O adolescer e a as redes

Com o foco atual na série “Adolescência” (Adolescence, Netflix, 2025), criada por Stephen Graham (que também atua na série) e Jack Thorne, decidi escrever sobre o processo de adolescer e as implicações atuais da internet nele.

Recordo que já escrevi aqui sobre a paternidade no século XXI. (Acesse “Coraline e a parentalidade atual: Como ser pai hoje em dia?“)

A infância e adolescência como invenções

A noção de infância e adolescência como fases distintas da vida não existiu sempre da maneira como entendemos hoje. O conceito evoluiu ao longo do tempo, influenciado por mudanças sociais, econômicas, culturais e científicas.

Adolescência. (Divulgação/Netflix).

Uma figura central no estudo da infância e adolescência é Philippe Ariès (1914–1984), um historiador francês conhecido por seus estudos sobre a história da infância, da família e das atitudes em relação à morte. Sua obra mais famosa, L’Enfant et la Vie Familiale sous l’Ancien Régime (História Social da Criança e da Família, 1960), teve grande impacto ao argumentar que a noção moderna de infância é uma construção histórica relativamente recente.

Foi só à partir de meados do século XVII na Europa renascentista que a infância passa a ser vista como uma fase com suas próprias complexidades e necessidades.

A própria palavra infância merece uma nota à parte. A palavra infância vem do latim infantia, que significa “incapacidade de falar” (in = não + fari = falar). Originalmente, o termo se referia ao período da vida em que a criança ainda não tinha desenvolvido plenamente a fala, mas pode ser interpretado como aquele que não tem direito à fala.

Stephen Graham e Owen Cooper como Eddie Miller e Jamie Miller respectivamente. (Reprodução/Netflix)

O conceito de adolescência como uma fase distinta da vida começou a se estruturar no final do século XIX e início do século XX. O psicólogo americano Granville Stanley Hall (1844 – 1924) publicou, em 1904, Adolescence: its psychology and its relations to physiology, anthropology, sociology, sex, crime, religion and education, onde descreveu a adolescência como um período de “tempestade e estresse”, marcado por mudanças físicas, emocionais e sociais.

Granville Stanley Hall [1844 – 1924] (imagem de domínio público)
Granville Stanley Hall adolescence psychology
(Reprodução/Internet Archive)

Na obra, Hall argumenta que a adolescência não é apenas uma extensão da infância, mas uma fase de transição com características próprias, marcada por profundas mudanças físicas, emocionais e psicológicas. Ele descreve a adolescência como um período de conflitos intensos, onde os jovens experimentam oscilações emocionais, impulsividade, rebeldia e questionamento da autoridade. Essa visão influenciou muitos estudos posteriores sobre o comportamento adolescente.
Hall foi influenciado pela teoria evolucionista e propôs que o desenvolvimento individual reflete o desenvolvimento da espécie humana. Segundo ele, a adolescência corresponderia a uma fase de transição primitiva para civilizada, onde o jovem passaria por um “renascimento” psicológico. Hall defendia um sistema educacional mais adequado às necessidades dos adolescentes, levando em conta suas transformações emocionais e intelectuais. Ele acreditava que a escola deveria estimular a criatividade e o pensamento crítico dos jovens.

A adolescência e a modernidade

Na modernidade, com o avanço das tecnologias, o aumento da conectividade e a transformação dos vínculos familiares e sociais, os desafios enfrentados pelos adolescentes se tornaram ainda mais complexos. Me parece que a internet e a pressão para a presença social mostrada na série aumenta a distância entre pais e filhos, que me parece algo natural em alguma medida.

Segundo Juan-David Nasio:

“A adolescência é uma passagem obrigatória, a passagem delicada, atormentada mas igualmente criativa, que vai do fim da infância ao limiar da maturidade. Um adolescente é um menino ou menina que cessa gradativamente de ser uma criança e ruma com dificuldade para o adulto que virá a ser” (2011, p. 13).

Pais e filhos sempre habitam mundos diferentes, uns não entendem as necessidades e complexidades do que é ter vivido em cada momento. “Como ninguém sabe direito o que é um homem ou uma mulher, ninguém sabe também o que é preciso para que um adolescente se torne adulto” (Calligaris, 2000, p. 21)

O adolescente se depara com a necessidade de se posicionar diante do desejo dos outros (pais, sociedade, parceiros amorosos), e passa por uma transformação das identificações. Além disso, o jovem precisa lidar com a função paterna (normas e regras), podendo tanto aceitá-la quanto desafiá-la.

“Em suma, o adolescente é levado inevitavelmente a descobrir a nostalgia adulta de transgressão, ou melhor, de resistência Às exigências antilibertárias do mundo. Ele ouve, atrás dos pedidos dos adultos, um “Faça o que eu desejo e não o que eu peço”. E atua em consequência”. (Calligaris, 2000, p.28)

A modernidade trouxe mudanças nos papéis familiares, enfraquecendo muitas vezes a “função paterna” — no sentido simbólico descrito por Jacques Lacan (1901 – 1981).

Para conectarmos novamente com o pensamento de Calligaris (1948-2021):

“Ao longo de mais ou menos 12 anos, as crianças, por assim dizer, se integram em nossa cultura e , entre outras coisas, elas aprendem que há dois campos nos quais importa se destacar para chegar à felicidade e ao reconhecimento pela comunidade: as relações amorosas/sexuais e o poder (ou melhor, a potência) no campo produtivo, financeiro e social.” (2000, p.14).

As redes sociais e o universo digital alteraram significativamente a maneira como os adolescentes constroem sua identidade. O excesso de exposição, a necessidade de validação externa e a comparação constante com os outros geram angústias ligadas à autoimagem e à autoestima. Na perspectiva psicanalítica, o “eu virtual” pode ser visto como uma extensão do imaginário lacaniano, um reflexo distorcido do self que pode gerar frustrações e ansiedades.

Recomendo esse Café Filosófico de 2018 sobre adolescência com Diana Corso e Mario Corso

Incel e Red Pill

Dois termos que a série menciona são Incel e Red Pill e por isso acho válido explicar rapidamente do que se tratam. Ambos fazem parte de subculturas digitais ligadas a visões polarizadas sobre gênero, relacionamentos e dinâmicas sociais. Embora tenham pontos em comum, representam fenômenos distintos que emergem de frustrações individuais e são amplificados pelo anonimato da internet.

A palavra Incel vem da abreviação de involuntary celibate (celibatário involuntário). O termo foi criado nos anos 1990 por uma mulher que queria discutir dificuldades românticas, mas, com o tempo, a comunidade incel se tornou predominantemente masculina e passou a expressar ressentimento contra as mulheres e a sociedade.

Os incels acreditam que são excluídos dos relacionamentos por fatores externos, como aparência física ou estrutura social, e enxergam o desejo feminino como seletivo e cruel.

A Red Pill (“pílula vermelha”) é um conceito derivado do filme Matrix (1999), onde tomar a pílula vermelha significa “acordar” para a verdade oculta. Na cultura digital, esse termo foi apropriado por grupos masculinistas que afirmam ter despertado para a “realidade” sobre as relações entre homens e mulheres.

Os adeptos do Red Pill defendem que a sociedade favorece as mulheres e que os homens precisam aprender a se impor.

Embora algumas partes do movimento enfatizem autodesenvolvimento masculino (fitness, finanças, mentalidade forte), muitos discursos derivam para a misoginia, enxergando as mulheres como manipuladoras ou interesseiras.

Para saber mais sobre as noções de masculinidade e formação do que se entende por homem, recomendo também esse Café Filosófico de 2008 com Contardo Calligaris e o vídeo sobre Masculinidade Frágil por Christian Dunker (1966-).

Conclusão

A adolescência, vista pela psicanálise, continua sendo um momento de intensa transformação psíquica, no qual o sujeito enfrenta a tarefa de reorganizar suas identificações e construir sua identidade. No contexto moderno, as novas tecnologias, as mudanças nas configurações familiares e os desafios relacionados à saúde mental demandam um olhar psicanalítico atualizado e aberto às transformações da sociedade. Se antes a psicanálise focava nos conflitos internos do adolescente, hoje ela também precisa considerar os impactos do mundo externo e as novas formas de subjetivação que emergem na era digital.

Até a próxima,

Igor Banin

Referências Bibliográficas

Calligaris, C. (2000). Adolescência. São Paulo: Folha.

Nasio, J.-D. (2007). Como agir com um adolescente. Rio de Janeiro: Zahar.


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