É um caso que consta do DSM/CID ou um caso que consta no Código Penal?

Em 1926 Sigmund Freud publicou um de seus textos mais canônicos: Inibição, Sintoma e Angústia. Na obra, o psicanalista apontou as relações entre o que considerou ser uma inibição das “Funções do Eu” (mobilidade, nutrição, sexualidade e labor/produtividade) os sintomas neuróticos na Histeria, na Neurose Obsessiva e nas Fobias, bem como uma reformulação a respeito do seu conceito de angústia, um afeto que faria a ponte entre o histórico daquilo que seria considerado perigoso dentro e para uma realidade subjetiva em contato com a realidade externa e suas representações de perigo — e o Eu (Ego) faria o meio-de-campo entre o campo psíquico e perceptivo (Freud, 2014).

Alguns anos mais tarde, o psiquiatra e psicanalista Jurandir Freire Costa escreveria o prefácio da dissertação de mestrado da também psiquiatra e psicanalista baiana Neusa Santos Souza que virou livro: “Tornar-se Negro: as vicissitudes do negro brasileiro em ascensão social” em 1983, e que após quase 20 anos esquecido, ganhou uma segunda edição em 2021, agora contando também com o prefácio de Maria Lúcia da Silva, ícone dos estudos sobre racialidade e psicologia no Brasil. Curiosidade: ainda neste mesmo ano de 2021, uma tese de doutorado de 1998, chamada “Significações do Corpo Negro” , onde há uma interligação entre Souza, Fanon, Adorno, Lacan e muitos outros teóricos, finalmente consegue a possibilidade de ser publicada em forma de livro, antecedendo seu título original com o chamativo — aos já familiarizados com o conceito, claro — “pré-título”: A Cor do Inconsciente. Acreditamos não ser mera coincidência a (re) publicação desta (s) obra (s) após a repercussão mundial do Assassinato de George Floyd, um homem negro asfixiado até a morte por um policial branco, que culminou nos protestos intitulados Black Lives Matter.

Mas o que isso teria a ver com o texto de Freud?

O Efeito Psíquico da Violência Racial

Em outro lugar, trouxe mais detalhes sobre a obra de Franz Fanon e Neusa de Santos Souza e as possibilidades de se vivenciar o racismo inclusive no consultório de psicologia (clique e veja). É recomendada, não mandatória, a leitura prévia do que fora escrito para um melhor entendimento do que virá a seguir.

Em sua dissertação de mestrado, Neusa de Santos Souza apontou a partir de seus casos clínicos a presença da violência racial de maneira independente do status socioeconômico: os traços desta violência são subjetivantes, ou seja, atravessam o sujeito desde a formação de sua personalidade — tanto por já terem sido introjetados também por suas figuras de referência à identificação e ao desejo e, assim, reprojetados na construção de uma nova identidade subjetiva; como pelas associações simbolicamente impregnadas na cultura que restringem o acesso do sujeito negro àquilo tido como o belo, o bom, o justo e o verdadeiro (2021).

No prefácio à última edição (2021), Maria Lúcia da Silva simplifica a premissa a respeito dos aspectos escamoteados da violência racial que, ainda que não vistos a olho nu, mantém seu impacto política e psiquicamente:

“O racismo ronda sua existência na condição de um fantasma desde o seu nascimento, ninguém o vê, mas ele existe, embora presente na memória social e atualizado através do preconceito e da discriminação racial, ele é sistematicamente negado, se constituindo num problema social com efeitos drásticos sobre o indivíduo” (Silva, M.L. In: N.M. Jon, C.C. Abud e M.L. Silva. 2017, p. 84)

No prefácio à edição original do livro de Souza em 1983, o psicanalista Jurandir Freire Costa apontou três traços na fronteira que a violência racista faz entre o psíquico e o somático do sujeito que é alvo dela (2021):

  1. O primeiro deles já foi citado aqui: o sujeito é, desde suas primeiras experiências, afastado e contestado pela cultura à possibilidade de identificar-se de maneira benéfica aos seus próprios traços corporais e até de suas referências; mais ainda: é coagido a desejar e identificar-se ao ideal, no padrão imagético e comportamental, daquilo instituído à pele branca: beleza, inteligência, inocência e riqueza não mais lhe pertencem (Costa, 2021);
  2. Dos efeitos deste processo, vamos além da simples veneração ou inveja à pele caucasiana: cria-se uma relação de persecutoriedade com os elementos da própria imagem e semelhança — o próprio corpo precisa deixar de aparecer, transparecer e ter prazer; cada um dos traços que não pertencem ao Ideal da Brancura precisam ser constantemente apagados numa fuga não do desprazer, não da angústia e não do sofrimento: mas um cerco em torno da dor e da morte (Ibid, 2021);
  3. E o resultado é que daí em diante o pensamento está acuado, quase não dá tempo de sofrer, de se apresentar, de viver: não há princípio do prazer no pensamento, a libido está represada (como acontece no caso de uma doença orgânica) em torno da dor; e a ameaça de morte é diferente daquela da neurose obsessiva, que pode ser “[anu]lada” com rituais e formações reativas, ela é real e ela ameaça o corpo que a detém; não há prazer no pensamento, há um condicionamento do devir até a chegada da dor e da ação da Pulsão de morte — a violência alija o investimento libidinal no corpo, no pensamento e na cultura. Sobra apenas repetir, compulsivamente, aquilo que se pôde conhecer até então (Freire, 2021).

Isildinha Baptista Nogueira (2021) mostra em sua tese como as palavras racistas fazem parte do repertório imagético e linguístico que compõem a autoimagem, a autoestima e as perspectivas destinadas ao corpo negro em nossa cultura, ela vai nos explicar melhor:

O racismo, contrariamente ao preconceito, é a expressão da violência, é um ato; não uma interdição que se coloca a priori, como forma de proteger seja la o que for. Dentro desse universo de terror, mesmo que o negro acredite conscientemente que tais ameaças racistas não se cumprirão, o pavor não desaparece, porque ele traz no corpo o significado que incita e justifica, par ao outro, a violência racista.

[…] É justamente porque o racismo não se formula explicitamente, mas antes sobrevive num devir interminável, como uma possibilidade virtual, que o terror de possíveis ataques (de qualquer naturezam desde física à psíquica) por parte dos brancos cria para o negro uma angústia que se fixa na realidade exterior e se impõe inexoravelmente […] é mais forte que ele: ele acaba sempre por sucumbir a todo um processo inconsciente que, alheio à sua vontade, entrará em ação. (Nogueira, I.B. 2021. p. 126. grifos da autora).

O Medo, a Inibição e a Ansiedade

Mas a crítica aqui é feita aos protocolos. Vejamos. Apesar da atualização para a versão 11, o CID-10 — A classificação internacional de doenças — ainda é vastamente utilizado no Brasil pela medicina, pela psicologia e pela psiquiatria, especialmente em sua classificação F.41.1, referente ao Transtorno de Ansiedade Generalizada e F41.0 (Transtorno do Pânico).

Contudo, o suicídio entre adolescentes negros é maior, os índices de depressão também. Outros dados da população estadunidense também apontam que há uma tendência também a maiores índices de ansiedade nas mulheres negras, dado que também poderá se refletir no Brasil, país onde a maioria da população é considerada preta ou parda. Não seria surpresa que a população mais ansiosa do mundo tivesse uma parcela significativa de sua população afetada pelo diagnóstico que parece já vir timbrado no bloco de notas de muitos psiquiatras.

Porque ainda que o intuito deste artigo não seja discutir a porcentagem de médicos pretos (3,4%) e pardos (24,3%) em comparação com os brancos (67,1%), ou de psicologos negros (16,5%) no Brasil é preciso pensar tanto na inserção epistemológica dos estudos raciais ligados à formação em psicologia, medicina e psiquiatria no Brasil, como os fatores etnoculturais que trariam mais interesse a esta incluir tais estudos ao próprio repertório teórico e técnico em um país de maioria negra. Justamente pela influência que estes fatores podem trazer à técnica necessária a um diagnóstico diferencial.

Uma das indagações deste artigo é que se entendermos a ansiedade como:

a) uma reação neuropsicofisiológica a uma representação de perigo futuro e/ou iminente, que mobiliza reações no sistema endócrino (descarga de adrelina — “frio na barrida”), cardiovascular (vermelhidão no rosto, taquicardia), digestório (contração e/ou relaxamento dos esfíncteres, liberação de suco gástrico incondicionada à presença de alimento), muscular (contração/rigidez muscular nos membros superiores, inferiores e na musculatura facial), respiratório (hiperventilação/falta de ar) e, obviamente, neurológico (hipotálamo, amígdala, hipocampo, córtex pré-frontal) central e periférico;

b) um afeto que conecta o eixo psíquico ao somático e reproduz a experiência psíquica da dor, da perda do objeto que dá significação ao corpo e suas funções após o trauma do nascimento, representando também a proximidade entre perigo no âmbito pulsional e externo;

c) o medo sem um objeto definido e frequentemente localizado em um futuro catastrófico idealizado no pensamento de cada um e que produz manifestações fisiológicas semelhantes às necessárias às reações de paralisia, luta ou fuga;

Precisaríamos pensar se uma população que é 9 entre cada 10 pessoas mortas pela polícia em 8 estados Brasileiros, mas também é 4,5 vezes mais propensa a sofrer uma abordagem policial, enquanto figura liderando em 83% das pessoas presas injustamente a partir do reconhecimento fotográfico; as pessoas negras prosseguem acumulando o primeiro lugar no pódio nas estatísticas entre a população com os maiores índices de desocupação, pobreza (mais de 70% da população pobre é preta ou parda) e subutilização, realmente poderia ser diagnosticada dentro dos mesmos critérios de quem não está exposto a este contingente de violências.

Critérios Diagnósticos do Medo

Vejamos: trata-se do mesmo tipo clínico um jovem branco que não sai de casa por conta de seus sintomas de Transtorno do Pânico que passaram a aparecer após uma tentativa de assalto ocorrida há dois anos, e do jovem negro que passou a restringir-se para dentro do portão de casa pois, no último ano, ao menos três vezes por mês, era abordado pela polícia ficando sob a mira de uma pistola .40 enquanto era tratado como suspeito até o último minuto?

Poderíamos fechar o mesmo diagnóstico para um caso em que a angústia se localiza na possibilidade de um futuro catastrófico se repetir e um caso onde no presente materializa-se frequentemente o objeto produtor de um medo real que está sempre à espreita? A incidência de fatores externos prevalece entre as duas populações? Podemos comparar a expectativa com a repetição da experiência violenta? Quais seriam as variáveis impostas por estes aspectos em um quadro psicopatológico?

Será que os critérios diagnósticos, de acordo com a apresentação dos sintomas descritos em F41.0 ou F41.1 em CID-10, foram criados considerando a repetição compulsiva de experiências possivelmente mortíferas às quais as pessoas pretas são inseridas cotidianamente? Inclui-se no diagnóstico diferencial a constante repetição das notícias de morte, prisão e/ou suicídio de pessoas próximas e/ou semelhantes no repertório imediato destas pessoas? Consultas psiquiátricas que duram apenas 15 minutos e que terminam com uma receita de escitalopram, venlafaxina ou desvenlaxina, rivotril, quetiapina, fluoxetina e uma constante exposição ao topo da cabeça do médico — por vezes um Doutor Calvo — que, de tanto olhar para sua prancheta, mal fez contato visual durante a anamnese, poderiam resolver? A maior incidência de vulnerabilidade financeira, possibilidade de violência doméstica e menos acesso à saúde poderá comprometer o diagnóstico?

Diagnóstico Diferencial e Comorbidades

Pois um inibidor da recaptação seletiva de serotonina, noradrenalina ,dopamina poderá retirar a experiência do medo do perigo, sempre à espreita da próxima esquina e associado à morte, inibição e prisão de um corpo como o seu. É o que parece quando pensamos no silenciamento de queixas sobre a violência racial com caixas de psicotrópicos. A sucessiva repetição de cenas que, vivenciadas por pessoas brancas, nomeia-se como: violência, trauma, ataque e abuso são, como o racismo: escamoteadas, veladas, encobertas. O medo real é silenciado entre diagnósticos, receitas, “vitimismos”, “busca por atestado” e “frescura”.

É preciso pensar que a experiência do medo e da ansiedade em uma pessoa negra é a experiência do espelho: a um rosto que não se pôde amar, admirar e se identificar; que foi barrado, privado e restrito de lugares e experiências em comum na cultura; agora é suspeito, temido, rejeitado e morto pelo corpo que foi ensinado a se referenciar, identificar e temer.

A experiência negra do medo é a experiência do ataque à própria imagem, semelhança e permissão de viver e pensar. É a amputação do pensamento criativo e da possibilidade plural de condutas, não se pode baixar a guarda, o racismo está à espreita, sempre. É preciso não apenas temer, mas saber que não haverá ação da Pulsão de Vida do outro como houve de si, para preservar a vida negra. A repetição compulsiva da morte do corpo preto está na esquina onde se trabalha, no restaurante onde se come, na rua onde se mora e no amor que não se materializa — e ela não parte mais só da experiência própria. Não bastou sobreviver às imposições mortíferas da cultura ao próprio psiquismo, para viver, será necessário depender também do psiquismo do Outro, que lhe concebe como descartável até precisar mentir sobre isso.

Sem querer ser muito pentelho, militante ou chato (eventualmente acontece destes termos serem confundidos), mas seria muita viagem, muito exagero… Digo: eu estaria indo muito longe, se por um momento me prontificasse a perguntar, sem muita pretensão, se o racismo, pela própria não consideração de seus efeitos psíquicos nos protocolos diagnósticos, prognósticos e em seus respectivos diferenciais passou a ser estruturalmente parte da psiquiatria e da psicologia? Sendo mais claro: tanto tempo sem querer saber, seria, como é o caso dos ganhos secundários que um doente obtém com seu quadro de sofrimento, uma forma de manter o racismo escamoteado na estrutura protocolar da psiquiatria e da psicologia?

Referências:

COSTA, Jurandir Freire. Da cor ao corpo: a violência do racismo. In: SOUZA, Neusa de Santos. Tornar-se negro: ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.

FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 17: Inibição, sintoma e angústia, O futuro de um ilusão e outros textos (1926-1929). Tradução de Paulo César de Souza. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

NOGUEIRA, Isildinha Baptista. A cor do inconsciente: significações no corpo negro. São Paulo: Perspectiva, 2021.

SILVA, Maria Lucia da. Prefácio a esta edição. In: SOUZA, Neusa de Santos. Tornar-se negro: ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar, 2021. p. [não disponível].

SILVA, Maria Lucia da. Racismo no Brasil: questões para psicanalistas brasileiros. In: KON, N.; ABUD, C. C.; SILVA, M. L. (Orgs.). O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise. São Paulo: Perspectiva, 2017. p. 84.

SOUZA, Neusa. Santos. Tornar-se negro: Ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar. 2021 


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