Durante os últimos anos tenho me interessado cada vez mais pelas culturas japonesa e chinesa e notei recentemente que não havia escrito nada diretamente sobre isso. Retomando a minha produção dos últimos tempos aqui, listei 08 livros para conhecer o Zen-Budismo e fiz uma pequena aproximação entre o Zen-Budismo e a Psicanálise lacaniana.

Tivemos a notícia recente (e curiosa) de que o governo japonês lançou um aplicativo de relacionamentos oficial, após mais um ano de queda na taxa de natalidade. Já são 8 anos seguidos de baixa e o último período registrou uma queda expressiva de 5,1%.

Com isso, pensei ser um momento interessante para refletir sobre alguns aspectos da cultura japonesa que me chamam a atenção, especialmente a noção de Kata (型). Naturalmente a intenção aqui é fazer apenas uma pequena aproximação a um tema complexo e fomentar a discussão acerca do tema, sem esgotá-lo de forma alguma.

O Psiquismo japonês

A psicologia japonesa é profundamente influenciada pelos valores culturais, tradições e estruturas sociais do país, resultando em uma abordagem única e diferenciada em relação ao comportamento humano e às interações sociais. A sociedade japonesa valoriza a coletividade e a harmonia, princípios que moldam a maneira como os indivíduos percebem a si mesmos e aos outros.

As tradições milenares, como a reverência aos ancestrais, a importância das cerimônias e rituais, e a adesão a normas sociais estritas, desempenham um papel crucial na formação da identidade individual e coletiva. Além disso, as estruturas sociais japonesas, como a hierarquia familiar, o sistema educacional rigoroso e a ética de trabalho dedicada (Karoshi), influenciam significativamente a saúde mental, as estratégias de enfrentamento e a dinâmica das relações interpessoais. Esses fatores culturais e estruturais se entrelaçam para criar um cenário psicológico onde a conformidade, a interdependência e a busca pela perfeição são altamente valorizadas, impactando profundamente a maneira como os japoneses lidam com suas emoções, seus relacionamentos e sua visão de mundo.

A cultura japonesa enfatiza fortemente o coletivismo, priorizando o grupo sobre o indivíduo. Nesse contexto, as pessoas geralmente colocam os objetivos do grupo e a harmonia social acima de seus desejos e necessidades pessoais. Essa mentalidade coletiva está profundamente enraizada na sociedade japonesa e influencia muitos aspectos da vida cotidiana, desde as relações familiares e profissionais até as interações sociais mais amplas.

Manter relações harmoniosas, conhecido como Wa, é uma prática crucial na cultura japonesa. A harmonia social é altamente valorizada, e há um esforço constante para evitar conflitos. Isso se reflete na maneira como as pessoas se comunicam e se comportam. A comunicação indireta é uma característica marcante, pois permite que os indivíduos expressem suas opiniões e sentimentos de forma sutil, sem causar desconforto ou confronto direto. Essa abordagem ajuda a preservar a paz e a harmonia nas relações, evitando atritos e mantendo o equilíbrio social.

A interdependência é um aspecto central da cultura japonesa, onde os indivíduos se veem como parte integrante de uma comunidade maior. Eles frequentemente derivam sua identidade e sentido de pertencimento de seus papéis sociais e das relações que estabelecem. Essa visão coletiva enfatiza a importância dos laços comunitários e da coesão social, levando as pessoas a priorizarem os interesses e o bem-estar do grupo acima de suas aspirações individuais.

Pertencer a grupos, como a família, o local de trabalho e a escola, é vital na sociedade japonesa. A lealdade a esses grupos é altamente valorizada e se manifesta de várias maneiras, desde o comprometimento com as responsabilidades familiares até a dedicação ao trabalho e à participação ativa em atividades escolares ou comunitárias. A identidade de grupo fortalece os laços sociais e promove um senso de segurança e apoio mútuo, criando uma rede de interdependência que sustenta o tecido social.

Interessante lembrar também o trabalho da antropóloga Norte americana Ruth Benedict (1887 – 1948), que fez o contraponto entre as sociedades ocidentais baseadas na culpa e a sociedade japonesa baseada na vergonha (Parker, 2020).

Amae

O conceito de Amae é uma das ideias centrais na psicologia japonesa, introduzido e amplamente discutido pelo psicanalista japonês Takeo Doi (1920 – 2009) em seu livro The Anatomy of Dependence (Amae no Kōzō), publicado originalmente em 1971, e traduzido para o inglês em 1973. Amae descreve um sentimento complexo de dependência emocional e é visto como um desejo de ser amado, cuidado e protegido por outros, semelhante a como uma criança depende de seus pais.

Do ponto de vista psicológico, amae é uma forma de dependência emocional que pode ser comparada à teoria do apego em psicologia ocidental, mas com características únicas. Enquanto a teoria do apego de John Bowlby (1907 – 1990) foca na necessidade de segurança e proteção nas relações de apego, amae se destaca por enfatizar uma dependência que é muitas vezes consciente e intencional, e que é socialmente aceita e incentivada. Em crianças, o amae pode ser visto no desejo de proximidade física e emocional com os pais, enquanto em adultos, pode se manifestar na busca por apoio emocional e aceitação incondicional por parte de colegas, amigos ou parceiros.

O conceito de amae molda profundamente as relações interpessoais no Japão. Ele encoraja um tipo de interação social em que as pessoas se sentem confortáveis em depender emocionalmente umas das outras, sem medo de julgamento ou rejeição. Isso cria uma rede de suporte emocional que é essencial para a coesão social. No entanto, essa dependência também pode criar desafios, especialmente quando há expectativas não correspondidas ou quando a necessidade de amae não é reciprocada, levando a sentimentos de frustração ou rejeição.

A psicanálise é entendida de maneira diferente diferente em terras nipônicas devido à diversos fatores. Entre ele estão aspectos culturais e sociais, alguns deles que apontei acima, questões linguísticas, como a ambiguidade inerente do idioma japonês, que levou Jacques Lacan (2003) à dizer que seria “impossível analisar um japonês”, e a tradição de cuidado com a saúde mental e bem-estar em geral.

” O ponto importante aqui é que há uma indeterminação de significado construído dentro da operação da escrita, e o sujeito japonês oscila entre a “palavra” (a coisa da consciência) e a “imagem” (a coisa do inconsciente)” (Parker, 2020, p. 76)

Para saber mais sobre o conceito de Amae e a forma como a psicanálise é entendida no Japão recomendo o texto Japão em Análise (2020), pelo psicanalista inglês Ian Parker, e esses dois vídeos abaixo:

A dualidade do psiquismo japonês também sempre me fascinou. Encontramos na literatura as noções de Giri e Ninjo. Giri pode ser traduzido como o dever ou obrigação para com o coletivo. Em contrapartida, Ninjo pode ser entendido como os sentimentos ou vontades individuais. É comum encontrarmos a análise de como o choque entre os dois forma a base do psiquismo nipônico. Trago aqui uma reflexão de Ruth Benedict (1972):

“Temem a própria agressividade que represam na alma, recobrindo-a com uma delicada conduta superficial. Costumam ocupar os pensamentos com minúcias triviais, a fim de afastar da consciência dos seus sentimentos verdadeiros” (p. 244).

A Noção de Kata

Para os amantes das artes marciais, a palavra Kata certamente vem associada à prática do Karatê-Dô. Ele compõe junto do Kihon e Kumite, as 3 partes essenciais da prática do Karatê.

(Demonstração do Kata Naihanchi Shodan, um dos katas fundamentais de vários estilos de karatê, entre eles o Shorin-Ryu).

O termo Kata (型) refere-se aos padrões formalizados de comportamento e prática em vários aspectos da vida, desde cerimônias do chá, passando por como se relacionar com seus colegas de trabalho, chegando até a forma como deve-se cometer suicídio (Adelstein, 2011). Kata incorpora a ideia de aprender e aperfeiçoar formas estabelecidas.

A prática do kata insta disciplina e um senso de maestria ao longo do tempo, promovendo paciência e perseverança, além de promover um senso de pertencimento e identidade coletiva, pois os indivíduos participam de práticas culturais compartilhadas. A ideia central do kata é a repetição e a perfeição de formas predeterminadas. Isso pode ter implicações significativas na maneira como os indivíduos percebem a responsabilidade e a tomada de decisões.

O kata impõe uma forma específica de realizar tarefas e comportamentos, o que pode levar os indivíduos a seguir essas normas de maneira automática, sem questionar ou considerar alternativas. Existe a frase famosa na sociedade japonesa de “o prego que se destaca é martelado”. Isso cria uma pressão social notável em jovens, o que pode ser entendido como um dos fatores das taxas elevadas de suicídio entre crianças e adolescentes no país.

(Cerimônia do Chá)

Ao seguir um conjunto prescrito de ações, as pessoas podem sentir uma segurança psicológica, pois estão cumprindo expectativas sociais claras e aceitas. Isso reduz a ansiedade associada à tomada de decisões, todavia a autonomia individual é minimizada. A responsabilidade pela escolha é deslocada do indivíduo para a estrutura cultural estabelecida, inibindo a criatividade e a inovação, já que os indivíduos são encorajados a seguir formas estabelecidas em vez de explorar novas possibilidades.

Vale ressaltar que a ideia de padronização de processos é altamente aplicada nos contextos industriais e corporativos devido à busca de eficiência, redução de custos e simplificação de processos. Pensando nisso, vale lembrar que historicamente o Japão foi responsável pelo desenvolvimento da metodologia Lean Manufacturing.

Lean é uma metodologia de gestão que visa maximizar o valor para o cliente, minimizando o desperdício. Suas origens remontam ao Sistema Toyota de Produção, desenvolvido no Japão nos anos 1940 e 1950. O principal arquiteto do Lean foi Taiichi Ohno (1912 – 1990), um engenheiro da Toyota, que identificou a necessidade de melhorar a eficiência operacional para competir com empresas ocidentais após a Segunda Guerra Mundial.

Conclusão

A noção de kata, ao proporcionar uma estrutura clara e prescrita para comportamentos e práticas, tem a vantagem de oferecer segurança e estabilidade, além de fortalecer a identidade coletiva. No entanto, isso também pode levar à despersonalização das escolhas e uma diminuição da responsabilidade individual, já que as decisões são guiadas por tradições e normas culturais, e não por escolhas pessoais. Esse conflito entre conformidade e autonomia é uma característica central da dinâmica psicológica no contexto cultural japonês.

Até a próxima,

Igor Banin

Referências Bibliográficas

Adelstein, J. (2011) Tóquio proibida. São Paulo: Companhia das Letras.

Benedict, R. (1972) O crisântemo e a espada: padrões da cultura japonesa. São Paulo: Perspectiva.

Doi, T. (1973) The Anatomy of Dependance. Tóquio: Kodansha International.

Lacan, J. (2003) Outros Escritos.  Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Parker, I. (2020) Japão em Análise: culturas do inconsciente.  São Paulo: Benjamin Editorial.

Categorias: Psicanálise

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