o ex-coach e a campanha à prefeitura de São Paulo
*Importante: A opinião dos autores não reflete, necessariamente, a opinião da Sociedade dos Psicólogos.
Ainda nos idos de 2018, entre protestos dos “coletes amarelos” na França, o divórcio entre União Europeia e Reino Unido, o pleno governo Michel Temer, e antes de termos a infelicidade de ser apresentados ao SARS-CoV-2, eu escrevi um texto sobre a obra “Hello Brasil!” (2017), de Contardo Calligaris (1948-2021). Naquele momento esbocei uma introdução sobre um texto que veio a ser uma das minhas principais referências para pensar a formação da “estranha civilização brasileira” e penso ser interessante retomar alguns dos conceitos daquela obra para lermos a situação e explicar (até certo ponto) o que se passa nessa eleição de 2024 à prefeitura de São Paulo. Especificamente quero tratar da candidatura de Pablo Marçal e tentar traçar alguns paralelos da emergência de um discurso de extrema direita com a história do Brasil.
Histórico de Pablo Marçal
Pablo Marçal (1987-) é natural de Goiânia – GO, e ganhou fama ao vender cursos de desenvolvimento pessoal. Apresenta-se como empresário, influenciador digital e ex-coach. Segundo a página da Wikipédia de Marçal: “Obteve maior exposição midiática em 2022, quando protagonizou uma expedição ao Pico dos Marins, situado na Serra da Mantiqueira em São Paulo, que demandou intervenção do corpo de bombeiros devido à exposição de 32 pessoas a riscos de vida.”
Saltando para as eleições municipais de 2024, algumas das polêmicas envolvendo a candidatura de Pablo Marçal têm sido o fato de que ele declarou um patrimônio de mais de 160 milhões de reais, seu histórico de prisão (2005) e condenação (2010) e as possíveis ligações de membros do seu partido com o PCC (Primeiro Comando da Capital).
O Coach e a Teologia da Prosperidade
Marçal se apresenta como um defensor dos empresários, supostos pilares do desenvolvimento da sociedade e símbolos da conquista com base no esforço e no trabalho duro. Seus cursos e mentorias prometiam um enriquecimento acelerado e rápido. Não me estranha que nesse momento de eleições o debate público brasileiro esteja às voltas com a regulamentação (ou possível proibição) das casas de apostas, as chamadas “bets”.
O que me chama a atenção nesse discurso é o caráter de exaltação do individual x coletivo, onde o indivíduo teria capacidade de conquistar qualquer objetivo, sendo limitado apenas por seu esforço e força de vontade.
Outro fator crucial no cenário político atual é a instrumentalização da fé e a ascensão dos evangélicos, especialmente aqueles ligados à teologia da prosperidade. Esse movimento, que promete aos fiéis bênçãos materiais em troca de sua fé e obediência, tem ganhado um peso significativo nas eleições brasileiras. Desde a redemocratização do Brasil nos anos 1980, as igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais, que cresceram nas periferias urbanas, têm exercido uma influência crescente no debate político (Mariano, 2016).
A teologia da prosperidade tem suas raízes nos Estados Unidos, especialmente nos anos 1940 e 1950, a partir de pregadores do movimento da fé e do movimento da cura divina, como Kenneth Hagin, Kenneth Copeland e Oral Roberts. Esses pregadores se inspiraram em passagens bíblicas que prometiam bênçãos materiais àqueles que seguissem os princípios divinos. Eles combinavam o ensino tradicional cristão com a ideia do “poder das palavras”, que sugere que confissões positivas de fé poderiam atrair bênçãos tangíveis.
A teologia da prosperidade não apenas prega uma visão de mundo onde o sucesso financeiro é sinal da graça divina, mas também alimenta a ideia de que líderes populistas são os escolhidos de Deus para guiar o povo. Essa conexão entre religião e política tem permitido que candidatos populistas explorem o sentimento religioso das classes populares para obter apoio. Em São Paulo, a presença de igrejas evangélicas, especialmente nas zonas periféricas, cria um eleitorado receptivo a mensagens que combinam promessas de melhoria econômica com um discurso moralista (Lopes, 2015).
Recomendo também esse vídeo do canal Buenas Ideias:
Hello, Brasil e a Prefeitura de São Paulo
A abertura do livro “A ferro e fogo” (1996) de Warren Dean (1932-1994) traz a frase que para mim, melhor define a sociedade brasileira:
“Quem vier depois que se arranje”, Velho provérbio brasileiro
Isso me leva à reflexão acerca da formação do Brasil que não foi pensado como nação, mas sim como um lugar para extrair o máximo possível e retornar rico para a Europa. Vide o fato, no mínimo curioso, de que a nação leva o nome de uma planta virtualmente extinta devido à exploração (Calligaris, 2017).
Aqui vale destacar que Calligaris se usa dos conceitos de Colonizador e Colono. Ele usa essas figuras para descrever diferentes atitudes em relação à cultura e à vida no Brasil.
- Colonizador: O colonizador é alguém que chega ao Brasil com a intenção de explorá-lo, mas sem estabelecer laços profundos com o país. Para o colonizador, o Brasil é um lugar temporário, onde ele extrai recursos ou vantagens, mas sempre com o olhar voltado para o exterior, esperando retornar ao seu país de origem ou se associar a uma cultura estrangeira. Ele não se interessa genuinamente em fazer parte da sociedade local, mantendo uma postura de superioridade ou alienação. O colonizador vê o Brasil como um meio para atingir seus próprios objetivos, sem interesse real no desenvolvimento ou bem-estar do país e de seu povo.
- Colono: Já o colono, segundo Calligaris, é aquele que se instala e se mistura à terra. Ele constrói sua vida no Brasil, cria raízes e se identifica com a cultura local, adaptando-se às condições do lugar. O colono participa da construção do país e de sua sociedade. Ao contrário do colonizador, o colono tem um sentimento de pertencimento e contribui para o desenvolvimento da nação, adotando-a como sua casa. Ele se envolve de forma mais íntima com o Brasil e aceita suas contradições e desafios como parte de sua realidade cotidiana.
Esses conceitos são utilizados por Calligaris para refletir sobre as diferentes posturas de estrangeiros ou elites que interagem com o Brasil. O autor questiona se essas elites são colonizadores ou colonos, e, em última instância, explora como essa distinção impacta o modo como elas se relacionam com a cultura e os problemas do país.
Falando sobre o ex-presidente Fernando Collor de Mello (1949-), Calligaris (2017) diz:
“quando, nos primeiros tempos da minha estada no Brasil, as pessoas tentavam me explicar o funcionamento do sistema clientelístico, os ditos grandes eleitores, as obrigações que constituem os privilégios concedidos, ainda que irrisórios, tudo isso evidentemente eu não entendia. Parecia-me óbvio que, se o segredo do voto fosse respeitado – e em alguma medida devia ser -, nenhum favor poderia garantir uma fidelidade praticamente inverificável. De fato, a fidelidade não é garantida por razões retributivas (tipo “devo o meu voto a fulano porque ele pagou extração de dentes para todos”); ela é garantida porque a tentativa de me corromper não só me beneficia, mas sobretudo me permite reconhecer no corruptor uma autoridade.
Uma referência paterna que valesse simbolicamente seria de imediato desacreditada pela sua própria (e suspeita) prodigalidade. Aqui, no Brasil, acontece o contrário: a exibição da potência real e, em última instância, da corrupção valida a autoridade e impõe uma fidelidade que é signo de respeito” (Calligaris, 2017, p. 79).
O discurso de Pablo Marçal sempre me remete à essa vontade do Colonizador inerente ao brasileiro de ser o mais esperto e se aproveitar de cada situação (Calligaris, 2017).
A história do Brasil está intimamente ligada à escravidão. Durante mais de 300 anos, o país foi um dos principais destinos do tráfico de escravos africanos, o que moldou profundamente suas estruturas sociais, políticas e econômicas. Estima-se que mais de 5 milhões de escravizados desembarcaram no Brasil (Gomes, 2019).
Como afirmava o padre jesuíta Antônio Vieira no século XVII:
“O Brasil tem seu corpo na América e sua alma na África”
Dando um salto temporal, a abolição da escravatura em 1888 não significou, o fim das desigualdades raciais e sociais. A herança escravista deixou marcas profundas, perpetuando um sistema onde as elites continuaram a concentrar poder e recursos, enquanto a grande maioria da população, composta majoritariamente por negros e pardos, permaneceu à margem (Gomes, 2022).
O fato de que o Brasil tornou-se independente mas ainda manteve a escravidão se liga de certa forma à como o país sempre manteve uma visão de economia baseada no agronegócio, rechaçando as tentativas de um projeto de país industrializado com foco em bens manufaturados de maior valor agregado (como a China).
O desapreço do brasileiro por sua própria história tem consequências, e vale apontar as semelhanças explícitas e implícitas entre a campanha atual de Marçal à prefeitura de São Paulo, e a campanha de Jair Bolsonaro à presidência da República, com a narrativa Outsider (falarei mais à diante), a truculência, a suposta luta contra a corrupção (suposto conluio comunista) e a instrumentalização da fé (como apontado acima).
A memória curta do brasileiro não é surpresa para quem se atenta ao fato de que, diferente de grande parte das sociedades europeias e asiáticas, no Brasil o que vemos é a predominância do uso do primeiro nome, em detrimento do sobrenome, que é ligado à uma filiação familiar e que localiza o indivíduo em relação à sua origem e sua própria história (Calligaris, 2017).
Fenômeno Digital e a Era da Pós-Verdade
A campanha de Pablo Marçal tem se mostrado também bastante orientada para a criação dos chamados “cortes”, trechos retirados de seções maiores de entrevistas (e retirados de contexto) usados para afirmar um discurso de nós x eles e criar uma narrativa de lacração do político em relação a seus adversários.
É interessante notar como essa eleição é um reflexo não só de toda a bagagem histórica que apontei acima, mas também de um fenômeno mais ou menos recente (impulsionado pela emergência da internet) que é a chamada Pós-Verdade.
O termo “Pós-Verdade” foi popularizado pelo dramaturgo Steve Tesich em um ensaio publicado na revista The Nation em 1992, intitulado “A Government of Lies”. Tesich refletia sobre a complacência da sociedade americana diante das mentiras que levaram à Guerra do Golfo e o caso Irã-Contras, observando que “nós, como povo livre, decidimos livremente que queremos viver em um mundo pós-verdade”. Para Tesich, a sociedade estava aceitando uma realidade onde a verdade era secundária ao conforto emocional e às narrativas políticas.
No contexto da política contemporânea, o termo “Pós-Verdade” tem sido amplamente discutido para descrever uma situação em que fatos objetivos têm menos influência na opinião pública do que apelos a emoções e crenças pessoais. O populismo, em sua essência, é uma forma de política que se beneficia da Pós-Verdade, uma vez que os candidatos populistas frequentemente ignoram fatos inconvenientes, preferindo apresentar versões simplificadas e distorcidas da realidade (McIntyre, 2018).
No Brasil, essa era de Pós-Verdade é evidente não apenas na disseminação de fake news, mas também na forma como candidatos populistas constroem suas narrativas. Eles se apresentam como “outsiders”, mesmo quando fazem parte das elites políticas, e se posicionam contra inimigos imaginários, como a corrupção sistêmica ou o “sistema” que impede o desenvolvimento do país. Essa dicotomia entre “nós” e “eles” é uma característica fundamental do discurso populista e pode ser facilmente manipulada em um ambiente onde as fronteiras entre fato e opinião se tornam cada vez mais nebulosas (Mounk, 2019).
Conclusão
O fenômeno do populismo no Brasil é um reflexo de questões históricas e contemporâneas profundamente entrelaçadas. A herança da escravidão, a ascensão dos evangélicos e a era da Pós-Verdade se combinam para formar um cenário onde candidatos populistas encontram terreno fértil.
Como observou Souza (2017), a política brasileira, marcada por desigualdades e exclusão, torna-se um campo propício para discursos que prometem soluções fáceis para problemas complexos. No entanto, é necessário olhar além do discurso e questionar se as promessas populistas realmente podem transformar uma realidade social que tem suas raízes em séculos de injustiças e desigualdades.
Bom voto!
Até a próxima,
Por Igor Banin
Referências Bibliográficas
Calligaris, C. (2017). Hello Brasil e outros ensaios. São Paulo: Três estrelas.
Dean, W. (1996). A ferro e fogo: A história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras.
Gomes, L. (2019). Escravidão: Volume I: Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares. São Paulo: Globo Livros.
Gomes, L. (2022). Escravidão: Volume III: Da Independência do Brasil à Lei Áurea. São Paulo: Globo Livros.
McIntyre, L. (2018). Pós-Verdade. São Paulo: Editora Aleph.
Mounk, Y. (2019). O povo contra a democracia. São Paulo: Companhia das Letras.
Pablo Marçal. (2024, 1 de outubro). Wikipedia. https://pt.wikipedia.org/wiki/Pablo_Mar%C3%A7al
Souza, J. (2017). A elite do atraso: Da escravidão à lava jato. Rio de Janeiro: Leya.
Tesich, Steve. “A Government of Lies.” The Nation, 1992.
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