Game of Thrones chegou ao fim.

Durantes anos, uma legião de espectadores assistiram na HBO e compartilharam suas opiniões através de inúmeras teorias, memes e spoilers dos episódios tentando prever quem ascenderia ao Trono de Ferro.

Há uma década antes de ser o seriado mais assistido/pirateado da história recente, inúmeros e ávidos leitores clamavam por uma adaptação das Crônicas de Gelo e Fogo, publicação de uma série dos atuais cinco e pretensos sete livros escritos por George R. R. Martin, jornalista de formação, escritor desde da década de 70 de ficção cientifica, terror e fantasia e roteirista de series de TV entre os anos 80/90.

O autor estava cansado de ver seus enredos anteriores mutilados para servir ao propósito comercial dos produtores de TV. O objetivo inicial de Martin com suas Crônicas era contar uma história que não pudesse limitar-se por questões geográficas, introdução de personagens e principalmente por prazo de entrega. O último livro da saga foi lançado em 2011. Nos anos que se seguiram, o autor produziu contos, novelas e livros dentro do mesmo universo, seguindo o seu projeto original enquanto a série estava indo por outros caminhos.

Algo em particular despertou o fascínio do público tanto nos livros quanto na série. Quando se pergunta ao seduzido espectador o porquê gosta do Universo de Game of Thrones, a resposta comumente é a mesma: não há a dicotomia, que é tão habitualmente é utilizada nas histórias de gênero, ou seja, nenhum personagem essencialmente do Bem ou do Mal. Dentro deste contexto qualquer personagem pode fazer uma coisa abominável com o objetivo de fazer ‘o melhor para o bem de todos’.

As Crônicas de Gelo e Fogo são um tratado sobre o discurso, a habilidade de colocar em palavras as estratégias sem dizer qual é o próximo passo aos seus oponentes. O Jogo dos Tronos é muito mais do que uma disputa para ver quem governará os Sete Reinos, é um jogo das palavras.

Alerta de Spoilers

Este texto foi construído com o objetivo de introduzir dos conceitos do um outro livro, Comportamento Verbal de B. F. Skinner, por isto, utilizei alguns diálogos dos livros/série sem revelar nenhum detalhe da trama. Devido a crescente decepção no final com a série, neste texto exponho argumentos sobre que lições podemos aprender sobre expectativa versus realidade.

Sala das Faces, na Casa do Preto e do Branco. É sim, está na foto sou eu.

Você não sabe nada, Jon Snow.

Ygritte, 2º Ep. 7º Temp.

Quando bem escritas, obras de ficção nos apresentam personagens com coerência narrativa, cujas ações/emoções sempre estão no volume máximo ou mínimo e categoricamente com efeito distorcido. Um bom exemplo de personagem coerente passível de análise psicológica é Hamlet, tragédia escrita por Willian Shakespeare, que posteriormente foi analisada pelo psicanalista Ernest Jones no livro ‘Hamlet e o Édipo’ (Ed. Zahar 1970).

As Crônicas de Gelo e Fogo é uma obra ficcional, que é contada pelo ponto de vista do personagem que está narrando o capítulo. Os entendedores sabem que para ter uma visão panorâmica da história é necessário montar um quebra cabeça intricado. Nos livros como a narrativa esta em primeira pessoa, em alguns capítulos temos um vislumbre do que se passa dentro da mente de um personagem quando este está pensando. No capítulo seguinte, outro personagem assume a narrativa, novas informações são inclusas na história, e isto fornece mais dúvidas do que certezas sobre, digamos assim, o caráter dos personagens. Especificamente na Dança dos Dragões, quando os acontecimentos são interrompidos apresentam nuanças jamais vistas dos personagens, vide exemplo Lord Varys.

No caso da série de TV, a complexidade ainda é maior, pois os espectadores tem uma visão ampla, com pontos de vistas diferentes da mesma cena sendo contada ao mesmo tempo. Como parte do entretenimento é tornar a história imprevisível e não há tantos diálogos expositivos, o espectador é capturado para dentro do episódio através da visão de um dos personagens. Quanto mais coesa e coerente a narrativa é, mais seus espectadores conseguem manter a suspensão de descrença, a capacidade de assimilar os acontecimentos da historia sem perceber, como dizem, ‘que algo de errado não esta certo’.

“O homem que dita a sentença deve brandir a espada.”

Ned Stark, 1º Ep. 1º Temp.

Na Psicologia Comportamental, B. F. Skinner em estudos no seu laboratório, percebeu que o quê falamos também expressa comportamento. Isto pode parecer se tratar da língua materna e da aprendizagem por fonemas (sons), mas é um pouco mais complexo do que isto, há uma correlação entre o conteúdo e a forma.

Segundo Skinner, o comportamento verbal é comportamento operante, agindo sobre o ambiente e sofrendo as consequências da alteração que provoca nele. Estas consequências – como o reforço e a punição – determinarão a probabilidade de emissão futura da classe de respostas que integram o operante (Passos, 2003). Porém isto é compartilhado com uma comunidade social constrói esta mediação moldando as ações de seus membros para poderem ensinar outros membros como verbalizarem efetivamente através de formas apropriadas de ação (Vargas, 2007).

“A humanidade age sobre o mundo, e o modifica, e é mudada por sua vez, pelas consequências de suas ações

Skinner, Comportamento Verbal

Através da evolução genética e organização social, ensinamos e praticamos a linguagem como parte do nosso conjunto de comportamentos emitidos. Ressalto que o contexto de análise deva considerar o conjunto dos comportamentos verbais e não verbais para uma avaliação, e com isto, evitar descontextualização.

Imagine que ao aprender a falar a sua primeira frase uma criança diga: “o céu é azul”, o comportamento fora emitido, porém este será validado assim que passar pela aprovação em conteúdo e contexto, ou seja, sua mãe respondendo: “sim o céu é azul”. Nosso indivíduo pode continuar repetindo sua fala sobre o céu, mas se a comunidade ao seu redor não concordar com o que foi dito, ele terá que reavaliar sua fala até que esteja readequada. Você pode me dizer que nada mudará a cor do céu, isto é fato; mas não é exatamente típico um adulto puxar uma conversar dizendo ‘o céu é azul’.

Algo em Game of Thrones fornece substância aos personagens e que conecta com sua linhagem e trajetória. Seja por autoafirmação ou para se posicionar no jogo ou em diálogos com outros personagens que fazem sempre se lembrem quem são e qual é o papel eles tem nesta história: o lema das casas.

Casa Targaryen

Lema: Fogo e Sangue. Estandarte: Dragão vermelho com três cabeças num fundo preto escrito.

“Sou Daenerys, filha da tempestade, da casa dos Targaryen, do sangue da antiga Valíria. Eu sou a filha dos dragões, e eu juro que aqueles que querem prejudicá-los morrerão gritando.” Daenerys Targaryen

Casa Stark

Lema: O Inverno Está Chegando.
Estandarte: Lobo gigante cinza com fundo preto.

“O homem que dita a sentença deve brandir a espada.” Ned Stark

Casa Lannister

Lema: Ouça-me rugir. Eles preferem dizer que “Lannister sempre pagam as suas dívidas”.
Estandarte: Leão dourado num fundo vermelho.

“Quando se entra no jogo dos tronos, ou ganha ou morre.” Cersei Lanister

Como afirma Skinner, os indivíduos são moldados de acordo com as consequências de suas ações. Em GoT, os personagens em suas falas, expõem aos outros quais são suas motivações internas e os demais podem validar ou não dependendo das circunstancias.

Valar Morghulis*

Jaqen H’ghar, 2º Ep. 10º Temp. *Todos os homens tem que morrer. Alto Valeriano língua fictícia dos livros.

Expectadores estão (digamos assim) decepcionados com os rumos tomados pelos produtores da série de TV, David Benioff e D. B. Weiss (comumente conhecidos como D&D). Nas redes sociais após a exibição do último episódio, o gosto agridoce que Martin disse que a história teria no fim, quando transposto para TV ficou amargo.

Em seu início a série de TV era promissora, conseguiu adaptar com qualidade ‘O Jogo dos Tronos’, primeiro livro das Crônicas. Quanto mais se avançava, mais complexa a narrativa dos livros ficava, mas o fandom questionava decisões ora inexistente nos livros ora sem nexo dos personagens.

Se compararmos a adaptação do Senhor dos Anéis pelo diretor Peter Jackson, muitos dirão que os filmes superaram os livros. Isto acontece porque Tolkien não era um escritor, ele não tinha habilidade de contar uma história. Martin é, leva em média cinco anos para escrever um livro. Frequentemente seus leitores não se sentem representados com o que assistem na HBO.

Trailer do 6º Episódio 8º Temporada Season Finale

Valar Dohaeris**

Verme Cinzento, 3º Ep. 8º Temp. **Todos os homens devem servir. Alto Valeriano língua fictícia dos livros.

Os argumentos que sustentam a defesa dos produtores, apontam que eles compraram o desafio de transpor uma história que não havia sido apropriadamente terminada. Quando a série ultrapassou os livros em enredo, negociaram com Martin quais seriam os pontos chaves da trama, assumindo a responsabilidade de preencher lacunas.

Martin afirmou que não ficou muito satisfeito com as resoluções da série, mas também confessou aos 60 Minutes Overtime que não forneceu detalhes de como estes eventos impactariam no comportamento dos personagens e tramas secundárias que facilitam a narrativa.

Conveniências de roteiro fizeram com que uma personagem citasse ipsis litteris Maquiavel – O Príncipe cujo o capítulo XVII – Da Crueldade e da Piedade – Se é Melhor ser Amado ou Temido. Será que na Cidadela temos um exemplar desta obra clássica? Brincadeiras a parte, Martin também poderia se inspirar em Maquiavel, mas certamente seria mais sutil.

George R.R. Martin o autor em entrevista para 60 Minutes Overtime

Será que os personagens terão o mesmo destino da série nos livros?

Assim como seus personagens, um escritor também tem que pagar suas dívidas. Martin disse que não optou ver como a série acabaria para dar sequência à história da sua maneira. “Os livros estarão prontos quando estiverem prontos.” Se um dia veremos a história terminar como está sendo concebida pelo seu autor, somente o tempo dirá.

D&D cumpriram o que se prometeram em fazer: maior série de TV de todos os tempos. Em retrospecto, Game of Thrones, pode ter inovado em efeitos especiais, elenco e quantidade de figurantes, filmagens em locações ao redor do mundo e outros números fabulosos que serão revelados no documentário Game of Thrones: “The Last Watch”.

Trailer do documentário Game of Thrones: The Last Watch

Realmente o ficará na memória dos que viveram este momento, é o fato de milhões de pessoas ao redor do mundo terem a sensação pertencerem a uma comunidade: ter o aumento do número de ‘likes’ ao marcar #gameofthrones nas redes sociais, tendo argumentos para iniciar um papo com desconhecidos, repetir frases dos seus personagens favoritos e receberem feedbacks emocionais, e quem sabe, sentirem-se validados por outras pessoas naquilo que com o que se identificam. Talvez seja esta a maior parte da frustação, o fato é que a realidade bate a porta, depois de nove anos a série chegou ao fim.

O fim da série não é o fim da comunidade, o comportamento verbal precisa se manter acesso. Está aberta a temporada de ‘fanfics’, versões alternativas escritas pelos fãs para editarem o final que satisfaçam as expectativas frustradas. Enquanto isto, HBO pode se gabar da série ser a primeira vez que veremos esta história, mas certamente não será a última.

Masilvia Diniz, primeira de seu nome e Psicóloga

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A SONG OF ICE AND FIRE. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2019. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=A_Song_of_Ice_and_Fire&oldid=55076890>. Acesso em: 8 mai. 2019.

EMBLEMA. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2018. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Emblema&oldid=52569191>. Acesso em: 5 jul. 2018.

GAME OF THRONES – Seasson Finaly. Criação David Benioff e D. B. Weiss: 2019. TV Series. HBO.

GEORGE R. R. MARTIN. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2019. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=George_R._R._Martin&oldid=54941523>. Acesso em: 25 abr. 2019.

GEORGE R. R. MARTIN. (2010) As Crônicas de Gelo e Fogo – Livro 1 a Livro 5. São Paulo. Editora Leya.

J. R. R. TOLKIEN. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2019. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=J._R._R._Tolkien&oldid=54930581>. Acesso em: 24 abr. 2019.

MAQUIAVEL. (1999). O Príncipe. Maquiavel – Vida e Obra. São Paulo. Editora Nova Cultural.

PASSOS, L. R. F, Maria. A análise funcional do comportamento verbal em Verbal Behavior (1957) de B. F. Skinner. (2003). Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva. Rio de Janeiro. Vol. V, nº 2, 195-213. Disponível: https://scholar.google.com.br/scholar?hl=pt-BR&as_sdt=0%2C5&q=A+an%C3%A1lise+funcional+do+comportamento+verbal+em+Verbal+Behavior+%281957%29+de+B.+F.+Skinner&btnG=

SKINNER, B. F. (1957) O Comportamento Verbal. Cambridge, MA: B. F. Skinner Foundation.

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VARGAS, A. Ernst.  O Comportamento Verbal de B. F. Skinner: uma introdução. (2007). Belo Horizonte. Rev. Bras. de Ter. Comp. Cogn., Belo Horizonte-MG, 2007, Vol. IX, nº 2, 153-174172. Disponível: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-55452007000200002


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