Compreendendo alguns pontos do olhar da Psicologia de base fenomenológica-existencialista através do filme Raya e o último Dragão
O processo de ensino e aprendizagem da Fenomenologia-existencialista pode ser um tanto quanto desafiador. Lembro-me da quantidade de esforço e atenção que eu direcionava às aulas e dos comentários partilhados entre os colegas de formação. Parecia ser uma aula que nos ensinava a pensar de maneira totalmente diferente. Novos sentidos estavam sendo apresentados a termos e palavras que antes não eram entendidos assim. Grande admiração aos Mestres encarregados de lecionar Feno!
Jardim (2013) abordou os desafios presentes no processo de assimilação desta base teórica e apresentou a ideia de buscar se adotar uma postura fenomenológica inclusive neste processo.
“A aproximação com a fenomenologia para aquele que se dedica a estudá-la é algo que pede em si uma permanência, um demorar-se nos estudos para que a fenomenologia possa se mostrar por si. A compreensão fenomenológica caminha lado a lado com o colocar-se em uma postura fenomenológica, de modo que também o aprendizado da fenomenologia acontece agindo-se fenomenologicamente” (JARDIM, 2013)
Uma proposta de caminho: exemplos que fazem sentido
Nesta caminhada de compreensão da fenomenologia, nos deparamos com alguns termos e conceitos importantes. Pensar em contextos que possam exemplificar estes pontos pertinentes à teoria pode ser uma possibilidade para o início desta caminhada. Considerando esta intenção didática convido-lhes a conhecer um pouco sobre o Filme “Raya e o último dragão”. Fica o aviso sobre spoilers a partir daqui!
Raya e o último Dragão
Há 500 anos, as populações da Terra conviviam em harmonia com Dragões mágicos. Havia prosperidade, segurança e tranquilidade. Juntos, todos os povoados formavam Kumandra. Surgiram os Drums, seres fruto da discórdia humana que consumiam toda a vida e transformavam tudo em pedra.
Com o objetivo de conter os Drums, os dragões uniram suas magias e criaram uma jóia protetora. Sisu, um dos dragões, foi a última a adicionar sua magia à jóia. Com a jóia, todos os seres humanos que haviam sido transformados em pedra ganharam vida novamente. Nenhum dos dragões retomou a vida e Sisu desapareceu.
O sacrifício dos dragões pela vida não foi vivenciado pelos humanos com gratidão e paz. Kumandra foi dividida por fronteiras e os povos se viraram uns para os outros.
É neste contexto que existem Raya e Namari, princesas de dois povos distintos que em épocas passadas formavam Kumandra.
Uma pitada teórica
Alguns conceitos importantes para os estudos da fenomenologia são: ser-aí, consciência intencional e tonalidades afetivas. Vamos explorá-los dentro do contexto do filme?
O conceito de Ser-aí diz respeito a como a fenomenologia compreende a relação homem-mundo. Ser-aí traz a ideia de que existe uma co-pertinência entre homem e mundo. É como pensar que o homem está lançado e sua existência se dá através e em relação com este mundo. Isto inclui considerar que as existências acontecem em horizontes históricos e as possibilidades existenciais se dão neste contexto.
Raya e Namaari, por exemplo, são duas princesas de diferentes povos e cada uma é da maneira que é em relação as possibilidades de “como ser uma princesa” que existem dentro destes contextos. Raya é do povo do Coração e Namaari é do povo da Garra. Quem você chutaria que pode ter mais abertura para sentimentos e quem pode ser mais arisca, por exemplo? Como as princesas estão vivendo neste contexto de rivalidade entre os povos, como poderíamos supor que o relacionamento entre as duas poderia ser?
Dentro da Fenomenologia-existencialista, o termo Consciência é empregado com significado bem diferente do encontrado dentro das teorias Psicanalíticas. Aqui a ideia de consciência relacional consiste na ideia de que estabelecemos consciência para com os outros seres e coisas. Sisu, o último dragão, traz em sua personagem uma maneira de ser com os seres humanos específica dela, específica da maneira que ela compreende os seres humanos. Então, poderíamos considerar, por exemplo, que isto diz respeito à consciência que ela estabeleceu para com os seres humanos.
E o que seriam as tonalidades afetivas? De uma maneira simples, tonalidades afetivas são como uma ótica, uma afinação ou uma cor. É como se todas as experiências da existência humana se dessem com algum sentimento presente que as tonalizassem. Sabe os Drums, os seres avassaladores que consomem tudo? Na animação eles são uma ameaça e trazem medo e preocupações para as pessoas. A presença dos Drums traz rigidez e imobilidade literalmente para os personagens, o que pode exemplificar o quanto o sentir medo “coloriu” a existência destes personagens. Já a personagem Raya parece vivenciar o temor dos Drums com coragem, buscando outras possibilidades. A tonalidade afetiva presente para ela parece ser outra.
A teoria presente na prática clínica
Na animação a personagem Raya realiza uma jornada em busca de Sisu com a intenção de ter seu pai de volta e restaurar a vida no reino de Kumandra. Ela vivencia conflitos, reflexões, ressignificações. Raya vai da desconfiança para a confiança. O processo psicoterapêutico possui suas particularidades em relação a cada pessoa. O desdobrar de cada processo é único e pode apresentar conflitos, reflexões e ressignificações assim como a jornada de Raya.
Muitas vezes, faz parte do processo psicoterapêutico de base fenomenológica acompanhar o cliente no movimento de olhar para a história de vida dele e acolher com ele o se sentir desconfiado, desacolhido pela vida. A retomada de sentidos, o se sentir confiante em relação ao mundo e à própria existência também podem aparecer no decorrer do processo.
Por último, uma consideração
A intenção deste texto foi proporcionar uma pequena abertura para olhar a teoria fenomenológica de maneira introdutória e simples. Fica o convite a todos os curiosos para se aprofundarem nos textos referências. Ah, e também recomendo o filme!
Sintam-se à vontade para comentar ou apresentar sugestões.
Até mais!
Bárbara de Souza Miranda
Referências
FEIJOO, A. M., O homem em crise e a Psicoterapia fenomenológico-existencial.
JARDIM, L. E. F. Ação e compreensão na clínica fenomenológica existencial. In: EVANGELISTA, P. E. (ORG). Psicologia Fenomenológica-existencial: Possibilidades da atitude clínica fenomenológica. Rio de Janeiro. 2013.
DHEIN, C. F. A. Existências Enclausuradas à Automatização da Era da Técnica: Uma interpretação fenomenológico-hermenêutica das Compulsões na contemporaneidade.
POMPEIA, J. A.; SAPIENZA, B. T. Tonalidades afetivas na terapia. In: Os dois nascimentos do homem: Escritos sobre terapia e educação na era da técnica.
1 comentário
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