No final do ano passado li uma das obras que mais me intrigou naquele momento mas não consegui falar sobre então decidi retomá-la agora. Trata-se de “Crash”, livro escrito pelo autor inglês J.G. Ballard (1930 – 2009), uma obra de ficção científica lançada em 1973, considerada transgressiva e inovadora para a época.
Nota de rodapé interessante para quem não conhece o autor, o Met Gala, famosa festa à fantasia que acontece anualmente no Metropolitan Museum of Art de Nova York (Met) desse ano teve como tema central um conto de Ballard: O Jardim do Tempo, uma obra sobre decadência, beleza e fragilidade. Veja mais sobre aqui.
(J. G. Ballard)
“Crash” a obra e seu impacto cultural
Voltando à “Crash”, a narrativa explora a relação perturbadora entre a tecnologia, o desejo humano e a violência. A história é centrada em um grupo de pessoas que desenvolvem uma obsessão sexual por acidentes de carro, vendo neles uma forma de excitação erótica e transcendência pessoal.
Esses personagens, liderados por Vaughan, um ex-cientista com tendências megalomaníacas, encontram excitação sexual na colisão de carros e na fusão de carne e metal. O romance desafia as convenções sociais e culturais, questionando a relação entre o desejo humano e a máquina.
Ballard utiliza acidentes de carro como metáforas para explorar a desumanização e a alienação na sociedade moderna. Os personagens buscam transcender a monotonia e a superficialidade de suas vidas cotidianas através da intensidade dos acidentes e da destruição. A narrativa é marcada por descrições gráficas e explícitas das colisões, misturando imagens de violência e erotismo de uma maneira que provoca desconforto e reflexão. Ao eroticizar a destruição, “Crash” apresenta uma visão sombria do futuro, onde a tecnologia não apenas facilita a vida, mas parece transformar a própria natureza do desejo humano.
Em uma camada adicional de interpretação, o romance se coloca como uma crítica mordaz à cultura do consumismo e ao fetichismo da tecnologia.
“Crash” é amplamente considerado um marco na literatura pós-moderna e de ficção científica, desafiando as fronteiras tradicionais entre gêneros e estilos. O romance influenciou escritores e teóricos que exploram temas de alienação, tecnologia e erotismo.
Entrando no campo da psicanálise e teoria social, o famoso teórico esloveno Slavoj Žižek chega a discutir a obra de Ballard em seu texto “Bem-Vindo ao Deserto do Real”, de 2002, abordando temas como a simulação e a hiper-realidade.
(Slavoj Žižek)
Por fim, “Crash” foi adaptado para o cinema em 1996 pelo diretor David Cronenberg, e está na minha watchlist.
(David Cronenberg)
Crash e a Psicanálise
A ideia aqui é relacionar o romance “Crash” de J.G. Ballard com a noção de Objeto A, dentro da perspectiva da psicanálise lacaniana. revela muitas camadas de significado, especialmente no que diz respeito à exploração dos desejos humanos, a simbolização do trauma e a ruptura das normas sociais.
Na psicanálise lacaniana, o desejo é central e está sempre relacionado a um objeto inalcançável, conhecido como objeto a (objeto pequeno a). Em “Crash”, os personagens desenvolvem um fascínio obsessivo por acidentes de carro, não apenas como eventos traumáticos, mas como fontes de excitação sexual e prazer. Os carros e os acidentes se tornam objetos de desejo, encapsulando o que Lacan chamaria de objeto a – algo que nunca pode ser completamente possuído ou compreendido, mas que continua a alimentar o desejo . Lacan (2003) sugere que o desejo é sempre direcionado para algo fora de nosso alcance, algo que nos escapa constantemente. Em “Crash”, os personagens estão em busca constante de um “Outro” que se manifesta nos acidentes de carro, eventos que simbolizam uma forma de desejo nunca plenamente satisfeito.
Abro aspas aqui para o protagonista James Ballard (sim, um alter ego do autor) falando sobre Vaughan, personagem chave na narrativa:
“Vaughan me expôs todas as suas obessões com o misterioso erotismo das lesões: a perversa lógica de painéis de instrumentos encharcados de sangue, cintos de segurança lambuzados de excrementos, quebra-sóis cobertos de tecido cerebral. Para Vaughan, cada desastre de carro desencadeava um tremor de excitação, nas complexas geometrias de um para-lama amassado, nas inesperadas variações de grades esmagadas de radiador, na grotesca projeção de um painel em direção ao ventre do motorista, como num ato programado de felação mecânica. O tempo e o espaço íntimos de um ser humano único tinham sido fossilizados para sempre naquela teia de lâminas de cromo e vidro esmigalhado.” (1973, p. 16-17).
Sugiro como complemento ao tema de Objeto A, o vídeo de Christian Dunker:
O Nó-Borromeano e a experiência humana
(Objeto a como parte faltante ao Nó Borromeano conforme usado por Lacan)
Lacan divide a experiência humana em três registros: o Imaginário, o Simbólico e o Real. O Simbólico é a ordem da linguagem e da cultura, onde os significados são socialmente construídos. “Crash” desafia essa ordem ao subverter os significados simbólicos tradicionais de acidentes de carro como eventos trágicos. Em vez disso, os acidentes são recontextualizados como eventos eróticos, perturbando a ordem simbólica estabelecida. Como Lacan afirma, “Com efeito, não temos por que nos espantar com isso, o real está no limite de nossa experiência” (1956-1957/1995, p. 30). Os acidentes em “Crash” representam essa resistência, trazendo à tona uma realidade que não pode ser totalmente domada ou compreendida pela linguagem e pela cultura. Nos últimos anos do ensino de Lacan, ele passou à utilizar o Nó-Borromeano para ilustrar esses conceitos.
Em outro trecho marcante da escrita de Ballard temos um vislumbre da erotização da falta:
“Visualizei minha mulher lesionada numa colisão de alto impacto, sua boca e seu rosto destruídos, e um orifício novo e excitante aberto em seu períneo por um estilhaço da coluna da direção, nem vagina nem ânus, um orifício que poderíamos revestir com todos os nossos sentimentos mais profundos” (1973, p.194).
Lacan explora a erotização do orifício/furo em várias partes de sua obra, mas um dos textos mais relevantes é encontrado no seu Seminário XI: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise (1964/1988). O conceito de objeto a é frequentemente associado a imagens de orifícios, buracos ou lacunas, que simbolizam essa falta central no desejo humano.
A Jouissance
Importante lembrar aqui também do termo Jouissance que se refere a uma forma de prazer que vai além do princípio do prazer de Freud – é um prazer excessivo e frequentemente doloroso. Em “Crash”, os personagens buscam uma forma de jouissance através dos acidentes de carro. Eles estão em busca de experiências extremas que transcendem o prazer convencional, mergulhando em uma mistura de dor e prazer que desafia as normas sociais e os limites do corpo. Essa busca pelo prazer proibido é central na narrativa de “Crash”.
O Real Lacaniano e a Tecnologia
Por fim, gostaria de ressaltar os aspectos tecnológicos x biológicos na obra. A tecnologia em “Crash” pode ser vista como uma extensão do Real lacaniano. Os carros, enquanto objetos tecnológicos, representam tanto o controle quanto a perda de controle. Eles são instrumentos de ordem e progresso, mas também de caos e destruição. A fusão dos corpos humanos com a tecnologia dos carros nos acidentes reflete a intrusão do Real na vida cotidiana, um lembrete constante da vulnerabilidade e da mortalidade humana. O Real como impossível que nos aponta Lacan (1998) se manifesta na interseção entre corpo e máquina, prazer e destruição.
Na review do livro por Cliff Lynn Sargent, do canal Better Than Food, é discutido o tema de fusão entre homem e máquina, e como a tecnologia hoje avança para dentro dos nossos corpos, vide Smartwatchs e a conectividade exacerbada em mercados tecnologicamente mais avançados como a China e Japão (e no caso da China, com menos legislações de proteções de dados).
Veja a review aqui:
Do meu ponto de vista, os efeitos psicopatológicos do uso da tecnologia pós-2007 (lançamento do primeiro iPhone) tem se apresentado mais e mais, entre elas a dependência do celular, depressão, ansiedade especialmente em crianças e adolescentes. Observa-se isso em estudantes de psicologia e psicólogos formados também.
Inclusive, recomendo esse texto da Roberta Mendes relacionando o uso de Smartphones com a noção de Objeto Transicional winnicotiano.
A grande discussão que permanece aberta, pelo menos nesse momento, para mim, é o quanto a tecnologia irá alterar fundamentalmente a subjetividade humana. Tenho minhas dúvidas se não sofremos dos mesmos dramas dos nossos antepassados romanos, por exemplo.
Conclusão
“Crash” de J.G. Ballard, quando lido através da lente da psicanálise lacaniana, revela uma exploração profunda dos desejos humanos, da transgressão das normas sociais e da intrusão do Real na vida simbólica. A busca incessante dos personagens por um prazer além dos limites convencionais, a fragmentação de suas identidades e corpos, e a subversão dos significados culturais estabelecidos fazem do romance um estudo que se coloca como fascinante sobre a complexidade do desejo e da experiência humana.
Até a próxima.
Por Igor Banin
Referências
Ballard, J.G. (1973/2007) Crash. São Paulo: Companhia das Letras.
Lacan, J. (1998) Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Lacan, J. (2003) Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Lacan, J. (1956-1957/1995) A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Lacan, J. (1964/1988) Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
0 comentário