Chegamos ao último texto do ano de 2018. E neste espírito de introspecção de fim de ano que faz muitas vezes a religiosidade e a solidariedade aflorarem um pouco mais em muitas pessoas, decidi por fazer uma reflexão sobre como a espiritualidade tem se manifestado no sujeito contemporâneo. De acordo com Bock; Furtado e Teixeira (2008), sabe-se que os fenômenos psicológicos são uma experiência subjetiva constituída não só em âmbito pessoal, mas também no coletivo e cultural. Assim, o homem é fruto de sua história e sociedade. Logo, as mudanças nestes setores devem ser consideradas ao se estudar qualquer fenômeno psicológico; todo sujeito é fruto de seu tempo e história. Sabemos que o sujeito do século XXI é muito diferente do sujeito da época de nossos bisavós. Assim sendo, o modo de se relacionar com seus objetos de desejo bem como com as manifestações culturais também é distinto.
Meu objetivo neste texto é de demonstrar como o relacionamento com o numinoso ou sagrado em nossa época segue o impulso capitalista presente na sociedade ocidental dos dias atuais. Não se quer aqui fazer nenhum julgamento de valor ou fazer qualquer tipo de análise teológica. Uma vez que tais interpretações podem ser compreendidas pela fé e subjetividade de cada um. Aqui quero mostrar a religião como manifestação cultural da psique humana, pretendendo fazer uma clínica da cultura religiosa de nossa época sem inferir se tais manifestações são piores ou melhores do que em tempos passados, já que o trabalho do analista consiste única e exclusivamente em analisar. Dividirei aqui neste texto o tempo em dois períodos: primeiramente o tempo da Modernidade Sólida para se referir à modernidade do século XIX, na qual se inclui a época vitoriana em que Sigmund Freud viveu. E em segundo lugar, O tempo da Modernidade Líquida: Momento hodierno assim definido por Zygmunt Bauman.
Segundo Freud (1927), A civilização é composta de ideais culturais que são mais facilmente alcançados pelas classes mais favorecidas, porém, mesmo aqueles das classes mais baixas conseguem satisfazer seus impulsos narcísicos através do desdém de outros povos e culturas diferentes dos seus. Até o mais plebeu dos cidadãos romanos poderia se sentir superior aos povos dominados pelo império. A partir destas identificações culturais a classe oprimida se sujeita à classe dominante, pois vê nela seus ideias de ego.
Para explicar o surgimento da vida humana em comunidade, Freud (1913) aponta que a horda primeva viu nas forças da natureza que subjugavam os homens com poder descomunal, o mesmo poder que um pai exerce sobre suas crianças a partir do desejo de proteção paternal e também através do temor. O homem primitivo transformou as forças naturais em deuses aos quais pudessem pedir auxílio. Esses deuses acabaram por se diluir em um deus único que possuía as mesmas características do Pai da Horda.
Freud (1927), aponta que com o passar do tempo a religião deixou de ser apenas um escudo contra as forças da natureza e passou a intervir diretamente na moral. Os deuses da antiguidade foram condensados n’um único e onipotente pai, que vigia a todos punindo as más ações e recompensando as boas; a religião passa a servir como um meio de compensar os defeitos da civilização e sustentar as identificações entre dominantes e dominados.
Na sociedade sólida de Freud a religião era algo a ser estimado, e qualquer crítica ou dúvida sobre a existência do divino era visto como afronta ou imoralidade. De acordo com o primeiro psicanalista a religião é uma ilusão criada pela psique para se proteger do desamparo, apesar de hoje, na modernidade líquida, a religião não exercer seu poder e influência como outrora, muitas pessoas ainda tem apreço por ela. Contudo, as manifestações religiosas também sofreram os efeitos da fluidez de nosso tempo.
Karnal (2016), relata que na modernidade líquida, a religião está customizada. O deus do século XXI é o deus mais pessoal de todos, o mais influenciado pelo ego: “eu rezo do meu jeito”; “deus me entende”. A ideia de deus na modernidade líquida é infantilizada. A imagem do “deus da sexta-feira santa”, “deus do sofrimento” foi trocada por uma imagem pueril do criador; referir-se a deus como “papai do céu” está em voga. O Jesus juiz, o cristo condenador, está completamente fora de moda. O Messias que hoje interessa é aquele que vem ao encontro do fiel de braços abertos, às vezes até retratado como um “Jesus maneiro” com roupas descoladas. Deus deve se apresentar como “cool!”. Faz sucesso o líder religioso que fale de cura e prosperidade, aquele que exige penitência como forma de alcançar o paraíso tem seu templo frequentado por dois ou três cidadãos de cabelos brancos. O autor também nos diz que nos tempos atuais a religião está muito mais ligada a propaganda. É muito mais importante que as pessoas demonstrem sua fé através de adesivos e camisetas do que em vivências, rituais e comportamentos.
Freud (1930[1929]) pontua que o homem civilizado conseguiu atrasar a morte, encurtar a distância e criar equipamentos que parecem ter vindo de um conto de fadas. O homem civilizado tornou-se em um tipo de “deus prótese”.
“Deus pra mim é assim”, dizem seus modernos seguidores. Muitas vezes a opinião pessoal difere do dogma estabelecido. Isto já não é mais considerado uma heresia cuja punição seria excomunhão ou fogueira. Outrossim, as instituições religiosas se aproveitam desse pensamento criando diversos rituais para que possam atender a particularidade de todos. Existem missas carismáticas e tradicionais, assim como monges que tocam heavy metal e missas com tambores e danças africanas. Religiões evangélicas usurpam símbolos religiosos judaicos visando incrementar mais seu culto, mesmos que a religião de referência dos símbolos usados contrarie o dogma central do cristianismo. Outros seguimentos religiosos inventam diversos objetos e amuletos para cada tipo de situação: a vassoura abençoada para dona de casa; a carteira de trabalho ungida para o desempregado; a terapia do amor para os casais em conflito etc. De fato, todas estas coisas demonstram que a religião tem se adaptado ao indivíduo. Em contraste com a religião dos tempos sólidos que moldava o indivíduo à sua comunidade religiosa. A religião líquida faz com que a instituição se molde ao fiel. O cliente sempre tem razão! E obviamente isso não se estende somente ao cristianismo. Vemos no judaísmo, por exemplo, a dissolução dos rituais e uso de vestimentas cerimoniais exclusivamente masculinas. Os tefilim (pequenos cubos contendo trechos da torá dentro) podem ser vistos nas frontes e braços das judias com mais frequência. Algo impossível há 70 anos atrás. No candomblé o tempo de recolhimento para iniciação de no mínimo 21 dias sem contato com o mundo exterior, hoje pode ser feito em muitos templos em somente uma semana.
Outra coisa a ser pontuada é que, ao meu ver, todos os ritos na modernidade líquidas são vazios, sem qualquer característica numinosa, pois tendem a servir somente aos desejos materialistas e consumistas. O ritual que era vivido e reconhecido no passado, hoje não passa de simples etiqueta. Como tudo na modernidade líquida, a religião tem que ser divertida para ter valor. As instituições religiosas tentam fazer de seus cultos grandes espetáculos, que sempre resolvam os problemas mundanos. O “deus-prótese” na religião liquida é sempre esperado como Deus ex machina. Em dias de hoje reza-se: “Seja feita a minha vontade, assim na terra como no céu.”
Verificando o pensamento dos dois autores, pode-se notar que a manifestação da religiosidade em tempos passados podia ser visto como algo rígido, expiatório e podemos assim dizer, de caráter superegóico. Enquanto a espiritualidade atualmente, se manifesta como algo fluido voltado às necessidades mais egocêntricas e individuais. Podendo deste modo ser vista como tendo mais características voltadas ao princípio de prazer do id. Tais características também se fazem presentes em outras manifestações culturais nos dias de hoje. Freud (1929) teorizou que para existir a civilização, o ser humano teve de abrir mão do prazer para se ter um pouco mais de segurança. O sociólogo polonês, Zygmunt Bauman, crê que na sociedade líquida aconteceu justamente o contrário dos tempos de Freud, a civilização trocou um punhado de segurança por um punhado de prazer. “O princípio de realidade, hoje, tem de se defender no tribunal de justiça onde o princípio de prazer é o juiz que esta presidindo.” (BAUMAN,1998 p.9). Diante de uma organização sociocultural baseada no princípio do prazer as manifestações religiosas não poderiam ter outro formato a não ser aquele que foi discutido neste texto. Sendo a religiosidade fruto do simbólico-imaginário humano, esta tende, como tentei demonstrar, a se adaptar com o tempo. Há quem se adéque, há quem deseje permanecer na ortodoxia. Esta escolha também depende da estrutura de personalidade de cada sujeito.
Qualquer que seja o modo que você viva sua fé (ou sua falta de fé, pois aquele que escolheu o ateísmo está do mesmo modo ligado à crer que nada existe. No final o ateu também é um crente), ela continua sendo algo que desperta interesse e admiração em muitas pessoas, merecendo assim, a devida atenção em ser estudada por qualquer psicólogo. Podemos pensar ainda que tal tópico será tema de estudo ad infinitum, já que deus se encontra no registro psíquico do Real, impossível de ser simbolizado, deixando assim a religião como parte estrutural na formação da cultura. E já que acabei de me referenciar em Lacan, deixo um trecho no qual ele reflete sobre o futuro da psicanálise: (…) se a psicanálise não triunfar sobre a religião, é porque a religião é inquebrantável. A psicanálise não triunfará: sobreviverá ou não (…)Não triunfará apenas sobre a psicanálise, triunfará sobre muitas outras coisas. É inclusive impossível imaginar quão poderosa é a religião (LACAN, 2005, p. 65).
Para finalizar, fica a contemplação sobre o sagrado de Joan Osborne.
https://www.youtube.com/watch?v=WA3e5Y4EwmU
A sociedade dos psicólogos deseja a todos os leitores, boas festas! E que o próximo ano seja de sucesso para todos!
REFERÊNCIAS
BAUMAN Z. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
BOCK A; FURTADO O; TEIXEIRA T, Psicologias. 14aed, São Paulo: Saraiva, 2008
FREUD S.(1913). Totem e Tabu. Tradução de Orizon Carneiro Muniz. Rio de Janeiro: Imago. 2005.
FREUD S.(1927). O futuro de uma ilusão. In: Obras Completas de Sigmund Freud: Edição Standard Brasileira V.XXI; com comentários e notas de James Strachey: em colaboração com Ana Freud; assistido por Alix Strachey e Alan Tyson; traduzido do alemão e do inglês sob a direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p.15-64.
FREUD S.(1930[1929]). O Mal-Estar Na Civilização In: Obras Completas de Sigmund Freud: Edição Standard Brasileira V.XXI; com comentários e notas de James Strachey: em colaboração com Ana Freud; assistido por Alix Strachey e Alan Tyson; traduzido do alemão e do inglês sob a direção geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p.97-151.
KARNAL L. Fé e Religião. YouTube. 12 Jan. 2016. Disponível em:< https://www.youtube.com/watch?v=lUdqS1jRECs>
LACAN, J. O triunfo da religião precedido de Discurso aos católicos. Tradução de Andre Teles. Revisão técnica de Ram Mandil. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
1 comentário
Observador · 4 de agosto de 2022 às 14:07
Costumo dizer que Celibato é Utopia e, a Religião tem seus contraditórios: referente ao celibato, se acrescenta o tabu a masturbação ou fornicação! E ai muitas vezes, religiosos e padres, como que vivem um dilema de não terem vida social ou aquela censura religiosa de fazer carinho, como até um abraço mais proximo ser definido como pecado! Numa ocasião, numa praia, um padre de bermuda que moldava suas coxas grossas e, eu fui de calção (num ambiente mais de sungas) para não deixá-lo de lado e acabamos conversando: ainda disse essa sua coxa grossa “escondida” numa bermuda e ele disse teu corpo se preparando como se pudessemos procriar, sermos “um”! Acabamos, nos permitindo beijar apenas!