Na Grécia Antiga, o teatro introduziu um meio de contar histórias, sendo que as comedias eram encenadas para contar a história do homem comum e as tragédias contava a história dos Deuses e heróis. Em nosso tempo, não há uma distinção, em meio ao caos, realidade e ficção parecem estar lado a lado e de mãos dadas. ‘A arte imita a vida’ é uma frase usualmente atribuída a Aristóteles, mas de vez enquanto e de forma inesperada, parece que vida imita a arte.
Quando o que está acontecendo em tempo real não é parecido com nada que tenhamos vivido e natural buscarmos referências. Precisamos consumir algum conteúdo que minimamente nos organize frente ao desconhecido.
Ao pesquisar conteúdo para uma serie de lives sobre Coronavírus no Instagram da Sociedade – @spsicologos – autores afirmam que em pandemias as pessoas entram em negação. A mente humana é um grande desafio à uma eterna estudante do comportamento humano, por isto eu me aprofundei no tema.
O objetivo deste texto é iniciar uma série de reflexões sobre um livro fundamental para entendermos a complexidade do comportamento humano. Para além de buscarmos a plenitude, a perfeição e a felicidade, a vida é também é feita de interrupções que podem ser bruscas, inesperadas e com incontingências. Algo que não estava, emerge e se faz presente, algo que maior que nos tira dos trilhos e fica a frente deles.
O livro em questão é “Sobre a Morte e o Morrer” (1981), Elisabeth Kubler-Ross que descreve as fases do luto, que não dialoga somente sobre a finitude da vida, mas de todos os processos de ruptura que acontece enquanto vivemos. Este texto é sobre a primeira fase: a negação.
A vida em câmera lenta
A nossa visão do futuro agora se parece com uma viagem numa estrada, que em dado momento se aproximamos do trecho com neblina e é impossível ver o que está a sua frente. A única coisa a fazer e reduzir a velocidade, seguir em frente com cautela e lendo as orientações da sinalização.
Nós provavelmente, estamos vivendo um momento trágico de proporções mundiais. Ainda não há como mensurar, mesmo que comparada a outras tragédias da história recente, o tamanho e a magnitude do Coronavírus Covid-19 para o mundo tal como o conhecemos. As imagens falam por si, pontos turísticos e avenidas das grandes cidades vazias e corredores de hospitais lotados.
Além das notícias que a cada momento relatam histórias difíceis de assistir, há uma corrida desenfreada para que os cientistas – tão desvalorizados pelo pouco investimento do governo ao longo do tempo e pela crescente corrente que relega a importância das conquistas da medicina, como campanhas antivacinação – descubram o melhor tratamento aos pacientes internados e a vacina que fara arte do nosso calendário de vacinação. Ainda assim, haverá alguém no futuro que acreditará que tomar a dose da vacina é inútil. Não é obvio?
Olhando pelo retrovisor
Em 2011 eu assisti ao filme Contágio, dirigido por Steven Soderbergh, que optou por narrar sua história com um tom documental baseada na pandemia do H1-N1 de 2002. Ao assistir novamente para escrever este texto, não houve como não comparar ao que estamos vivendo neste momento. Outras pessoas, por razões diferentes tiveram a mesma percepção ao assistir o Poço (Netflix, 2019). Ambos filmes são gráficos e podem causar gatilhos.
No filme Contágio (Warner Bros.), o diretor aproxima sua câmera quando quer evidenciar como é a proliferação do inimigo invisível: o vírus. Nos diálogos expositivos, personagem explicitam três conceitos: o R-zero, fômites e isolamento social.
- R-zero é o primeiro indivíduo que contraiu a doença, saber isto é importante, pois é possível identificar como tudo começou, como é transmitido, quantas pessoas são infectadas e quais são os sintomas.
- Fômites são meios que são capazes de transmitir o vírus, mesmo sendo inanimados, como plástico, papel, madeira, alumínio, entre outros.
- O isolamento social é a forma que impede que pessoas portadoras do vírus, mesmo que não tenha sintomas, passem o vírus para pessoas que sejam infectadas e a doença evolua.
Porque a ficção se utiliza das mesmas regras da nossa realidade, as semelhanças não são coincidências. Principalmente quando um repórter freelance começa divulgar sua história em blog, disseminando fakenews e afirmando que ele foi curado tomando um remédio específico, isto ocasiona uma corrida as farmácias. Obvio?
Além do filme, a situação atual também se assemelha com o conceito VUCA desenvolvido pelo Exército dos Estados Unidos no pós-Guerra Fria. Quando não sabemos como lidar com a situação, o mundo a sua volta se torna volátil, incerto, complexo e ambíguo. Há algumas semanas atrás, todos nós estávamos seguindo nossas rotinas, a ideia de que sabemos o que fazer e aonde ir é tudo que seu cérebro necessita.
Quando as coisas saem do trilho e se tornam inconstantes, os especialistas não entram em consenso em quanto tempo possa durar a quarentena, informações desencontradas, discordâncias entre orientações e fakenews alimentam em nós dúvidas e incertezas. Se a vida não é mais como era antes, todos nós perdemos algo ou podemos nos perder no caminho e neste momento entramos em negação.
Não, isto não está acontecendo comigo
Acabo de ver uma reportagem na televisão na qual uma senhora idosa, estava na feira para comprar frutos do mar para ceia da sexta-feira da paixão, sem máscara ou proteção. A repórter pergunta ‘não tinha outra pessoa para vir para senhora na feira?’ e a resposta foi ‘em casa, eu não fico não minha filha, não fico em casa de jeito nenhum’, volta para ancora que apenas diz ‘senhora volta para casa’.
Negação descrita no livro é um mecanismo de defesa, que rejeita um fato que é difícil de ouvir, mas nem por isto deixa ser fato. Kubler-Ross se deparou com vários casos em suas pesquisas, muitas pessoas frente a um diagnóstico, criam histórias que colaboram com a negação, querem ouvir outras opiniões, criam estratégias e uma pequena percentagem prolonga esta fase mais que o esperado.
Vou propor um exercício, imagine por um instante como seria o trânsito nas ruas e avenidas sem farol (sinal ou sinaleira)? Caótico, não é?
Assim são suas emoções, funcionando como um farol que te comunica quando é o momento de parar ou seguir em frente. O medo é uma emoção, não menospreze sua importância, sem medo você seria incapaz de se organizar frente ao desconhecido. Sendo assim, é natural frente ao caos sentir medo. Isto fará com que, se você tiver como, evitar aglomerações, usar a máscara, manter a higiene das mãos e limpar embalagens de produtos e alimentos antes de guardar. Sem medo, seriamos inconsequentes, colocando nossas vidas em risco o tempo todo. Não é obvio?
Alguns de vocês podem se perguntar se estocar papel higiênico é um tipo de negação – na matéria do site BBC – cita Steven Taylor, autor do livro lançado no final de 2019 ‘The Psychology of Pandemics’ (A Psicologia de Pandemias) em suas pesquisas tem uma outra percepção “papel higiênico virou um símbolo de segurança, embora não vá impedir que as pessoas sejam infectadas pelo vírus. Mas quando as pessoas ficam sensíveis a infecções, aumenta a sensibilidade delas para o que é nojento. É um mecanismo para nos proteger de patógenos”. Outro mecanismo de defesa, nossa mente tentando se organizar, mas de uma maneira menos lógica, mais emocional.
Além do fundo do Poço
Antes que eu escrevesse este texto, o colega Caio Ferreira me sugeriu assistir O Poço (Netflix, 2019).
O filme é uma alegoria, com o objetivo de provocar o público a refletir uma questão: quando a necessidade mais básica e primaria para a vida humana – a comida – não chega a todos, o que os seres humanos são capazes de fazer?
Antes de saber do que se tratava o experimento social, o protagonista e algumas pessoas se candidataram ao Poço por escolha própria e outras foram postas lá por falta de escolha. Dentro da prisão vertical subterrânea, os indivíduos são colocados dois por andar, a comida desce numa plataforma, as pessoas que estão nos andares mais altos podem se fartar da comida sem se importar se haverá comida para os andares abaixo. A cada trinta dias e de forma aleatória, os de cima sobem e os debaixo descem. Mesmo tendo passado fome no mês anterior, quando se encontra num andar mais alto, é possível sentir empatia e solidariedade pelos que estão abaixo de você?
No começo o protagonista se nega a comer não aceitando que agora, querendo ou não está é a sua realidade. Mas quanto tempo ele leva para aceita-la? Mesmo parecendo, não e tão obvio assim.
O filme não explica muitas coisas propositalmente e em nenhum momento vemos se as celas possuem a porta pela qual os prisioneiros são trocados de andar. O próprio diretor disse que este filme não é uma crítica sobre capitalismo ou socialismo, mas o que significa, ele deixa para o espectador.
Evidente são as referências ao catolicismo, como passagens literais da bíblia, os sete pecados capitais, a ideia recorrente de purgatório e o sacrifício para enviar uma mensagem para administração. Se este filme causar reflexão no espectador, o sacrifício não foi em vão.
O isolamento social pode salvar vidas, se você puder, fique em casa. Assim como também é inegável seu impacto social e econômico. Portanto, podemos pensar no próximo fazendo o que estiver ao nosso alcance e assim começar a sair do estado de negação. Por ora, importante é estar atendo ao que acontece dentro de si – lembre-se do seu farol – tomar as precauções e seguir as orientações do Ministério da Saúde. Mantenha o contato com seus amigos e familiares usando tecnologia, procurando informações de fontes confiáveis, montando uma nova rotina e tentando se adaptar ao momento presente.
Após a negação, começamos a experimentar outra emoção, mas isto ficará para o próximo texto. Como tudo é cíclico, iniciamos e retornamos a Grécia, do teatro e ao mito da Pandora presenteada por Zeus com uma caixa, cuja única orientação era não a abri-la. Ela não se conteve em curiosidade, e ao abrir uma fresta libertou todos os males como: doença, a guerra, a velhice, a mentira, os roubos, o ódio, o ciúme, entre outros. Ela tentou fechar antes que todos saíssem, mas a única que ficou foi a esperança. Não é obvio?
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Referências
ATLAS OF EMOTIONS. EKMAN, Paul. (Opção em Português), 2020 Disponível: http://atlasofemotions.org/#introduction/. Acesso em 08 abr. 2020.
Bennett, Nathan and Lemoine, James, What VUCA Really Means for You (Jan/Feb 2014). Harvard Business Review, Vol. 92, No. 1/2, 2014. Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=2389563
CONTAGIO (Contagion). Direção: Steven Soderbergh: Warner, 2019. (106 minutos).
O POÇO (El Hoyo). Direção: Galder Gaztelu-Urrutia: Netlflix, 2019. (94 minutos).ROSS, Elisabeth Kübler. Sobre a Morte e o Morrer. Editora Martins Fontes. São Paulo 1996.
PANDORA. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2020. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Pandora&oldid=57738502>. Acesso em: 8 mar. 2020.
ROSS, Elisabeth Kübler. Sobre a Morte e o Morrer. Editora Martins Fontes. São Paulo 1996.
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