De Freud até o século XXI
Vamos fazer agora uma viagem, uma viagem ao início da Psicanálise, mais ou menos como a conhecemos hoje.
A interpretação dos sonhos constituiu a primeira via das investigações da Psicanálise, empreendida por Sigmund Freud. Com a falha de seu projeto para uma psicologia científica, Freud se debruçou sobre os conteúdos obscuros da produção de sonhos.
A obra magna de Freud, que leva o nome do nosso texto de hoje, foi publicada em 1899, porém com a data de 1900. Sabem por quê? Por que Freud queria que fosse o livro do século. E foi.
É importante apontar que, me refiro aqui ao sonho enquanto formação onírica, presente durante nosso sono, e não de sonho, enquanto meta, algo desejado e muitas vezes inalcançável.
Os sonhos
Na Antiguidade, o sonho era fonte de especulações por parte dos estudiosos. Era tido como ferramenta para previsão do futuro, podendo indicar boa fortuna para aqueles que fossem retratados no sonho do sonhador, ou ainda um mau agouro, a depender da forma como os acontecimentos tomavam vez.
Com a Psicanálise, passamos a ter um entendimento distinto sobre a formação e função dos sonhos.
Freud fala sobre as fontes dos sonhos, sendo elas quatro: “(1) excitação sensoriais externas (objetivas); (2) excitações sensoriais internas (subjetivas); (3) estímulos somáticos internos (orgânicos); e (4) fontes de estimulação puramente psíquicas.” (Freud, 1900/1996, p. 59).
As “excitações sensoriais externas” são estímulos do ambiente, que acontecem enquanto estamos dormindo, como barulhos próximos, ou o contato de algum objeto em nossa pele. Já as internas, dizem respeito às percepções sensorias que nos são familiares, e que tem sua origem em nossos órgãos dos sentidos.
As excitações orgânicas são estímulos que ocorrem internamente, em nosso organismo. Como diz Freud (1900/1996): “Um escritor tão remoto quanto Aristóteles já considerava perfeitamente possível que os primórdios de uma doença se pudessem fazer sentir nos sonhos, antes que se pudesse observar qualquer aspecto dela na vida de vigília…” (p.70). A quarta fonte dos sonhos seria a de estímulos puramente psíquicos, isto é, percepções, afetos que tivemos em nossa vida, quando acordados. Aqui está o desejo (Lacan, 1964/1988).
Naturalmente, os sonhos não são desmembrados de tal maneira à demonstrar tal ou qual fonte, mas são, em sua grande maioria, uma combinação desses fatores.
Manifesto x Latente
A barreira do recalque é enfraquecida durante a vida de sonho, permitindo que conteúdos latentes, isto é, que dizem respeito ao inconsciente, possam emergir para a consciência. Pensamentos, desejos e sentimentos que durante o estado de vigília não são suportados pelo consciente.
No passado, acreditava-se que os sonhos eram inseridos na cabeça do sonhador por deuses, talvez como forma de aviso. Não seria essa, uma forma de nos desresponsabilizar pelo conteúdo sonhado? É nosso aquele desejo que aparece em cena, quando em um sonho erótico imoral, por exemplo (Freud, 1900/1996).
Podemos distinguir o conteúdo dos sonhos (e do discurso do sujeito, como um todo), entre manifesto e latente. O que é isso? O manifesto é a parte consciente daquilo que contamos de nosso sonho. É, normalmente, uma deformação daquilo que sonhamos de fato. Mas o que o sonho quis dizer, na verdade, é outra coisa.
Aí está o que chamamos de latente. Tudo aquilo que está por baixo da superfície. A clássica analogia freudiana do iceberg encaixa muito bem aqui. Aquilo à que o sonho se remeteu, na verdade. Se fala sempre de um desejo, algo que aparece aqui e ali no discurso, que emerge a todo o momento (Lacan, 1953-1954/1996).
Deslocamento e condensação
Dois mecanismos são diretamente ativados durante o processo do sonhar, são eles: Deslocamento e a Condensação.
O deslocamento diz respeito à uma mudança, de um lugar para outro, e a condensação, é a somatória de dois ou mais elementos.
Lacan, ao lançar mão da Linguística como interface de suas explanações psicanalíticas, fala do deslocamento enquanto metáfora, e a condensação, metonímia.
O que é metáfora? Segundo o Dicionário Michaelis Online (2017), metáfora é uma “figura de linguagem em que uma palavra que denota um tipo de objeto ou ação é usada em lugar de outra, de modo a sugerir uma semelhança ou analogia entre elas; translação (por metáfora se diz que uma pessoa bela e delicada é uma flor, que uma cor capaz de gerar impressões fortes é quente, ou que algo capaz de abrir caminhos é a chave do problema)”.
Aparece frequentemente no discurso de analisandos, por exemplo, quando estes falam de uma pessoa, mas na realidade estão se referindo à outra.
E a metonímia?
É essencialmente, uma “Figura de linguagem que tem por fundamento a proximidade de ideias, havendo o uso de um vocábulo fora de seu contexto semântico. Trata-se do uso de uma palavra por outra, explorando-se a relação existente entre elas.” (Dicionário Michaelis Online, 2017).
A metonímia aparece, justamente como a condensação, quando dois elementos se fundem.
Ambos os elementos são constitutivos das nossas narrativas oníricas, são mecanismos, por onde o desejo consegue emergir de uma forma “disfarçada”.
Na visão lacaniana inicial, faz-se a diagnóstica estrutural com base na ausência ou presença da metáfora paterna. O que isso quer dizer? Que divisamos a neurose da psicose, baseados na interiorização ou não da lei simbólica, da presença do corte (paterno) (Riolfi, 2014).
Os sonhos na clínica
Os sonhos, como já disse, são (ou podem ser) elementos do trabalho analítico. Estão entre os quatro pontos que nos atentamos, em nossa escuta enquanto analistas. São eles: o sonho, ato-falho, chiste e o sintoma.
Como diz Lacan (1953-1954/1996): “A revelação é o móvel último daquilo que procuramos na experiência analítica” (p. 69). A interpretação dos sonhos de nossos analisantes, permite-nos acessar conteúdos, que a primeira vista não se relacionam com a queixa consciente (manifesta), mas que contém elementos inconscientes (latente), importantíssimos ao trabalho analítico.
O sonho é um momento em que a barreira exercida pelo recalque (defesa maior, em sujeitos de estrutura neurótica), parece diminuir, fraquejar, e alguns conteúdos que são inacessíveis em estado de vigília, conseguem emergir.
“É na dúvida mesma que o sujeito manifesta sobre certas partes do sonho, que ele, Freud, que o escuta, que o espera, que está lá para revelar o seu sentido, reconhece justamente o que é importante.” (Lacan, 1953-1954/1996, p.64). Nesta passagem, percebemos a posição de escuta e de intervenção do analista. Nos momentos onde o paciente para, onde não fala, por vergonha talvez, ali está algo de uma palavra verídica (Lacan, 1953-1954/1996).
Todavia, a noção de fantasia nos é muito valiosa neste momento. A fantasia enquanto pertencente ao Imaginário, que rege nossas percepções e vigília, atuando como formulação possível ao terror do encontro com o Real, isto é, do nosso desejo mesmo, é, por vezes, menos penosa do que os sonhos. Acordamos, porque não podemos encarar algum conteúdo que emerge. Acordamos, para continuar sonhando (Zizek, 2010).
Até a próxima.
Por Igor Banin
Referências Bibliográficas
Freud, S. (1900/1996). A Interpretação dos Sonhos. In A Interpretação dos Sonhos (I). (pp. 11-652 Obras completas de Sigmund Freud, v.4). Rio de Janeiro: Imago.
Lacan, J. (1953-1954/1996) O eu e o outro. In Os escritos técnicos de Freud (pp. 56-73, Os Seminários, Livro I). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Lacan, J. (1964/1988) Tiquê e Autômaton. In Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (pp. 55-68, Os Seminários, Livro XI). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Riolfi, C (2014) Palavras, nada mais do que palavras: O que o analista lacaniano faz com o que lhe dizem? In Psicanálise, a clínica do Real. (pp. 161-176). Barueri: Manole.
Zizek, S. (2010). De Che vuoi? À fantasia: Lacan De olhos bem fechados. In Como ler Lacan. (pp. 53-76). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
4 comentários
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