Em uma sociedade mercantilista do capitalismo tardio toda e qualquer coisa pode ser transformada em mercadoria, inclusive o saber. Deste modo, acaba que se tornando quase que natural pensar sobre como o desenvolvimento do saber e o aprendizado possam ser úteis para gerar lucro. Algumas disciplinas passam então a ter menos valor mercadológico, e por consequência, despertando menos interesse nos estudantes. Este movimento que o Capital faz de colocar valor simbólico em todas as coisas é chamado por Marx de fetichismo da mercadoria. Para Marx (2005 [1867]), o valor real das manufaturas seria medido por questões objetivas, como por exemplo matéria prima gastas no processo. Para aumentar seu lucro o capitalista atribui importâncias ao produto, o transformando em um “bezerro de ouro”, um objeto de culto. A obra do artista italiano Piero Manzoni intitulada: ‘Merda d’artista’ ilustra muito bem o conceito de fetiche de mercadoria.

Piero Mazoni colocou suas próprias fezes em 90 latinhas estilizadas e ajudou a mudar a história da arte.

Tratando a formação acadêmica como somente um meio para chegar ao fim de sucesso profissional pode fazer com que o estudante fixe num alvo e se esqueça de todo resto ao redor, criando assim uma visão alienada da realidade. Uma outra coisa que retumba na cabeça de quem está construindo sua carreira é a preocupação sobre em que se deve especializar-se. No caso da psicologia, uma área do saber que possui um leque variado de campo onde a ciência pode ser aplicada, estas escolhas se fragmentam ainda mais. Pois, optando pela escolha da área de atuação, ainda existe a linha teórica a ser seguida: Psicanálise ou Gestalt? Segue-se ainda outras subdivisões das escolas teóricas: Psicanálise kleiniana ou lacaniana? Todas estas são escolhas importantes, mas que podem limitar a visão e o interesse acadêmico. Fazendo com que todo o foco seja despendido somente naquilo que se escolheu.

Quando olhamos para os pensadores do passado podemos observar o domínio destes em diversas áreas do saber. Leonardo da Vinci era pintor, arquiteto, botânico, cartografo, anatomista, engenheiro e muitas outras coisas, pra encurtar a lista. Rui Barbosa tinha conhecimentos nas áreas do direito, linguística, e diplomacia. Gilberto Freire, além de sociólogo e antropólogo, era também pintor, historiador e ensaísta. Quanto mais afastado da modernidade e da época contemporânea, mais facilmente se pode encontrar polímatas com conhecimentos tão distintos. Como é que no tempo hodierno o saber se tornou tão específico?

A dialética do esclarecimento e o saber especializado

Adorno e Horkheimer (2006 [1969]) nos mostram que o racionalismo iluminista transformou o saber em algo tecnicista. Esse racionalismo técnico capaz de gerar ciência e tecnologia, também foi o responsável pelo fato do ser humano ter sido capaz dos horrores das duas grandes guerras. A teoria crítica vem nos dizer, que o ser humano passou a pensar somente pelo viés do racionalismo técnico e assim acabou entrando em decadência ética e moral, uma vez que o sistema capitalista visa somente o lucro. Sob a óptica da teoria critica o conceito de indústria cultural foi desenvolvido para demonstrar a mercantilização da produção simbólica dos homens. Numa época onde a industrialização chega ao seu auge com novas técnicas de produção em massa, o capitalismo se torna maduro e sólido. Necessitando fazer girar a engrenagem consumista que o alimenta, o capitalismo passa a usar o cinema, a música e a arte e o saber em geral como mercadoria, esvaziando de sentido a produção intelectual e simbólica. Dessa forma o homem se coisifica, pois sua interioridade é violentada e sua criatividade minada, fragilizando assim a capacidade de crítica norteadora de uma ação emancipatória (RODRIGUES; CANIATO,2012).

O cientificismo também contribui para detrimento de outros saberes, pois somente aquilo que pode ser provado de forma experimental em laboratório passa a ter valor de saber científico. Aplica-se aqui uma máxima nietzschiana bem conhecida: Deus está morto e foram vocês que o mataram!  Logo, o conhecimento difuso em nossa sociedade é aquele cartesiano-positivista-técnico-racionalista. Este tipo especifico de conhecimento faz com que especializar-se em uma única disciplina seja necessário, uma vez que o saber se torna sempre cindido.

Mas o leitor pode nesse momento estar pensado: “Não foi a subdivisão e especialização do saber que fez com que a ciência se desenvolvesse tanto em tão pouco tempo na atualidade, uma vez que, se fossemos se especializar em tantas áreas teríamos de viver 200 anos?  É claro, isto está completamente correto. Contudo, a cisão do saber influencia amiúde o pensamento ocidental, pois pode trazer consigo um modo de pensar maniqueísta que divide as coisas em extremos opostos. Isto faz com que ao querer se especializar em uma área haja detrimento de outra e diminui a possibilidade de inter-relação e diálogos de saberes distintos ou hibridismos disciplinares que formularão outros novos saberes. Além disso, cria-se uma espécie de “rivalidade” ou transformação de certas teorias em “tipos de seitas”. Destarte, em algumas situações, o estudante que decide optar pela especialização em psicanálise passa a desvalorizar a teoria junguiana, por exemplo; ou o analista do comportamento passa a ridicularizar as abordagens psicodinâmicas. Neste movimento sectário de “o meu é maior do que o seu”, se constrói visões de mundo obtusas e com pouca possibilidade de criatividade. Obviamente, existem incompatibilidades de pensamento que provocam dicotomias ou resoluções diferentes. No entanto, devemos compreender que os saberes são formas de linguagem incapazes de explicar toda a realidade. Do simbólico somado ao imaginário sempre escapa o real, diria um lacaniano.

Formar-se é aventurar-se

Dunker C. (2017) mostra que o processo de formação é não somente o de adquirir conhecimento, mas é um processo de formar-se como indivíduo, é um processo de entrar em uma aventura. Para ele o psicanalista deveria conhecer línguas, história das religiões, artes e até matemática. Ora, pode-se inferir então que o processo de tornar-se psicanalista envolve o desejo de tentar se tornar um homo universalis. Em se tratando de psicologia, o interesse de estudo continuo em disciplinas completamente diferentes se torna essencial, pois conhecer as produções da mente humana faz com que se tenha o conhecimento da própria humanidade, assim como também auxilia em conhecer o modo de pensar que cada pessoa desenvolve ao fazer determinada formação. O psicólogo bem sabe que a escolha profissional de alguém está ligada àquela personalidade que decidiu seguir aquele caminho.

Pós-moderno, però non mucho!

Podemos então concluir que estimular o conhecimento plural e diversificado é algo essencial na formação do psicólogo. Não é a intenção deste escrito desvalorizar as especializações universitárias, mas mostrar ao leitor que títulos e premiações não devem ser o único meio para se tornar um exímio profissional. Quer-se aqui estimular o retorno de um saber renascentista que é capaz de tornar o estudante, além de um ótimo profissional, um ótimo ser humano.  Deixo o convite a reflexão sobre como se aprofundar em disciplinas que à primeira vista não tem nada a ver com psicologia pode transformar e alavancar a formação de psicólogo. Tentar construir pontes entre saberes que não dialogam entre si pode ser proveitoso para o desenvolvimento da psicologia em si. Assim como não devemos mostrar pré-julgamento diante de nossos pacientes ou clientes, não devemos mostrar pré-julgamento entre as teorias. Pensemos antes que se tais teorias sobreviveram até hoje, certamente elas tem algo a nos acrescentar. Procuremos desfazer esses nós criados pela rivalidade de escolas teóricas ao longo do tempo. Vejamos cada uma delas como partes singulares de um corpo chamado ciência psicológica. Aproveitemos das maravilhas que um saber especializado e focal podem dar ao nosso conhecimento, todavia, sem nos esquecermos que existem muitos meios de se chegar à resposta para nossas questões. E lembremos que é o psicótico, em seu sofrimento, que percebe seu corpo como cindido e não partes de um todo.

Referências

DUNKER C. O que torna uma pessoa psicanalista. YouTube. 29 Mar. 2017. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=vMIq5GJH4ls>

HORKHEIMER M; ADORNO T.(1969) Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

MARX K.(1867) O Capital. São Paulo: Centauro Editora, 2005.

RODRIGUES S; CANIATO A. Subjetividade e indústria cultural: uma leitura psicanalítica da cumplicidade dos indivíduos com a lógica da mercadoria. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 18, n.2, p.227-248, Ago.2012. Disponível em:< http://pepsic.bvsalud.org > Acesso em: 21 Mar. 2017

Por Bruno Davison de Brito

Psicólogo formado pela UnG

Faz pós-graduação na PUC-SP: Especialização em Semiótica Psicanalítica — Clínica da Cultura


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