde a possibilidade de perceber a sua incompletude, pois sempre há um outro que pode dizer aquilo que você não pensou e fazer você sentir o que não sentiu.
Permita-se a ouvir suas necessidades e seus sentimentos e assim reconhecer que o outro também tem necessidades e sentimentos. Desejo que alcance uma boa Comunicação Não-Violenta, assim como Dois Papas dançando tango dentro dos muros do Vaticano.
Referências consultadas
DOIS PAPAS (Two Popes). Direção: Fernando Meirelles: Netlflix, 2019. (125 minutos).
ROGERS, CARL. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2019. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Carl_Rogers&oldid=56561006>. Acesso em: 25 out. 2019.
ROGERS, Carl R. Tornar-se Pessoa. 6ª Ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
ROSENBERG, MARSHALL. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2019. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Marshall_Rosenberg&oldid=56390677>. Acesso em: 3 out. 2019.
ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais I Marshall B. Rosenberg ; [tradução Mário Vilela]. – São Paulo: Ágora, 2006.
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Lista de Filmes e Séries Para Amantes da Psicologia | Sociedade dos Psicólogos · 20 de outubro de 2021 às 18:25
[…] Dois Papas (2019) […]