Finitude e felicidade: o lembrar da morte enquanto incentivo ao bem viver.

Referência: cafeteria do Teatro Commune, São Paulo – SP

Em um mesmo dia, houve um encontro com a notícia sobre a partida, o falecimento de uma querida vizinha. E ao mesmo tempo, no mesmo dia, a oportunidade, ao longo de mais de 20 anos, de celebrar pela primeira vez o aniversário da minha irmã mais velha ao lado dela. Morte e vida, lamentando o trágico e doloroso certeiro imprevisto. E celebrando mais um ano de saúde, afeto e de presença física.

Referências de vivências particulares, mas não únicas. Situações a atemporais, que nos cercam de modo direto ou indireto, agora, em um passado distante ou daqui a um incerto momento.

O texto seguirá de modo pessoal, a fim de abordar sobre finitude e felicidade. Afinal, como falar de algo tão subjetivo e único a cada indivíduo, sem me colocar em primeiro lugar? Ele não seguirá através primordialmente de conceitos científicos, mas sim através de observações e vivências, que integram aprendizados que convidam a refletir sobre o “bem viver”. A propósito, muitas vezes este tende a ser o destino às quais as inquietações, dúvidas e escolhas nos faz recorrer. “Como bem viver?…”.

Finitude, felicidade e uma visita no pilar da espiritualidade.

Percorrendo experiências vividas, lidas ou ouvidas, me aproximo do constante lembrete sobre como a vida é finita. A vida terrena, claro, como tudo que habita o “planeta azulzinho”. No além céu ou abaixo da terra, cabe a cada um imaginar, sentir ou se instruir sobre o que preenche esses espaços distantes, inalcançáveis aos olhos, mas próximos a capacidade de cada um se aventurar nas questões a respeito de certos mistérios da vida. A isso, podemos nomear de espiritualidade.

Nesta vida finita e enquanto se busca o cultivo da felicidade, há um tendencioso convite a cuidar da espiritualidade. Seja Deus, Buda, Alá, o Universo, a Lua, Zé Pilintra, Ogum, Nossa Senhora ou qualquer entidade que assume o caráter de proporcionar uma vivência enquanto fruto de um trabalho em equipe. Algo voltado ao livre arbítrio e a alguma dada proteção divina. Ou quem sabe, até uma dada explicação divina, que não se sustenta apenas com as afirmações factíveis.

Espiritualidade, uma ligeira ponte a felicidade. Afinal, ela expande, transcende a distância aos quais os olhos não alcançam. Para alguns, ampara, conforta, promove o incentivo ao cuidado e sustenta as dificuldades encontradas ao longo dos percursos.

O que a finitude tem a nos dizer?

Outro lembrete do remetente finito, é sobre a importância de enquanto se vive, buscar pela felicidade. Não só por uma única ponte, mas por uma estrutura que se edifica através de diferentes pilares. Entre todos eles, o cuidado. Felicidade enquanto o exercício de cuidar. Frases do finito, que reforça sobre a mutabilidade de tudo que na Terra habita. Ele, que sinaliza sobre os limites, sobre a impotência em estar em mais de um lugar ao mesmo tempo ou de dar conta de tudo em único momento. O finito recorda que é preciso estabelecer um filtro, zelar por um bom discernimento, para assim cuidar, e quem sabe, alcançar ligeiros felizes momentos.

Nesta vida ligeira, para onde encaminhar o bom discernimento, a fim de se esbarrar com a felicidade?

Para o cuidado. Se há limites de tempo, de condição, de duração, de capacidade e de espaço, inicialmente se conscientizar já é uma forma de cuidado. E o que virá depois será fruto do trabalho que se dedicar a conhecer aquilo que é necessário e que realmente importa ao bem viver, particular de cada. Algo em torno do autoconhecimento, uma ferramenta que tende a ser reparada constantemente, se atualizando a cada mudança e validando cada permanência.

Okay, e o que vem depois do autoconhecimento?

O cuidado com a espiritualidade, quem sabe. O primeiro movimento é totalmente personalizável a cada existência. Há outras opções na estrutura de pilares. Uma delas é o corpo, por exemplo. Além, claro, da mente, o pilar das relações, o pilar do trabalho, o lazer, o desenvolvimento, o propósito, a solidariedade, entre outros.

O que vem depois será fruto da consciência que valida a necessidade humana de desenvolver em si potências que concretizam os anseios, os desejos e até mesmo as próprias necessidades que invadem cada um, em suas respectivas formas e com suas devidas intensidades. A diferença será a descoberta a respeito do tesouro particular de cada um. O gesto de conhecer, entender aquilo que há de mais valor na jornada enquanto se vive.

Aos que ficam pós uma dolorosa partida ou aos que se aproximam deste momento tão temido, se deparam com as “sugestões que poderiam ter sido vividas”. Como por exemplo, o cuidado com o tempo investido em cada coisa. A seleção sobre quais coisas seriam. E o tempo despendido em cada uma delas, claro. Não como um cronômetro ou relógio que dosaria precisamente, mas que saberia dosar à medida que sente.

O relógio biopsicológico indicaria a hora de parar, a hora de começar, a hora de dar uma pausa.  A hora de não mais voltar, a hora de arriscar, a hora de pedir ajudar, a hora de investigar. Ou quem sabe a hora se aprofundar um pouco mais até esquecer das próprias horas. Reparos nas horas que indicariam os momentos de maior proximidade ou até mesmo de encontro com a felicidade.

Seja como for, a hora é sempre agora. O cuidado pode ser a toda hora. Se dedicar ao que gosta, fazer o que é preciso, refletir sobre o finito, zelar pela natureza, se envolver no afeto, abrir as portas para alegria e ceder passagem a tristeza, a raiva ou qualquer outra emoção humana que surge de visita. Cuidar das relações, percorrer estradas que levam aos mais sinceros objetivos.

A hora é sempre agora pra lembrar da finitude e buscar pela felicidade, enquanto pode, agora. Independente do ponto partida, seja pra quem vive a oportunidade de celebrar mais um ano de vida. Ou para quem ficou com a dolorosa saudade da partida de um ente querido. Felicidade não tem a ver só com a condição de alegria. Mas sim desse constante movimento em tentar se aproximar de condições que mais favorecem o transpor das dificuldades, das profundas dores, o orgulho batido, o egoísmo, o medo, a angústia, o vazio ou qualquer ligeira ou longa visita que nos abita.

Felicidade é cuidar dessa vida finita. Em uns momentos, fazer o que é necessário. O descanso, a refeição, a dedicação ao trabalho, o encontro, a “fala entalada”, a criação da arte, a visualização da arte, o contato com a natureza, o rezo, a atenção ao momento, a respiração, a ida ao médico, o pedido de casamento, o término do relacionamento, a prática do hobby, a iniciativa de fazer algo novo, experimentar uma comida ou a ida em um novo canto, estabelecimento.

Felicidade é descoberta e envolvimento, cuidado com a vida finita, que transcende entre a partida e a celebração de uma vida que habita o “planeta azulzinho”.

Uns ligeiros lembretes que o “bem viver” nos convida:

  • Gradualidade

Há objetivos, seja no âmbito de necessidades ou desejos, que se concretizam através da condição da gradualidade. Logo, é preciso clareza pra organizar brevemente o passo a passo necessário para o alcance dos objetivos. A fim de manter sinalizado que certas coisas não mudam, não se resolvem ou não se concretizam “pra ontem”. Mas sim, gradualmente, a cada encontro com a etapa necessária que contribui para o surgimento por inteiro daquilo que se idealiza.

De modo geral, se trata de organização, cumprimento das etapas e constância a esta gradualidade.

  • Iniciativa

Uma hora é preciso começar. E a hora pode ser agora, dentro do que é possível. Digamos que ela é a porta de entrada para a manutenção da gradualidade. E se o tempo corre e é finito, quão importante é se conscientizar sobre a melhor hora para iniciar. Iniciar, claro, o passo que dá.

  • Limites

Reconhecer os próprios limites. Oras para respeitá-los, oras para percebê-los e quem sabe escolher ultrapassá-los. Em condição de cuidado, claro. E através de uma escolha concedida para experimentar essa ultrapassagem.

Lidar com eles em uma relação amigável. Lembrando que os reconhecer e vivenciá-los não é sinônimo de fracasso. Mas sim de uma condição tão presente e comum a todos. Vale lembrar sobre o finito, por exemplo, a manhã também acaba, o anoitecer valida seu limite. A rosa morre e o ser humano também. Fisicamente, o Homem pode estar apenas em um lugar no único momento. Enfim, formas de exemplificar o quanto o limite é diariamente e constantemente exposto em nosso dia a dia.

  • Validação

Validar a própria história, as próprias condições, características, relações, preferências, necessidades e tudo que contempla cada indivíduo. O se comparar com o outro é válido desde que sirva enquanto incentivo, inspiração, identificação ou até mesmo a ligeira sensação de pertencimento e entendimento.

Se comparar através das redes sociais ou de qualquer encontro que provoque a manifestação de inferioridade, culpa, autocrítica negativa e improdutiva, que apenas provoca sofrimento e novas limitações, é um movimento que não proporciona o “bem viver”. A princípio, o gesto de se comparar é natural. O cuidado precisa se manter no modo em que se envolve emocionalmente e na construção de conceitos sobre si mesmo, enquanto se compara.

O convite é se conhecer e se apropriar de si mesmo.

  • Mutabilidade

Tudo muda, oras de modo esperado e oras em situação imprevistas e até mesmo indesejadas. Nem tudo está ao nosso alcance e sob nossos controles, nossa capacidade de organizar, planejar, prever ou qualquer habilidade psíquica e cognitiva que tenhamos enquanto ser humano.

As condições externas existem e interferem de modo significativo o percurso de nossas vidas. Se conscientizar desta condição imposta a todos nós, é um breve cuidado inicial para que se conscientizamos da importância em desenvolver habilidades para minimizar manifestações ansiosas, para fortalecer nossa resiliência, nossa capacidade de se adaptar, de recomeçar, de não saber sobre tudo sempre e de seguir rumo a proposta do “bem viver”, apesar do constante movimento das mudanças. Oras previstas, imprevistas e às vezes até indesejáveis.

É válido também se dar contas que muitas vezes as mudanças ocorrem em nosso universo psíquico. Por quantas vezes, mudarmos nossas prioridades e necessidades, ao longo de cada contexto da vida.

  • Autocuidado

Se perceber, se conhecer e aprender a manejar os próprios limites, as dificuldades, as potencialidades e a concretização dos anseios.

O movimento de cuidar da condição clínica do corpo, do bem-estar, do universo psíquico e espaço físico que nos rodeia. O movimento de se atentar, de se envolver com aquilo que é necessário, com aquilo que é importante enquanto vivencia essa vida finita.

O gesto de pedir ajuda, quando necessário. Ou de se informar quando a velha informação ou a dúvida não sustentam mais.

Na despedida deste texto, digo…

Felicidade e finitude, duas direções. Uma enquanto meio, a outra enquanto destino final. E este texto tão pessoal, enquanto uma experiência que convida você leitor (a) a se apropriar do tempo que or você passa e te convida a reparar, e direcionar aonde faz sentido usá-lo.

Por Tayna Wasconcellos Damaceno.

Referências

CAMALIONTE, Letícia G.; BOCCALANDRO, Marina P. R. Felicidade e bem-estar na visão da psicologia positiva. Bol. – Acad. Paul. Psicol., São Paulo, v. 37, n. 93, p. 206-227, jul.  2017.

Disponível aqui – Acesso em 26/03/2023.

GOMES, Daniele M.; SOUSA, Airle M. A morte sob o olhar fenomenológico: uma revisão integrativa. Rev. NUFEN, Belém,  v. 9, n. 3, p. 164-176,  2017 . 

Disponível aqui – Acesso em 26/03/2023

LEVISKI, Bárbara L.; LANGARO, Fabíola. O olhar humano sobre a vida: a consciência da finitude. Rev. SBPH,  Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, p. 49-69, jun.  2014.

Disponível aqui – Acesso em 26/03/2023.

VARELLA SOUZA, Anna L. S. M.; AGUIRRE ANTÚNEZ, Andrés E.. Felicidade: a espiritualidade como possível caminho. Revista Relegens Thréskeia, v. 10, n. 1, p. 56-65, jun. 2021.

Disponível aqui – Acesso em 26/03/2023.

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